Introdução
Em janeiro de 2020 a Organização Mundial de Saúde (OMS/WHO) informou ao mundo sobre a ocorrência de uma emergência epidemiológica de nível internacional em decorrência da identificação de um novo coronavírus denominado SARS-CoV-2 (Severe Acute Respiratory Syndrome Coronavirus 2), que ficou conhecida como COVID-19 (Zhou et al., 2020a; WHO, 2020; Domingues, 2021). É uma doença respiratória emergente caracterizada na sua fase tardia por uma infeção respiratória grave, que pode se tornar sistêmica e levar à morte (Chen et al., 2020, Zhou et al, 2020b). Trata-se de uma doença com letalidade relativamente baixa mas altamente contagiosa, cujos principais sintomas clínicos incluem febre, tosse seca, fadiga, mialgia e dispneia. A doença foi detectada pela primeira vez em dezembro de 2019 em Wuhan, China e espalhou-se rapidamente a partir do seu epicentro para todos os continentes (Novel et al., 2020; Chen et al., 2020).
Embora diversos pesquisadores já tivessem alertado sobre a possibilidade de futuras pandemias, em face à novidade da situação, a maioria dos países não estava preparada para lidar com os impactos do vírus (Rubin, 2011; Anderson et al., 2020). Por outro lado, o enfraquecimento da OMS nos últimos anos, inclusive o abandono pelos EUA no governo de Donald Trump, limitou sua capacidade de liderança e de proposição de políticas globais capazes de dar uma direção mais homogênea para a condução e controle da pandemia. Além disso, a grande heterogeneidade de sistemas nacionais de saúde fez com que cada país adotasse medidas próprias, individuais, com frequência negligenciando a situação de outros a sua volta (sem falar nas próprias divergências internas sobre como lidar com a doença). À falta de articulação internacional, que tem se provado desastrosa, somam-se as diferentes formas ideológicas de condução das políticas nacionais, que têm tido impactos amplamente diversos entre os países e continentes.
Este artigo objetiva apresentar e discutir alguns dados disponibilizados em plataformas públicas oficiais sobre a situação da pandemia de COVID-19, da vacinação e analisar o processo de enfrentamento pelos governos centrais em Cabo Verde e no Brasil, bem como discutir como as políticas sociais e de saúde realizadas por cada país repercutiram na morbidade e mortalidade, buscando exemplificar como a tomada de decisão sobre a condução das políticas públicas influencia a situação epidemiológica nos dois países.
Cabo Verde e a Pandemia do Novo Coronavírus
Cabo Verde é um país-arquipélago formado por dez ilhas de origem vulcânica, situado no norte do oceano Atlântico, entre o Trópico de Câncer e o Equador, a cerca de 500 km da costa ocidental da África. Seu território insular ocupa uma superfície de 4.033 km2 e uma zona econômica exclusiva de 700.000 km2 (Governo.cv. 2021). Como na maioria dos países do Cone Sul, a saúde pública representa um dos muitos desafios para o Sistema de Saúde de Cabo Verde (Maria et al., 2017). O Plano Nacional de Desenvolvimento Sanitário (PNDS) parte do Sistema de Saúde Cabo-verdiano tem, de uma certa forma, uma ancoragem nos modelos de Estado de Bem-Estar Social (Ministério de Saúde e Segurança Social - MSSS, 2018) assim como o Sistema Único de Saúde do Brasil.
Como outros países africanos, Cabo Verde é vulnerável em termos de risco de propagação de epidemias, tendo em conta as suas características climáticas, geográficas e econômicas. A pandemia da COVID-19 tem afetado a saúde dos cabo-verdianos e não só, alterando completamente a forma de estar e os hábitos da população (INSP et al., 2020a).
O surto de COVID-19 em Cabo Verde se iniciou em 19 de março de 2020. O primeiro caso foi importado e identificado na ilha da Boa Vista. Com essa identificação intensificaram-se as medidas restritivas e de saúde pública para evitar a propagação do vírus no seio da população da ilha afetada (INSP, et al., 2020b). O primeiro cidadão cabo-verdiano, o quarto caso, que testou positivo, foi relatado em 25 de março de 2020, na cidade da Praia, ilha de Santiago (INSP, et al., 2020b).
