Introdução
Em 2020, a palavra “coronavírus” passou de mal conhecida na linguagem popular para uma posição de predominância nos principais meios de comunicação social. Parece até razoável afirmar que desde o amanhecer da presente década, a doença de coronavírus de 2019 (COVID-19) tem recebido mais atenção até mesmo em relação ao HIV/SIDA. Só em gesto de exemplo, num seminário do Ministério de Ciência e Tecnologia de Moçambique, alguém perguntou por que razão não existe vacina para HIV/SIDA depois de décadas de pesquisa, quando para COVID-19 foi desenvolvida em meses (Cambaza & Viegas, 2020).
Coronavírus são partículas virais com invólucro e não segmentadas com ARN de sentido positivo, pertencentes à família Coronaviridae e ordem Nidovirales, frequentemente encontrados nos seres humanos e outros mamíferos (Huang et al., 2020; Stoermer, 2020). Sabe-se que tais partículas são causas comuns de doenças respiratórias (Ghebreyesus et al., 2020; MacIntyre, 2020). Alguns exemplos são a síndrome respiratória aguda severa (SARS) e a síndrome respiratória do Médio Oriente (MERS) (MacIntyre, 2020; World Health Organization, 2020h), ambas se não devidamente tratadas são potencialmente fatais. A transmissibilidade entre seres humanos varia com a estirpe e infeções de coronavírus em seres humanos são frequentemente pouco virulentas, causando sintomas da gripe comum (Dong et al., 2020; Huang et al., 2020). Casos mais graves podem resultar em infeções severas do trato respiratório (Dong et al., 2020).
O surto da COVID-19 atraiu atenção global à cidade de Wuhan e, desde que se tornou público, já parecia haver um sentimento de que se tornaria uma ameaça à saúde internacional (Hui et al., 2020; Wu et al., 2020). O Diretor Geral da Organização Mundial da Saúde declarou, no dia 30 de Janeiro de 2020, o estado de Emergência de Saúde Pública de Âmbito Internacional (PHEIC), o que implica que COVID-19 deixou de ser apenas uma responsabilidade do governo chinês. Em pouco mais de dois meses constatou-se que as suspeitas eram verdadeiras porque a COVID-19 passou de completamente desconhecida a um surto de dimensões sem precedentes (Houssin et al., 2020), uma verdadeira pandemia global, predominante sobretudo no Hemisfério Norte (World Health Organization, 2020b).
Menções a SARS ou MERS não são incomuns na literatura sobre COVID-19, sobretudo por serem boas bases para comparação e até para o desenvolvimento de ferramentas e estratégias para o combate da COVID-19. Por exemplo, foi graças ao surto da SARS em 2004 que contribuiu para a popularização do termómetro de infravermelhos (Hay et al., 2004; Liu et al., 2004), hoje predominantes em entradas de empresas ou outros espaços com grandes concentrações de pessoas (Cambaza, 2021). A pesquisa baseada em MERS, por sua vez, foi tomada como ponto de partida para o desenvolvimento de vacinas para COVID-19 (World Health Organization, 2020g, 2020i). Foi considerando esses exemplos e outros que esta breve revisão foi concebida, com o objectivo de apresentar as principais características da SARS e MERS e o que elas têm em comum com a COVID-19.
Metodologia de pesquisa
A pesquisa foi feita usando-se o motor de busca Scilit (www.scilit.net) para artigos científicos. Até ao dia 11 de Abril de 2020, o termo de busca foi “COVID-19”. Todos os documentos selecionados deviam ter o termo de busca no título. Além disso, buscou-se diretamente os relatórios de situação, as transcrições de conferências de imprensa, as notícias e outras informações disponíveis na página da OMS (World Health Organization, 2020c, 2020d). Todos os documentos foram analisados no Atlas.ti (ATLAS.ti Scientific Software Development GmbH, Berlim, Alemanha, 2017), um software para análises qualitativas (ATLAS.ti Scientific Software, 2020). A informação foi codificada em “comparações entre coronavírus”, “SARS” e “MERS” e depois compilada em um texto conciso.
