Introdução
A diabetes mellitus é um problema de saúde pública ao nível global, quer pelo aumento da sua prevalência e mortalidade quer pelas consequências económicas e sociais que causa (International Diabetes Federation, 2019; World Health Organization, 2016). É uma das 10 causas mais importantes de morte no mundo e estima-se que em 2019, cerca de 463 milhões de adultos entre 20 e 79 anos tinham diabetes mellitus, o que representa 9.3% da população mundial nessa faixa etária (International Diabetes Federation, 2019).
Os países de baixa e média renda são os mais acometidos pela doença, sendo que 79.4% dos indivíduos com diabetes mellitus vivem nestas regiões (International Diabetes Federation, 2019). Nos próximos anos a prevalência da diabetes mellitus continuará a aumentar e projeta-se que o número de pessoas com a doença chegue a 578 milhões em 2030 e a 700 milhões em 2045 (International Diabetes Federation, 2019).
A hipertensão arterial constitui uma das co-morbilidades mais comuns entre os pacientes com diabetes mellitus tipo 2, sendo cerca de duas vezes mais frequente neste grupo de pacientes que na população em geral (Cheung & Li, 2012; Petrie, Guzik, & Touyz, 2018). Segundo Savoia & Touyz (2017) a hipertensão arterial atinge mais de 50% dos pacientes diabéticos.
A associação entre a hipertensão arterial e a diabetes mellitus acelera o aparecimento e progressão das complicações micro e macrovasculares, elevando o risco de morbi-mortalidade e de mortalidade precoce (Arauz-Pacheo, Parrott, & Raskin, 2003; Long & Dagogo-Jack, 2011; Sowers, Epstein, & Frohlich, 2001). Por outro lado, esta associação, acarreta considerável impacto económico para os doentes, comunidades e países (International Diabetes Federation, 2019; World Health Organization, 2016).
Em Moçambique, “o fardo da doença” é ainda dominado por doenças transmissíveis. No entanto, as doenças não transmissíveis, começam a influenciar o perfil epidemiológico do país, exercendo pressão sobre os serviços de saúde (Ministério da Saúde, 2013).
Estudos realizados no país, em 2005 e 2015, baseados na abordagem STEPWise da Organização Mundial da Saúde, mostram claramente um aumento da prevalência tanto da diabetes mellitus assim como da hipertensão arterial. A prevalência da diabetes mellitus aumentou de 2,8% para 7,4% e da hipertensão de 33% para 39% (Ministério da Saúde, 2016).
Apesar do aumento do peso das doenças não transmissíveis no país e do impacto da co-morbilidade diabetes mellitus tipo 2 e hipertensão arterial, não temos conhecimento de nenhum estudo publicado sobre a frequência da hipertensão e seus fatores associados especificamente entre os pacientes com DM tipo 2.
Este estudo teve como objetivo analisar a frequência e os fatores associados à hipertensão arterial em pacientes com diabetes mellitus tipo 2, atendidos na Associação Moçambicana dos Diabéticos entre 2006 e 2016.
Métodos
Trata-se de um estudo transversal analítico, que incluiu a revisão retrospetiva de dados de 1753 pacientes com diabetes mellitus tipo 2, incluídos na base de dados da Associação Moçambicana dos Diabéticos, entre 2006 e 2016.
Esta associação destina-se à prestação de assistência médica aos pacientes com diabetes mellitus. Foram incluídos no estudo pacientes com diagnóstico de diabetes mellitus tipo 2, que apresentavam dados completos relativos às seguintes variáveis: idade, sexo, peso, altura, consumo de tabaco, consumo de álcool e pressão arterial.
A hipertensão arterial foi considerada a variável de desfecho e as variáveis independentes foram o sexo, idade, índice de massa corporal, história familiar de diabetes mellitus, duração da diabetes mellitus, consumo de tabaco, consumo de álcool, glicémia, colesterol total e hemoglobina glicosilada.
O índice de massa corporal (IMC) foi obtido dividindo o peso em quilogramas (kg), pela respetiva altura em metros ao quadrado (m²). Para todos os valores encontrados entre 18,5-24,9kg/m², os pacientes foram considerados como tendo IMC normal; foram considerados abaixo do peso se IMC < 18,5kg/m²; com excesso de peso, se IMC 25-29,9kg/m² e com obesidade se valor de IMC igual ou superior a 30kg/m² (World Health Organization, 1995).