Medidas Nacionais de Contenção do SARS-CoV-2 em Cabo Verde
Desde o início do surto de COVID-19 em Wuhan, as autoridades locais de Cabo Verde adotaram medidas no sentido de prevenir e evitar a propagação da infeção do novo coronavírus no país. Para contornar melhor a situação no país foi criada uma linha verde (8001112) para atendimento de casos suspeitos e/ou esclarecimentos ligados ao vírus. No seguimento, o governo central elaborou um Plano Nacional de Contingência (10 de março de 2020), com fortes medidas de proteção e restrições, seguindo as diretrizes emanadas da OMS (MSSS, 2020).
Na sequência do surgimento de casos positivos em Cabo Verde, foi decretado o Estado de Emergência a nível nacional (Decreto Presidencial no 6/2020) por um período de 20 (vinte) dias, que teve início no dia 28 de Março de 2020 (Instituto de Gestão e Qualidade e da propriedade intelectual - IGQPI et al., 2020). Com o Estado de Emergência decretado houve a suspensão de todos os serviços públicos e privados, a implementação do distanciamento social nos lugares públicos e medidas de quarentena. As saídas e entradas do país permitidas pelo governo foram reservadas, exclusivamente, para tratar de assuntos de caráter urgente (IGQPI et al., 2020).
O Estado de Emergência foi prorrogado pelo Presidente da República através do Decreto Presidencial no 7/2020, devido ao aumento dos casos positivos nas ilhas de Boa Vista, Santiago e São Vicente. Nessas ilhas foram decretados 15 dias de estado de emergência e 9 dias para as restantes ilhas sem casos positivos (Direção Nacional da Saúde & Ministério da Saúde e da Segurança Social, 2020).
Até a primeira semana do mês de maio de 2021 o país contabilizou 3.058 casos ativos, 21.249 casos recuperados, 226 óbitos, 6 óbitos por outras causas e 8 transferidos, perfazendo um total de 24.548 casos positivos acumulados. A cidade da Praia mantém-se como o epicentro da doença, acumulando sempre o maior número de casos positivos da infecção (Covid19.cv, 2021a).
De acordo com o Boletim Epidemiológico n0 15 publicado na página oficial Covid19.cv, o país verificou um aumento acentuado de casos entre os meses de abril a maio de 2021, coincidindo com o período das campanhas para as eleições legislativas, ocorridas no dia 18 de abril de 2021 (Cabo Verde, 2021). A taxa de incidência cumulativa verificada na semana epidemiológica de 12 a 18 de abril foi de 259/100.000 habitantes. A taxa de letalidade (TL) até 03 de abril 2021 era de 0.94% e, para as pessoas com idade superior a 60 anos, a TL era de 6.5%. Cerca de 83.3% dos óbitos por COVID-19 ocorreram em pessoas com idade superior a 60 anos. O município da Praia tem o maior número de óbitos acumulados, seguido de São Vicente. A maioria dos casos confirmados pertence a faixa etária de 25-34 anos (24,4%), seguido de 35-44 (17,4%) e 15-24 (17,1%) anos. Esses dados mostram que a situação da pandemia em Cabo Verde é preocupante devido ao aumento exponencial do número de casos diários, bem como também do número de mortos e o impacto na população mais jovem (Covid19.cv, 2021b). Esse aumento poderá ser justificado pela presença de novas variantes do SARS-CoV-2 em circulação no país, agravado pelo período da eleição, que levou ao descumprimento de muitas medidas de prevenção, nomeadamente o distanciamento social e o uso de máscaras (Voe Português, 2021). Medidas estas que, com o agravamento da situação, tiveram que ser reforçadas com a declaração do novo Estado de Calamidade, declarado no dia 30 de abril de 2020, doze dias após a eleição, com o intuito de evitar o colapso do sistema de saúde e achatar a curva no número de casos (Cabo Verde, 2021; Imprensa Nacional de Cabo Verde, 2021a).
Investigação Científica e Comunicação
Foram realizados em Cabo Verde dois estudos transversais de abrangência nacional coordenados pelo Instituto Nacional de Saúde Pública (INSP), Ministério da Saúde e da Segurança Social (MSSS) e a Direção Nacional de Saúde (DNS), sobre Conhecimentos, Atitudes e Práticas sobre a COVID-19, que tiveram como objetivo geral facultar informações e evidências objetivas para o governo e o sistema de saúde na tomada de decisões e definição de políticas de saúde pública para a prevenção e controle da pandemia (Instituto Nacional de Saúde Pública, 2020b; Covid19.cv, 2021c).