Comparação entre os coronavírus
Como uma nova infeção por coronavírus, as primeiras comparações foram feitas com a Síndrome Respiratória Aguda Severa (SARS) e a Síndrome Respiratória do Médio Oriente (MERS) (MacIntyre, 2020). Ambas tinham causado surtos e atraíram a atenção a nível global como doenças emergentes (Stoermer, 2020; Wu et al., 2020). A similaridade de sintomas inclui a febre, tosse seca, falência respiratória, até mesmo as anomalias observadas em registos de tomografia computorizada e a grande quantidade de citocinas que as partículas virais induzem (Huang et al., 2020). Além disso COVID-19, tal como as outras duas doenças, apresenta tendências nosocomiais (Hui et al., 2020; World Health Organization, 2020e). Tais similitudes levaram os cientistas em primeiro lugar a excluírem a possibilidade do novo coronavírus ser, na verdade, uma nova estirpe dos causadores de SARS ou MERS (Hui et al., 2020; Xu et al., 2020). Contudo, constatou-se que o genoma de SARS-CoV-2 era consideravelmente diferente de SARS-CoV e mais ainda em relação a MERS-CoV (Xu et al., 2020).
A COVID-19 tende a ser clinicamente mais ligeira em relação a SARS e MERS em termos de severidade (Huang et al., 2020; Hui et al., 2020), causa menos casos de gastroenterite (Huang et al., 2020) e a taxa de letalidade (CFR), aumentando o risco de não ser detetada (Hui et al., 2020). Em termos de transmissibilidade (R0), MacIntyre (2020) acredita que o SARS-CoV-2 se comporte mais como o vírus da MERS (MERS-CoV), com R0 ≈ 1, se comparado ao vírus da SARS (SARS-CoV), cujo R0 ≈ 2. Embora isso possa ser verdade, estas comparações devem abrir espaço para alguma ponderação porque o mesmo patógeno varia em termos de em áreas diferentes e até na mesma área ao longo do tempo, isto é, R0 é um valor que pode variar consideravelmente para o mesmo patógeno. Por exemplo, Hui et al. (2020) consideraram que SARS-CoV-2 é menos transmissível do que as partículas virais de SARS e MERS enquanto Majumder and Mandl (2020) referiram que o R0 do novo coronavírus aproxima-se ao de SARS-CoV. Talvez seja cedo para se fazer esse tipo de previsão.
SARS
A SARS foi uma doença reportada a 16 de Novembro de 2002 em Foshan, na província de Guandong da China, que foi anunciada internacionalmente três meses mais tarde, e o vírus foi descoberto em Hong Kong (Cheng et al., 2020). Ela é zoonótica, disseminou-se por 29 países também através de viagens, infetando 8.098 pessoas, com uma taxa de letalidade de 9,6% (774 mortes) (Hui et al., 2020; Wu et al., 2020). O surto iniciou num mercado de frescos através do contato que as pessoas tiveram com gatos selvagens que, por sua vez, tinham adquirido o vírus de morcegos (Hui et al., 2020; Xu et al., 2020). De certo modo, os eventos de 2020 parecem uma repetição do episódio de SARS em que o vírus é menos virulento, mas a pandemia se difundiu mais (Xu et al., 2020).
Tal como SARS-CoV-2, o SARS-CoV é um Betacoronavirus do grupo 2B (Hui et al., 2020). O vírus mais parecido com SARS-CoV-2 é o HKU9-1, isolado do morcego, pertencente ao grupo chamado “SARS-like” [semelhante ao SARS] (Dong et al., 2020; Xu et al., 2020), que inclui algumas espécies que infetam o ser humano (Xu et al., 2020). Por essas razões, acredita-se que SARS-CoV-2 partilhe algum ancestral com SARS-CoV que se assemelha ao HKU9-1 que foi sofrendo mutações e tornou-se virulento para o ser humano (Xu et al., 2020).