Os pacientes que tivessem pelo menos um membro da família com o diagnóstico de diabetes mellitus, eram considerados como tendo história familiar de diabetes mellitus positiva.
O diagnóstico de diabetes mellitus foi estabelecido segundo os critérios da American Diabetes Association (2004): glicémia plasmática em jejum superior a 7 mmol/l ou presença de sintomas clássicos da diabetes e glicémia plasmática ocasional superior a 11.1 mmol/l. A classificação em diabetes mellitus tipo 2, foi estabelecida usando critérios clínicos e resposta ao tratamento com antidiabéticos orais.
O diagnóstico de hipertensão arterial foi estabelecido segundo os critérios padronizados pela World Health Organization (1999): pressão arterial igual ou superior a 140/90 mmHg medida em pelo menos 2 ocasiões diferentes.
Os doentes foram classificados em hipertensos ou normotensos de acordo com este valor de corte.
Os níveis de colesterol total foram classificados de acordo com a V Diretriz Brasileira de Dislipidemias em: desejáveis se inferiores a 5,172 mmol/l, limítrofes entre 5,172 a 6,19 mmol/l e altos se iguais ou superiores a 6,2 mmol/l (Faludi et al., 2013).
A classificação das variáveis consumo de tabaco e de álcool foi feita apenas de forma qualitativa.
A análise dos dados foi realizada no pacote estatístico IBM SPSS versão 20.0. Para as variáveis quantitativas foram calculadas as medidas de posição e de dispersão e para as variáveis qualitativas, as frequências absolutas e percentuais.
A associação entre a variável dependente (hipertensão arterial) e as independentes foi estabelecida através de análises bivariadas (teste de qui-quadrado) e multivariadas (regressão logística binária).
Para o controlo das variáveis de confusão o Odds Ratio (OR) foi ajustado ao índice de massa corporal, idade e duração da diabetes mellitus. Os valores foram considerados estatisticamente significativos se p-value < 0.05.
Resultados
Do total de 2692 pacientes incluídos na base de dados da Associação Moçambicana dos Diabéticos, correspondentes ao período entre 2006 e 2016, 2388 (89%) tinham o diagnóstico de diabetes mellitus tipo 2
Patologia | n | % |
---|---|---|
Diabetes Mellitus tipo I | 230 | 8.5 |
Diabetes Mellitus tipo II | 2388 | 88.7 |
Outras patologias | 4 | 0.1 |
Sem Informação | 70 | 2.7 |
Total | 2692 | 100 |
Entre os pacientes com diabetes mellitus tipo 2, 1753 (73%) reuniam os critérios de inclusão para o estudo.
As características demográficas e clínicas da população de estudo encontram-se representadas na tabela 2.
Característica | Total n = 1753 | ||
---|---|---|---|
n | % | ||
Sexo | |||
Feminino | 950 | 54,2 | |
Masculino | 803 | 45,8 | |
Idade (anos) | 54,4±10.79 | ||
< 50 | 637 | 36,3 | |
50-60 | 629 | 35,9 | |
> 60 | 487 | 27,8 | |
Índice de massa corporal (kg/m2) | 28,1±5,97 | ||
Baixo peso | 66 | 3,8 | |
IMC* normal | 454 | 25,9 | |
Excesso de peso | 642 | 36,6 | |
Obesidade | 591 | 33,7 | |
Consumo de tabaco | |||
Sim | 60 | 3,4 | |
Não | 1693 | 96,6 | |
Consumo de álcool | |||
Sim | 679 | 39,8 | |
Não | 1056 | 60,2 | |
História familiar (n = 1697) | |||
Sim | 782 | 46 | |
Não | 915 | 54 | |
Duração de diabetes (anos) | 6,67±6,02 | ||
< 5 | 1128 | 64,3 | |
5-10 | 422 | 24,1 | |
> 10 | 203 | 11,6 | |
Hemoglobina glicosilada (n = 1641) | 8,9±4,31 | ||
≥ 7% | 1097 | 66,8 | |
< 7% | 544 | 33,2 | |
Colesterol total (mmol/l) | 5,16±1,98 | ||
Desejável | 913 | 54,7 | |
Limítrofe | 445 | 26,7 | |
Alto | 310 | 18,6 | |
Glicémia (mmol/l) | 11,7±5,9 |
*Índice de Massa Corporal
Do total de 1753 participantes, 950 (54,2%) eram do sexo feminino e a média de idade era de 54,4 ± 10,79 anos. O excesso de peso e a obesidade foram observados em 36,6% e 33,7% dos participantes, respetivamente.