O primeiro estudo foi realizado no início da pandemia, em abril de 2020, e o segundo em dezembro de 2020 (Instituto Nacional de Saúde Pública, 2020b). Ambos mostraram que a população detém um bom nível de conhecimento sobre a COVID-19. O segundo estudo teve uma maior abrangência e contou com maior diversidade de faixas etárias, níveis de escolaridade e regiões de residência que o primeiro (Covid19.cv, 2021 c). De acordo com os resultados do segundo levantamento, 90% da população tem conhecimento das medidas de prevenção e mais de 90% conhece os sintomas da doença. O estudo demonstrou ainda que o grupo menos informado é a população rural e que 70% dos entrevistados têm uma boa aceitação da vacinação. No entanto, apesar do bom conhecimento comprovado das medidas, apenas 38% dos participantes assumiram que mantiveram sempre o distanciamento social. Concluiu-se que apenas o conhecimento dos cidadãos ainda pouco influenciou no controle e prevenção da doença, sugerindo que se deve continuar a persistir nas campanhas para mudança de comportamento prático e atitudes da sociedade (Covid19.cv, 2021c).
O INSP é a entidade responsável pelas informações, comunicação e sensibilização da população perante as medidas preventivas da COVID-19 (Instituto Nacional de Saúde Pública, 2020b). Para garantir as condições necessárias para a implementação e aplicação dos termos definidos no diploma supracitado, a Portaria Conjunta no 17/2020, de 28 de abril de 2020, do MSSS e Ministério da Indústria Comércio e Energia (MICE), aprovou as diretrizes para a produção e utilização de máscaras não-médicas, de uso social ou comunitárias, a definição das especificações de suas dimensões e materiais e, ainda, os requisitos mínimos ao nível de proteção e à capacidade de filtração e de respirabilidade, e remete a sua fixação e publicação por intermédio de guias contendo recomendações e orientações técnicas à Entidade Reguladora Independente da Saúde (ERIS) e ao Instituto de Gestão da Qualidade e Propriedade Intelectual (IGQPI et al., 2020).
O INSP, o Governo de Cabo Verde e o MSSS, com o apoio do escritório local da OMS, do escritório conjunto do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), do Fundo das Nações Unidas para a População (UNFPA) e do escritório regional do Fundo das Nações Unidas para a Infância (UNICEF), elaboraram um plano de comunicação de risco e envolvimento comunitário em abril de 2020, como um instrumento para a elaboração e difusão de mensagens de prevenção à COVID-19 em nível nacional (INSP, et al., 2020a).
Desde meados de dezembro de 2019, quando se tomou conhecimento da existência da doença na China, têm-se apostado na comunicação (através da televisão, da rádio, cartazes, mídias sociais, entre outros) para a prevenção da COVID-19 (Ministério da Saúde e da Segurança Social, 2020). O INSP já produziu 19.000 cartazes, 30.000 panfletos (desdobráveis) que foram e ainda estão sendo distribuídos em todo território cabo-verdiano, juntamente com a realização de palestras para divulgar informações a instituições, além da difusão de informações pelas rádios nacionais e comunitárias (INSP et al., 2020c).
É de extrema importância que a desinformação e rumores sejam bem geridos e rapidamente eliminados durante a epidemia, uma vez que atualmente há uma grande facilidade ao acesso a tecnologias de informações que têm propagado várias Fake News. Nesse contexto, o Núcleo Central de Comunicação e Envolvimento Comunitário (NUCEC) ficou responsável pela investigação diária das mídias e redes sociais para a percepção pública da COVID-19 e o esclarecimento da população no país (INSP et al., 2020c).
Vacinação em Cabo Verde
A pandemia do SARS-CoV-2 teve consequências e impactos negativos por todo o mundo e, em Cabo Verde, no âmbito sanitário, econômico e social, os impactos também foram relevantes (Instituto Nacional de Estatística, 2020). Diante da situação emergencial vivida no arquipélago, foi observada uma grande necessidade de aquisição de vacinas. De acordo com o Plano Nacional de Vacinação, a introdução das vacinas contra a COVID-19 representa o meio adicional mais efetivo de prevenção de complicações e óbitos pelo vírus (INSP et al.; 2020b).
