Introdução
As queimaduras são uma das principais causas de hospitalização, e estão associadas a uma morbilidade e mortalidade significativas, particularmente em crianças com idade inferior a quatro anos (1)(2). Em todo mundo, entre todas as causas de morte devido a lesões, em crianças menores de 5 anos, as queimaduras são a principal causa sendo que 95% destas ocorrem em países de baixa renda (3). As queimaduras na infância constituem uma enorme carga socioeconómica sobre os indivíduos, suas famílias e serviços de saúde (4) e constituem o quarto tipo de trauma mais comum em todo o mundo, após acidentes de trânsito, quedas e violência interpessoal (5). Estudos realizados demonstraram que em populações pediátricas, queimaduras por escaldões representam o mecanismo mais frequente, correspondendo a cerca de 60% a 75% de todos os pacientes queimados hospitalizados, seguido por chama e queimaduras de contacto (6).
As crianças, devido à curiosidade e imaturidade física e cognitiva, possuem alta susceptibilidade à ocorrência de acidentes. A maior incidência de queimaduras nos membros e em regiões superiores do corpo pode estar relacionada com a posição da criança em relação ao agente causador. Crianças pequenas puxam para perto dos seus corpos recipientes com conteúdo quente, como panelas no fogão, travessas na mesa e bacias com roupa de molho em água quente. (7). Dessa forma, em razão das particularidades que as tornam mais vulneráveis, demandam uma vigilância intensa e actuação eficaz dos adultos, com o intuito de promover sua protecção e o bem-estar (8).
Em Moçambique não se conhece a prevalência e a taxa de mortalidade por queimadura em crianças. Um estudo realizado em 2015, no Hospital Central de Maputo (HCM), em Moçambique, com uma amostra de 39 crianças com queimadura mostrou que a maioria das queimaduras tinha ocorrido devido a escaldões (26/39), principalmente através da água do banho, seguido por queimaduras de fogo (11/39) e que mais de um quarto das queimaduras ocorreu na ausência de um cuidador (9). O presente estudo foi realizado com o objectivo de caracterizar os factores associados aos diferentes tipos de queimaduras em crianças internadas no Hospital Central de Maputo - Moçambique, no período de 2015-2017.
Métodos
O HCM localiza-se na cidade de Maputo e foi fundado em 1906, é de nível quaternário de referência nacional. Possui uma rede integrada de serviços, dos quais, sete Departamentos de referência onde estão inclusos serviços de apoio clínico, a destacar: Bloco Operatório, Urgências de Adultos, Unidade de Cuidados Intensivos, Serviço de Anestesia e Dor, Unidade de Hemodiálise, Banco de Sangue, Laboratório de Análises Clínicas, Imagiologia, Medicina Física e de Reabilitação, Medicina Legal, Anatomia Patológica, Central de Esterilização, Farmácia, Arquivo Clínico e Administração. O Departamento de Pediatria é de referência nacional e serve à população da cidade e província de Maputo. Tem uma capacidade de trezentas e vinte e cinco (325) camas que correspondem a 21,7% do total das camas existentes no HCM e estão distribuídas em nove Serviços: Urgência 39 camas, Neonatologia 80 camas, Lactentes 35 camas; Doenças Gerais 49 camas, Malnutrição 27 camas, Infecto-contagiosas 30 camas, Pneumologia Pediátrica 36 camas e Cirurgia Pediátrica 30 camas. No Departamento existem três sectores, nomeadamente, (i) internamento, (ii) atendimento externo e (iii) sector administrativo.
Foi realizado um estudo observacional analítico e transversal retrospectivo. O Departamento de estatística do Hospital Central de Maputo registou entre os anos 2015 a 2017 um total de 442 casos de queimaduras em crianças, dos 93 (45%) do sexo feminino e 113 (55%) do sexo masculino.
Em 2015 foram internadas 160 (36%) crianças das quais 73 crianças são do sexo feminino e 87 do sexo masculino, em 2016 foram internadas 163 (37%) crianças e destas 64 são do sexo feminino e 99 são do sexo masculino e em 2017 foram internadas 119 (27%) crianças das quais 52 do sexo feminino e 57 do sexo masculino. Foi calculada uma amostra com a base na fórmula:
Tendo um nível de confiança de 95% e assumindo uma margem de erro de 5%, obteve-se uma amostra total de 206 sendo 93 (45%) do sexo feminino e 113 (55%) do sexo masculino. Para calcular a mostra correspondente a cada ano primeiro calculou-se a proporção: Número de casos registados em cada ano por total de casos registados em 3 anos e multiplicou-se por número total de amostra (206). Tendo em conta que a população foi dividida em 2 estratos bem definidos: Sexo feminino e masculino. Para calcular o número de crianças por sexo em cada ano dividiu-se o total de crianças por sexo pelo total de ambos sexos nesse ano e multiplicou-se pelo tamanho de amostra correspondente ao referente ano.