Dos 1753 participantes, 1697 (97%) tinham dados sobre a história familiar de diabetes mellitus, e destes, 46% tinham história familiar positiva. A duração média da diabetes mellitus foi de 6,67 ± 6,02 anos.
Cerca de dois terços (1641, 66,8%) dos participantes apresentavam níveis da hemoglobina glicosilada iguais ou superiores a 7%.
O valor médio da glicémia era de 11.7 ± 5.9 mmol/l. A maioria dos participantes não fumava (96.6%) e 679 (39.8%) referiu consumir álcool.
A frequência da hipertensão arterial foi de 48% (839 de 1753).
A tabela 3 mostra a distribuição da hipertensão arterial de acordo com as características demográficas e clínicas da população em estudo. A frequência da hipertensão arterial foi significativamente maior (51,4%) entre as mulheres (p=0.01) e aumentou com a idade (p=0,00).
Características | Total | Hpertensão arterial | p value | |
---|---|---|---|---|
Sim | Não | |||
n (%) | n (%) | n (%) | ||
Sexo | ||||
Feminino | 950 (54,2) | 488 (51,4) | 462 (48,6) | 0,01 |
Masculino | 803 (45,8) | 351 (43,7) | 452 (56,3) | |
Idade (anos) | ||||
< 50 | 637 (36,3) | 229 (36) | 408 (64) | 0,00 |
50-60 | 629 (35,9) | 323 (51) | 306 (49) | |
> 60 | 487 (27,2) | 287 (59) | 200 (41) | |
IMC* (kg/m2) | ||||
Baixo peso | 66 (3,8) | 19 (28,8) | 47 (71,2) | 0,00 |
IMC* normal | 454 (25,9) | 175 (38,5) | 279 (61,5) | |
Excesso de peso | 642 (36,6) | 302 (47) | 340 (53) | |
Obesidade | 591 (33,7) | 343 (58) | 248 (42) | |
Consumo de tabaco | ||||
Sim | 60 (3,4) | 26 (43) | 34 (57) | 0,475 |
Não | 1693 (96,6) | 813 (48) | 880 (52) | |
Consumo de álcool | ||||
Sim | 697 (39,8) | 334 (48) | 363 (52) | 0,968 |
Não | 1056 (60,2) | 505 (48) | 551 (52) | |
Duração da Diabetes Mellitus | ||||
< 5 | 1128 (64,3) | 514 (46) | 614 (54) | 0,016 |
5-10 | 422 (24,1) | 212 (50,2) | 210 (49,8) | |
> 10 | 203 (11,6) | 113 (56) | 90 (44) | |
Hemoglobina glicosilada (n = 1641) | ||||
≥ 7% | 1097 (66,8) | 515 (47) | 582 (53) | 0,322 |
< 7% | 656 (33,2) | 324 (49) | 332 (51) | |
Colesterol total (n = 1688) | ||||
Desejável | 913 (54,7) | 416 (46) | 497 (54) | 0,024 |
Limítrofe | 445 (26,7) | 212 (48) | 233 (52) | |
Alto | 310 (18,6) | 169 (55) | 141 (45) |
* Índice de Massa Corporal
Os participantes com excesso de peso e com obesidade apresentaram frequências de hipertensão arterial significativamente maiores (47% vs. 58%). Quanto maior foi a duração da diabetes mellitus (p=0.016) e os níveis de colesterol total (p=0.024), mais alta foi a frequência da hipertensão arterial. Na análise de regressão logística foi encontrada associação positiva e estaticamente significativa entre a hipertensão arterial e a idade e o índice de massa corporal.
Características | OR | Intervalo de confiança |
---|---|---|
Sexo | ||
Masculino | 1 | - |
Feminino | 1,2 | 0,978-1,462 |
Idade (Anos) | ||
< 50 Anos | 1 | - |
50-60 Anos | 1,9 | 1,475-2,339 |
> 60 Anoa | 2,6 | 1,987-3,283 |
Índice de Massa Coporal (kg/m2) | ||
Baixo peso | 1 | - |
IMC* NORMAL | 1,5 | 0,848-2,667 |
Sobrepeso | 2,1 | 1,199-3,693 |
Obesidade | 3,3 | 1,881-5,861 |
Consumo de Tabaco | ||
Não | 1 | - |
Sim | 0,9 | 0,552-1,606 |
Consumo de Álcool | ||
Não | 1 | - |
Sim | 1,02 | 0,840-1,252 |
Duração da Diabetes Mellitus | ||
< 5 Anos | 1 | - |
5-10 Anos | 1,2 | 0,915-1,461 |
> 10 Anos | 1,2 | 0,908-1,705 |
Colesterol total (N = 1668) | ||
Desejável | 1 | - |
Limítrofe | 1,02 | 0,808-1,289 |
Alto | 1,3 | 0,079-0,972 |
* Índice de Massa Corporal
Quando comparado ao grupo de participantes com menos de 50 anos, a chance de ser hipertenso aumenta em 1.9 vezes no grupo entre 50 e 60 anos (IC: 1.475-2.339) e em 2.6 vezes entre o grupo com mais de 60 anos (IC: 1.987-3.283).