O MSSS, via COVAX-facility adquiriu vacinas com eficácia e segurança comprovadas de acordo com as indicações da OMS. O Plano Nacional de Vacinação contra a COVID-19 foi elaborado tendo como objetivo principal prevenir e controlar a propagação da SARS-CoV-2 no país, alcançando a maioria da população adulta (Imprensa Nacional de Cabo Verde, 2021b; INSP et al., 2020b)
Até abril de 2021, Cabo Verde recebeu doses de duas vacinas diferentes: AstraZeneca e Pfizer/BioNTech. As vacinas recebidas pela iniciativa COVAX-facility até o momento têm como objetivo vacinar imediatamente 20% da população no mínimo. No entanto, existe a pretensão de adquirir outras vacinas a partir da ajuda do Banco Mundial (Covid19.cv, 2021d).
O Plano Nacional de Vacinação foi dividido em fases. Na primeira fase foram priorizados os profissionais de saúde, os indivíduos imuno-fragilizados (doentes crônicos e pessoas com mais de 60 anos) e outros profissionais da linha de frente no combate à doença (profissionais do turismo, funcionários de portos e aeroportos, professores e funcionários de escolas, polícia, forças armadas, profissionais de proteção civil e bombeiros) (Imprensa Nacional de Cabo Verde 2021 b; INSP et al.; 2020c).
Para atingir o efeito populacional desejado será necessário a aquisição de 267.293 doses para toda a população alvo acima mencionada, totalizando 111.372 pessoas. Deve-se recordar que em 18 de dezembro de 2020, a Resolução n.º 171/2020, criou a Comissão Nacional de Coordenação (CNC) para a introdução da vacina contra a COVID-19, integrando representantes dos setores públicos e privados, da sociedade civil e das organizações internacionais em Cabo Verde (ERIS, 2021).
A vacinação não é obrigatória no país, no entanto, ela foi fortemente recomendada como meio de proteção e prevenção da doença, via para o controle da disseminação da pandemia e um meio de retomada da vida normal e a recuperação da economia do país. No dia 19 de março de 2021 foi iniciada a vacinação contra COVID-19 em todo o território, utilizando a vacina da Pfizer/BioNTech. No final de abril cerca de 16 mil pessoas já tinham sido vacinadas. O Plano pretende vacinar 60% da população até 2023, 20% em 2021, 20% em 2022 e 20% em 2023 (Covid19.cv, 2021d; INSP et al., 2020b).
A Chegada da COVID-19 no Brasil
O Brasil, com seus 8.511.965 km2 , tem um território 2.110 vezes maior que o de Cabo Verde, sendo o maior país da América do Sul, e estando entre as dez maiores economias do planeta, embora conviva com enormes disparidades sociais, bem maiores que as da nação insular. O país tem um sistema universal de saúde constitucionalmente estabelecido e internacionalmente reconhecido pelos princípios da Universalidade, Integralidade e Equidade, o Sistema Único de Saúde (SUS) e também por ter um excelente Programa Nacional de Imunizações com um dos mais altos índices de vacinação no mundo (Bousquat et al., 2021; Noronha et al., 2012).
O primeiro caso de COVID-19 foi identificado no Brasil em 26 de fevereiro de 2020 e o Estado de Calamidade Pública Nacional foi declarado em 20 de março de 2020 (Decreto Legislativo No 6, de 2020). Diferente do caminho tomado por Cabo Verde, no Brasil, o Governo Federal não assumiu integralmente a gestão da pandemia, a Atenção Básica foi negligenciada, e o Presidente da República optou por minimizar os riscos e implicações do SARS-CoV-2, em um discurso político que continuamente priorizou as questões econômicas sobre os temas de saúde pública, o que resultou em grande dificuldade para conter o avanço da pandemia mesmo após mais de um ano da identificação do primeiro caso (Giovanella et al., 2020; Rocha et al., 2021; Hallal, 2021). Em abril de 2021, o país acumulava cerca de 390 mil mortos e mais de 14 milhões de pessoas foram infectadas desde que os primeiros casos foram registrados. Apenas neste mês houve 67.723 óbitos em decorrência da COVID-19. Embora a taxa de letalidade tenha se mantido em torno de 2% a 3% em 2020, na última semana do mês de abril de 2021 essa taxa chegou a 4,4%, revelando graves falhas no sistema de atenção e vigilância em saúde (Fiocruz, 2021a,b). Neste mês o país acumulou 12,6% dos óbitos por SARS-CoV-2 no mundo, sendo um dos que apresentou maior mortalidade desde o início da pandemia. Ao longo do ano de 2020 havia maior mortalidade na população com idade superior a 65 anos, mas em 2021 houve um aumento de casos até março principalmente no grupo de menores de 60 anos. Ao longo de 2020 a região com o maior número de casos foi o sudeste, que tem a maior população e é a mais rica do país, mas a região norte, a mais pobre, foi a que apresentou maior mortalidade proporcional, inclusive entre as pessoas internadas em UTIs (Azevedo e Silva, et al., 2020; EPICOVID-19, 2020; Fiocruz, 2021c,d).