Para amostra anual foi assumido 75 casos em 2015 dos quais 34 eram de sexo feminino e 41 do sexo masculino, 76 casos em 2016 dos quais 30 crianças eram de sexo feminino e 40 de sexo masculino e 55 casos em 2017 dos quais 29 são do sexo feminino e 26 de sexo masculino. Em relação à proveniência das crianças vítimas de queimaduras a província e cidade de Maputo possuem maiores percentagens das crianças internadas 82 (39,8%) e 81 (39,3%) respectivamente.
A colheita de dados foi feita nos processos clínicos e livros de registo dos serviços de Urgência de Pediatria, Cirurgia Pediátrica e Cirurgia Plástica e através de uma ficha contendo variáveis qualitativas e quantitativas. Foi feita análise exploratória de dados para a descrição do perfil sociodemográfico das crianças vítimas de queimaduras. Para verificar a existência de associação entre os factores associados, foi aplicado o teste do Qui-quadrado (χ2). Foi feita Análise de Variância ou ANOVA para as comparações médias múltiplas em cada categoria do factor, com auxílio do programa estatístico SPSS versão 22 e o nível de significância estabelecido foi de 5%. Os resultados obtidos foram apresentados em tabelas comparativas.
Aspectos Éticos
O estudo teve início após autorização da Direcção do HCM (carta com referência 997/024/DCIEFHCM/18) e aprovação pelo Comité Institucional de Bioética em Saúde da Faculdade de Medicina e HCM (CIBS FM & HCM) com referência CIBS FM & HCM/056/2018 e solicitou-se a aprovação do Comité Científico da Faculdade de Medicina & HCM com o número de referência |0|0|5|6|-|1|8| CIBS FM&HCM/56/2018.
Resultados
Das 206 crianças envolvidas no estudo, 113 (54,9%) são do sexo masculino e com uma variação da idade (2 meses e 14 anos) e 93 (45,1%) do sexo feminino e a variação da idade foi de 6 meses e 14 anos, (razão M: F 1,2: 1). Em ambos os sexos, a idade mediana foi de 4 anos e a idade média das crianças foi de 5,3 ± 4,27. As crianças com 2 anos de idade apresentaram maior proporção de pacientes internados 39 (18,9%).
Queimaduras de acordo com os grupos etários e sexo
Em relação a idade, o grupo etário de 1-4 anos apresentou maior proporção 112 (54,4%) das crianças com queimaduras em ambos os sexos comparando com outros grupos etários. Não houve diferença significativa entre o sexo e o número de crianças internadas em cada grupo etário (p = 0,279).
Grupos etários versus agentes das queimaduras
As lesões mais frequentes em todos os grupos etários foram queimaduras por líquidos quentes, representando 136 (66%), seguida por chamas/fogo 57 (27,7%) e por corrente eléctrica 13 (6,3%). Em relação aos grupos etários, as crianças no intervalo de 1 a 4 anos registaram maior ocorrência de queimaduras 86 (41,7%) e a causa foram os líquidos quentes, 20 (9,7%) por chamas/fogo e em menor proporção por queimaduras por corrente eléctrica 6 (2,9%). Houve uma relação significativa entre os grupos etários e as causas de queimaduras (P=0,020).
A idade média em relação às queimaduras por líquidos quentes, chamas/fogo e corrente eléctrica foram 4.56±4.0, 6.61±4.44 e 7.38±4.5 anos e mediana 3, 5 e 8 anos respectivamente. A média da idade foi significativamente diferente entre as causas de queimaduras (p=0,002).
Apesar das crianças do sexo masculino constituírem o maior número de pacientes internados, a relação sexo da criança e as causas da queimadura não foi significativa (p=0,516).