Os participantes com sobrepeso e obesidade, apresentam 2.1 (IC: 1.199-3.693) e 3.3 (IC:1.881-5.861) vezes mais chances de ser hipertenso quando comparados com os indivíduos de baixo peso.
Discussão
O presente trabalho analisou a frequência e os factores associados à hipertensão arterial entre os pacientes portadores de diabetes mellitus tipo 2 atendidos na Associação Moçambicana dos Diabéticos. Os resultados indicam que a hipertensão arterial é uma co-morbilidade comum entre estes pacientes e que está significativamente associada à idade e ao índice de massa corporal.
A prevalência da hipertensão neste estudo (47,9%) é equiparável às prevalências encontradas nos estudos realizados por Solomon, Tamiru, & Alemseged (2010) no sudoeste da Etiópia (46,7%), por Unadike, Eregie, & Ohwovoriole (2011) em Benin, Nigéria (54,2%) e por Tadesse, Amare, Hailemariam, & Gebremariam (2018) no sul da Etiópia (55%).
Alguns estudos encontraram prevalências mais altas em relação a este estudo, como os realizados por Kemche, Ulrich, Foudjo, & Fokou (2020) em Camarões (86,2%) e por Hashemizadeh & Branch (2014) no Irão (70%). Alguns dos fatores que podem explicar estas prevalências mais altas, são o uso de uma definição diferente da hipertensão arterial (³130/80 mmHg) no estudo realizado em Camarões e o facto da média de idades dos participantes no estudo realizado no Irão ser mais alta (62,9 anos) em relação à dos participantes deste estudo (54,4 anos).
Por outro lado, um estudo realizado na Índia encontrou uma prevalência mais baixa (25,6%) em relação á encontrada neste estudo (Venugopal & Mohammed, 2014). Na análise de regressão logística, os pacientes com idade avançada apresentaram maior probabilidade de serem hipertensos. Este achado corrobora com a literatura e com os estudos realizados na Etiópia por (Tadesse et al., 2018), por Hashemizadeh & Branch (2014), no Irão, por Berraho et al. (2012) em Marrocos e por Mengesha (2007) em Botswana. O aumento da resistência vascular sistémica e da rigidez da vasculatura contribuem para o desenvolvimento da hipertensão arterial nos idosos (Foëx & Sear, 2004).
O estudo demonstrou ainda, que os pacientes com sobrepeso e obesidade têm maior chance de ter hipertensão arterial quando comparados com aqueles de baixo peso ou com índice de massa corporal normal. Resultados similares foram demonstrados em estudos realizados por Hashemizadeh & Branch (2014) no Irão, por Berraho et al., (2012) em Marrocos, por (Mengesha (2007) em Botswana e por Akalu & Belsti (2020) na Etiópia. Os mecanismos que explicam esta associação incluem a disfunção dos adipócitos, que contribui para resistência vascular, disfunção dos sistemas nervoso simpático e do Sistema Renina Angiotensina Aldosterona bem como de alterações estruturais e funcionais do rim (DeMarco, Arror, & Sowers, 2015; Schütten, Houben, De Leeuw, & Stehouwer, 2017).
Conclusão
A hipertensão arterial, com uma prevalência de 47,9%, é uma co-morbilidade comum entre os pacientes com diabetes mellitus tipo 2 seguidos na AMODIA e está associada à idade avançada, ao excesso de peso e a obesidade. Recomenda-se assim, o desenho e a implementação de políticas direcionadas para o controlo do peso nos pacientes com diabetes mellitus tipo 2, como forma de evitar o desenvolvimento da hipertensão arterial neste grupo de doentes, contribuindo assim para redução da morbi-mortalidade decorrente da associação das duas patologias.