Como em Cabo Verde, o novo coronavírus chegou ao Brasil via aérea, com pessoas que retornavam da Europa, e rapidamente se espalhou por todos os estados e classes sociais, avançando posteriormente para o interior do país (Rocha et al., 2021). No entanto, o conjunto da população não foi igualmente atingido pela pandemia. As enormes disparidades regionais e sociais do país foram ampliadas por causa da doença. As grandes diferenças econômicas entre as regiões Sudeste, Sul, Centro-Oeste, mais ricas e urbanizadas e as regiões Nordeste e Norte, mais pobres e com maior quantidade de populações rurais e grupos tradicionais, se manifestaram como indicadores de saúde amplamente diferentes, sempre piores para estas duas últimas. Com a chegada da pandemia, as diferenças infra-estruturais enfrentadas pelos diversos segmentos da sociedade brasileira, bem como as disparidades étnico-raciais, se refletiram em diferenças importantes do ponto de vista de morbidade e mortalidade por COVID-19 (De Souza et al., 2020; Fiocruz, 2021c; Matta et al., 2021; Rocha et al., 2021; Varga et al., 2020).
A enorme diversidade regional e populacional brasileira, as suas iniquidades históricas, os seguidos cortes de recursos para a saúde, somados à maneira como o Governo Federal optou por conduzir a pandemia, fizeram com que o país apresentasse uma das maiores taxas de mortalidade do mundo e enormes dificuldades para lidar com a doença, causando perdas econômicas e colocando esta nação como um potencial risco à saúde pública mundial (INESC, 2020a; Li et al., 2021; Fiocruz, 2021d; Ventura e Bueno, 2021).
O Enfrentamento do SARS-CoV-2
Embora tenha um sistema universal de saúde de abrangência nacional, o Brasil não conseguiu mobilizar os esforços nacionais de maneira unificada para lidar com a pandemia. Desde 2019, quando um novo governo tomou posse, passaram pelo Ministério da Saúde (MS) quatro ministros, sendo que três deles já foram trocados no período da pandemia (Luiz Henrique Mandetta, 1/1/2019 - 16/4/2020; Nelson Teich 17/4/2020 - 15/5/2020; Eduardo Pazuello 15/5/2020 - 15/3/2021 e Marcelo Queiroga empossado em 23/3/2021). Embora haja entre eles três médicos, nenhum apresentou o conhecimento técnico do SUS, a liderança ou a autonomia necessárias para o enfrentamento de uma ocorrência de tamanha amplitude, o que é de estranhar em um país que já teve figuras como Sérgio Arouca (1941-2003) e Hésio Cordeiro (1942-2020), dois dos idealizadores do SUS, que formaram uma geração inteira de sanitaristas, já foi líder na luta internacional pela saúde pública, e tem centros de formação em saúde como a FIOCRUZ, o Instituto Butantan, a UNIFESP, a UFRJ, a UNB, cujos profissionais são reconhecidos pela OMS e pelos principais centros de produção de conhecimentos sobre políticas de saúde do mundo.
Segundo a Constituição Federal, de 1988, a saúde é um direito de todos e um dever do Estado (artigo 196). O SUS se caracteriza por ser tripartite e hierarquizado, ou seja, as responsabilidades pela saúde da população são compartilhadas pela União, Estados e Municípios, sendo que cada ente tem as suas atribuições próprias. Em linhas gerais, ao Governo Federal cabe fundamentalmente o financiamento, o planeamento e a organização nacional do SUS, colaboração para a regulação da formação de profissionais de nível superior (junto com o Ministério da Educação - MEC) e a coordenação geral do sistema para a promoção da integração entre os estados. Aos estados cabe a adição e distribuição de recursos aos municípios, o planeamento e a regulação das ações no seu território, visando reduzir as desigualdades regionais, contribuir para a formação continuada das equipes de saúde, avaliação das ações municipais e a distribuição de insumos. Aos municípios cabem o planeamento das ações a nível local, a execução dos serviços assistenciais de promoção, prevenção, vigilância epidemiológica e sanitária. Todos os entes formulam as políticas, em cada nível, e devem trabalhar de forma integrada para a garantia da saúde no país (Brasil, 2003). Mais de 70% da população brasileira depende exclusivamente do SUS para todas as suas necessidades sanitárias e de saúde (IBGE, 2020).