A nível molecular, as espigas glicoproteicas S do SARS-CoV-2 são 76,5% semelhantes às de SARS-CoV em termos de sequência de aminoácidos (Xu et al., 2020). Além disso, a sua estrutura tridimensional é quase idêntica no domínio RBD (RNA-binding domain) (Dong et al., 2020; Xu et al., 2020), área com capacidade de se ligar a moléculas de ácido ribonucleico (ARN) (Lunde et al., 2007). Outra semelhança é o alto nível de homologia numa das proteínas codificadas pelo ARN viral, chamada protease cisteína 3CLpro semelhante à quimotripsina, que é essencial para a replicação do vírus (Stoermer, 2020).
MERS
MERS é outra síndrome respiratória zoonótica, identificada na Arábia Saudita e endémica no Médio Oriente, que de 2012 ao final de 2019 resultou em 2465 casos confirmados em 27 países dos quais 850 resultaram em morte (Hui et al., 2020; Wu et al., 2020). Os casos mencionados incluem um grande surto na Coreia do Sul em 2015 (Wu et al., 2020).
SARS-CoV-2 é geneticamente muito diferente de MERS-CoV (Dong et al., 2020) mas ambos induzem o organismo humano à produção de citocinas proinflamatórias (Huang et al., 2020). Parte do material e protocolo para a testagem de medicamentos e desenvolvimento de vacinas para COVID-19 foi originalmente produzido para MERS (World Health Organization, 2020a, 2020f, 2020g), mas houve readaptações porque assume-se que as espigas glicoprotéicas de SARS-CoV-2 e MERS-CoV sejam diferentes (World Health Organization, 2020i). Apesar de semelhanças em termos clínicos, a taxa de letalidade é 34,4 %, sendo muito maior em comparação aos 2% da COVID-19 (Hui et al., 2020).
Não se conhece a fonte original, mas o camelo é o principal reservatório, pelo que a doença pode ser adquirida diretamente através do animal ou produtos derivados (Hui et al., 2020). A transmissão de SARS-CoV-2 assemelha-se à de MERS-CoV no sentido de que parece esporádica, irradiando de áreas específicas, mas ainda assim com irrefutáveis evidências de transmissão de humano para humano (MacIntyre, 2020). Além disso, é também uma doença nosocomial (Hui et al., 2020), como já foi mencionado.
Conclusão
Em relação à SARS e MERS, a COVID-19 apresenta muitas semelhanças, mas é menos virulenta e dissemina-se mais lentamente. A alta virulência de SARS e MERS resultou em elevado número de pessoas sintomáticas em tempo relativamente menor, muitas delas tendo perdido a vida antes que pudessem transmitir as doenças, resultando no desaparecimento mais rápido das epidemias. A COVID-19 tornou-se pandemia, em parte porque surgiram muitos indivíduos assintomáticos com capacidade de transmitir a SARS-CoV-2. Se o indivíduo assintomático não é sujeito a um teste nem é proveniente de uma zona considerada de risco, há poucas razões para suspeitar que ele possa estar a transmitir a doença.
Em termos de sintomatologia, apesar da COVID-19 mais raramente causar diarreia, ela partilha com SARS e MERS a febre, tosse seca e apneia em casos ligeiros e pneumonia severa como a principal complicação. Suspeita-se que a COVID-19, tal como as outras doenças, tenha tido origem zoonótica, tendo surgido em alguma espécie de morcego e entrado em contacto com o ser humano a partir de carne contaminada vendida no mercado, mas no caso da COVID-19 estas hipóteses ainda requerem confirmação.
Deve-se reconhecer que o impacto da COVID-19 na saúde global, a esta altura, é muito maior do que de SARS e MERS combinadas e, considerando o impacto social e económico, nenhuma doença na História forçou tantos países a fecharem as suas fronteiras e travarem tantas actividades económicas em tão pouco tempo quanto a COVID-19. Por exemplo, acredita-se amplamente que a má gestão da pandemia tenha influenciado para a derrota do Presidente Donald Trump nas eleições de 2020. A pandemia foi subestimada várias vezes, sobretudo nos primeiros meses, o que certamente contribuiu para crises catastróficas de saúde pública em alguns países. Por isso, é fundamental que as medidas de prevenção propostas pela OMS e outras organizações idóneas sejam devidamente cumpridas.