No caso da pandemia de COVID-19, o MS demorou para mobilizar recursos voltados para o combate ao SARS-CoV-2, não houve um direcionamento claro e uníssono para o combate à doença em seu início, e as seguidas alterações de coordenação e direção no ministério, tiveram um profundo impacto na forma como os agentes públicos nos diversos níveis lidaram com a pandemia (Cimini et al., 2020; Rocha et al., 2021).
O Presidente da República, desde o começo da pandemia emitiu opiniões sem embasamento científico, desconsiderou as recomendações da OMS para o enfrentamento do novo coronavírus, não incentivou as medidas de prevenção não-farmacológicas, como o uso de máscaras e o distanciamento social, questionou e retardou a busca por vacinas, não deu ao MS liberdade para realizar amplas campanhas informativas nacionais e advogou por medicamentos sem comprovação técnica (CONECTAS, 2021; Hallal, 2021; Fiocruz, 2020b). Além do próprio MS, a política governamental federal afetou diversos ministérios relacionados à assistência social, reduziu recursos para ações afirmativas, polarizou a situação de enfrentamento nos estados e municípios, aumentou a judicialização na saúde e, potencialmente, contribuiu para a alta morbidade e mortalidade no país (INESC, 2020a; CONECTAS, 2021).
Para enfrentar a COVID-19, o Congresso Nacional aprovou um “Orçamento de Guerra” através de Emenda Constitucional (EC 106) em 7 de maio de 2020, estabelecendo um orçamento específico para os gastos no enfrentamento da pandemia que, juntamente com diversas Medidas Provisórias, deram suporte a uma série de ações incluindo a liberação de auxílio financeiro emergencial para diversos setores da sociedade, recursos para os estados para a compra de insumos, equipamentos, apoio a testagem, disseminação de informações sobre a COVID-19, montagem de hospitais de campanha e leitos de UTI para o tratamento dos infectados, bem como para a Atenção Básica (Maranhão e Senhoras, 2020). Porém, para 2021, houve redução de cerca de 40 bilhões de reais dos recursos para a saúde (INESC, 2020) e, até maio não havia discussão no Congresso sobre a renovação do “Orçamento de Guerra”, encerrado em dezembro do ano anterior.
Investigação Científica, Comunicação e o Negacionismo como Política de Estado
Graças ao desenvolvimento e autonomia das universidades e instituições de pesquisa públicas no Brasil, o país conseguiu avançar rapidamente na realização de pesquisas e publicações sobre a distribuição do vírus pelo país e seus impactos na população. Os esforços da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), do Rio de Janeiro, e do Instituto Butantã, de São Paulo, em parceria com instituições internacionais, permitiram o desenvolvimento conjunto de duas vacinas a serem disponibilizadas nacionalmente, mesmo sob constantes questionamentos de alguns setores do Governo Federal (Ventura e Bueno, 2021; Fiocruz, 2021b; Hallal, 2021).
O negacionismo em relação aos potenciais impactos da pandemia em nível nacional, que redundou em limitação de recursos para pesquisas e compra de equipamentos de proteção individual para a Atenção Básica, promoveu boicotes discursivos e políticos, não permitiu que houvesse inquéritos sorológicos nacionais contínuos, fazendo com que a testagem populacional ficasse sempre aquém do praticado em outros países, e não houve um conjunto orquestrado de campanhas informativas de combate à pandemia ou de aquisição de vacinas até o início de 2021 (Fiocruz, 2021d; Lancet, 2020; Hallal, 2021, Hallal et al., 2020). O país enfrenta também uma enorme campanha de desinformação e Fake News através de redes sociais de matizes ideológicos anticientíficos, e a restrição de informações e dados de fontes oficiais, além de haver um grande volume de subnotificações, especialmente entre as populações tradicionais. Configura-se uma verdadeira infodemia no país, que tem afetado toda a sociedade, levando milhares de pessoas a se envolver em atitudes de risco, como uso de medicamentos sem efetividade comprovada, participação em aglomerações, não uso de máscaras, negação da gravidade da pandemia e mesmo recusa à vacinação (Garcia e Duarte, 2020; Silva e Araújo, 2021; Silva, 2021a).
Como resposta à falta de ações governamentais, diversas ações judiciais, em especial junto ao Supremo Tribunal Federal (STF) foram impetradas, com destaque para as Ações de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 709, proposta em junho de 2020, exigindo a implementação de uma série de ações do Governo Federal para a atenção emergencial durante a pandemia aos povos indígenas e a 742, apresentada em setembro de 2020, exigindo um conjunto de ações emergenciais e um plano de vacinação para as populações quilombolas, ou seja, para obrigar o governo a cumprir a legislação relacionada à saúde dos povos e comunidades tradicionais, como garantia do acesso à água, máscaras e materiais para higiene pessoal, alimentos para mitigar a insegurança alimentar e nutricional, garantia de acesso ao auxílio financeiro emergencial, garantia de não violação dos direitos territoriais, acesso à testagem, vacinação prioritária e garantia de condições materiais de sobrevivência durante a pandemia (Arruti et al., 2021; Gomes, 2020). Ambas foram julgadas favoravelmente pelo pleno do STF, que reiterou a ausência de políticas governamentais suficientes para a proteção daquelas comunidades tradicionais.
Dentre as ações governamentais relacionadas à pandemia, até o início da vacinação em 2021, a mais eficaz não foi de cunho sanitário, mas tratou-se da implementação de um auxílio emergencial financeiro, no período de agosto a dezembro de 2020, que foi retomado, embora com um valor menor, em abril de 2021, e que teve um importante impacto na economia, garantindo algum nível de proteção social e segurança alimentar para cerca de 60 milhões de brasileiros, especialmente a população negra, que foi a mais afetada pela pandemia (Gonçalves et al., 2021; Li et al., 2021; Rocha et al., 2021).
Os Desafios da Vacinação
O Brasil iniciou a vacinação em 17 de janeiro de 2021, com a utilização de duas vacinas aprovadas pela Agência Nacional de Vigilância Sanitária (ANVISA), a Coronovac, produzida pelo laboratório chinês Sinovac e o Instituto Butantan, do Brasil, e a produzida pelo laboratório sueco-inglês AstraZêneca, em parceria com a Universidade de Oxford e o Instituto BioManguinhos da Fundação Oswaldo Cruz, do Brasil (Brasil, 2021a,b). Embora tenha um eficiente Programa Nacional de Imunizações (PNI) desde 1973, num país com dimensões continentais, enorme diversidade geográfica e grande contingente populacional, são inúmeros os desafios para a implementação de uma adequada campanha de vacinação emergencial nacional (Domingues, 2021; Silva, 2021b). Essas dificuldades se somam à carência de vacinas, uma vez que o país desenvolveu o seu Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação Contra a COVID-19 tardiamente, depende de insumos importados da Índia e da China para produzir os imunizantes, se comprometeu tardiamente e com um pequeno número de vacinas do COVAX-facility, e demorou para adquirir produtos de outras empresas, cujo maior volume só deve chegar no segundo semestre de 2021 (Fiocruz, 2021b,c,d).
Até o dia 30 de abril, segundo dados do Ministério da Saúde, 31.667.346 pessoas tomaram a primeira dose (cerca de 15% da população), e 15.677.543 (cerca de 7,4% da população), haviam recebido também a segunda dose de vacina contra a COVID-19. O progresso da cobertura tem sido lento devido ao volume reduzido de vacinas no país e problemas de distribuição. Além da vacinação avançar mais lentamente que o ideal para diminuir rapidamente a mortalidade e evitar o potencial surgimento de novas cepas virais, ela não ocorre de forma homogênea na população, uma vez que os negros têm recebido até 50% menos vacinas que os brancos, pois as unidades, serviços e postos de saúde e imunização se localizam predominantemente nas áreas urbanas e centrais, onde o acesso da população mais pobre e residente nas periferias (a maioria negra) é mais difícil. Além disso, a forma de distribuição das vacinas, principalmente por faixas etárias e categorias profissionais, não considera os impactos negativos das disparidades geográficas, socioeconômicas e étnico-raciais vigentes no país no adoecimento e morte pelo SARS-CoV-2, fazendo com que o modelo de vacinação adotado não contribua para a redução das desigualdades sociais. Em particular, chama atenção a situação das populações indígenas e quilombolas, que apresentam, proporcionalmente ao resto da população, maiores taxas de morbidade e mortalidade, elevada subnotificação e que, embora tenham sido consideradas prioritárias para vacinação, não foram integralmente imunizadas e sofrem diversos tipos de discriminação para o acesso a esses e outros medicamentos, bem como aos equipamentos de proteção individual, aos testes e genotipagem para COVID-19 e aos outros serviços de saúde (Arruti et al., 2021; Azevedo e Silva, 2020; Brasil, 2020; De Souza et al., 2020; Fiocruz, 2021a; Lima, 2021; Hallal et al., 2020; Silva, 2020).
Uma das evidências da dificuldade política do país em lidar com a crise sanitária é que, ainda em abril de 2021, foi instalada pelo Senado Federal uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI).
“Destinada a apurar, no prazo de 90 dias, as ações e omissões do Governo Federal no enfrentamento da Pandemia da Covid-19 no Brasil e, em especial, no agravamento da crise sanitária no Amazonas com a ausência de oxigênio para os pacientes internados; e as possíveis irregularidades em contratos, fraudes em licitações, superfaturamentos, desvio de recursos públicos, assinatura de contratos com empresas de fachada para prestação de serviços genéricos ou fictícios, entre outros ilícitos, se valendo para isso de recursos originados da União Federal, bem como outras ações ou omissões cometidas por administradores públicos federais, estaduais e municipais, no trato com a coisa pública, durante a vigência da calamidade originada pela Pandemia do Coronavírus “SARS-COV-2””1
Cujos resultados são imprevisíveis.
Conclusões
Cabo Verde e Brasil são países lusófonos, com história colonial comum e um amplo leque de relações que os irmanam. No Brasil, enquanto a pandemia prossegue afetando milhões de famílias, entre as que perderam entes queridos e as pessoas que sobreviveram com sequelas, algumas graves, diversas outras doenças também continuam a afetar a população, que tem elevadas taxas de morbidade e mortalidade por afecções crônicas, infecciosas e por causas externas, sobretudo violência, incluindo a elevação das taxas de feminicídio e outras formas de violência social, que afetam sobretudo os grupos indígenas e afrodescendentes, rurais e urbanos. Em Cabo Verde, guardadas as proporções geográficas e populacionais, considerando a situação socioeconômica e as decisões governamentais, a pandemia teve um impacto proporcionalmente menor.
As ações pró-ativas de Cabo Verde, embasadas em uma forte atuação governamental, na prevenção, na Atenção Básica e seguindo as recomendações da OMS contrastam com as do governo do Brasil, que investiu sobretudo em tratamento hospitalar, em medicamentos sem comprovação científica, retardou a compra de insumos, de vacinas, e reduziu recursos para a saúde e para as ações voltadas às populações mais vulnerabilizadas. Como demonstrado em outros países que adotaram posturas mais, ou menos, pró-ativas, de acordo com as recomendações da OMS e da comunidade científica internacional, os impactos populacionais estão diretamente relacionados ao conjunto de perspectivas e ações governamentais no curso da pandemia.
O presente estudo descreveu a situação da COVID-19 em Cabo Verde e no Brasil, e como os respectivos governos enfrentaram a pandemia ao longo do seu primeiro ano, na perspectiva de estabelecer comparações entre eles no âmbito das abordagens políticas e as suas consequências. Embora reconhecendo as enormes diferenças territoriais, geográficas, populacionais, sociais, étnico-raciais, econômicas e mesmo de sistemas de saúde entre os dois países, fica claro que as abordagens políticas adotadas por cada um tiveram implicações profundas na situação epidemiológica no decorrer da crise sanitária.
Em que pesem as limitações de possibilidades analíticas e comparativas entre os dois países, impostas pelo espaço disponível em um artigo, esperamos que este trabalho contribua para estimular a ampliação de estudos entre países lusófonos e para demonstrar a importância da qualidade e do direcionamento da gestão das políticas públicas para o enfrentamento desta pandemia, que ainda não dá sinais de arrefecer, bem como das que possam emergir futuramente.