Total (N) | Causas de queimaduras N (%) | P | |||
Líquidos quentes | Fogo/ chamas | Corrente eléctrica | |||
<1 Ano | 13(6,3%) | 8 (3,9%) | 5 (3,9%) | 0 (0%) | |
1-4 Anos | 112 (54,4%) | 86 (41,7%) | 20 (9,7%) | 6 (2,9%) | |
5 -9 Anos | 41 (19,9%) | 22 (10,7%) | 16 (7,8%) | 3 (1,5%) | |
10-14 Anos | 40 (19,4%) | 20(9,7) | 16 (7,8%) | 4 (1,9%) | |
Total | 206 (100%) | 136 (66%) | 57 (27,7%) | 13 (6,3%) | P=0,020 |
Idade média + Desvio Padrão | 5±4.27 | 4,56±4 | 6,61±4,44 | 7,38±4,5 | |
Idade mediana (Min-Máx) | 4 (0,2-14) | 3 (0,2-14) | 5 (0,3-14) | 8 (2-14) | P= 0,002 |
Masculino | 113 | 72 (35%) | 32 (15,5%) | 9 (4,4%) | |
Feminino | 93 | 64 (31,1%) | 25 (12,1%) | 4 (1,9%) | P= 0,516 |
Características clínicas | |||||
Queimaduras não infectadas | 187 (90,8%) | 122(59,2%) | 52 (25,2%) | 13 (6,3%) | |
Queimaduras infectadas | 9 (9,2%) | 14 (6,8%) | 5 (2,4%) | 0 (0%) | |
Grau não especificado | 42 (20,4%) | 26 (12,6%) | 8 (3,9%) | 8 (3,9%) | |
II grau superficial e profundo | 118 (57,3%) | 91 (44,2%) | 25 (12,1%) | 2 (1,0%) | |
II e III grau | 28 (13,6%) | 14 (6,8%) | 0 (0%) | 14 (6,8%) | |
III grau | 18 (8,7%) | 5 (2,4%) | 10 (4,9%) | 3 (1,4%) | p=0,000 |
Média da superfície queimada | N=147 (15±9,7) | N=99 (13,34±8,02) | N=43 (18,8±11,12) | N=5 (19,2±17,9) | |
Mediana (mín-máx) | 14 (1-50%) | 11 (1- 40%) | 16 (3-50%) | 13(5-50%) | p=0,005 |
Características clínicas versus causas das queimaduras
Em 42 (20,4%) das crianças, o grau das lesões não foi especificado sendo os líquidos quentes foram as causas de queimaduras em 26 (12,6%) crianças neste grupo. As queimaduras do 2º grau superficial e profundo foram as mais frequentes em comparação com as outras profundidades 118 (57,3%), destas a maior proporção 91 (44,2%) foi por líquidos quentes. Nas lesões do 2º e 3º grau associado foi registado 28 (13,6%) e o maior registo 14 (6,8%) foi para líquidos quentes e igual proporção para queimaduras eléctricas e não houve registo de crianças com queimaduras por chamas/fogo. Foram registadas 18 (8,7%) crianças com lesões do 3º grau, a maior proporção 10 (4,9%) foi registada em queimaduras por chamas/fogo. A relação entre a profundidade da lesão e a causa da queimadura foi significativa (p=0,000).
Dos 206 processos clínicos analisados, a superfície corporal queimada estava registada em apenas 147 sendo que destes a percentagem média da superfície corporal queimada foi de 15±9,7 e 50% das crianças internadas tinham no máximo 14% da área corporal queimada. Em todos os casos a média da superfície corporal queimada não foi significativamente diferente entre crianças do sexo masculino (14,45% ± 9,6; n = 86) e crianças do sexo feminino (16,08 ± 9,8; n = 61), (p = 0,322). As crianças com queimaduras por líquidos quentes apresentaram uma média inferior da superfície corporal queimada (13,34±8,02 n=99), e as médias elevadas da superfície corporal queimada foram verificadas em queimaduras por chamas/fogo e eléctricas (18,8±11,12; n=43) e (19,2±17,9; n=5), respectivamente. Metade das crianças com queimaduras por chamas/fogo tinham no máximo uma superfície corporal queimada de 16%, e esta superfície foi considerada elevada em comparação a mediana da superfície corporal queimada por líquidos quentes e corrente eléctrica. A percentagem média da superfície de queimadura foi significativamente diferente entre as causas de queimaduras (p= 0,005).
Superfície corporal versus tipo de agente
Metade das crianças com queimaduras por líquidos tinha área da superfície queimada de 11% no máximo, considerada inferior em relação a 50% das áreas afectadas por queimaduras por corrente e chamas/fogo. Metade das crianças com queimaduras por chamas/fogo tinham no máximo uma superfície queimada de 16%, considerada uma área afectada superior em relação as outras superfícies corporais queimadas por líquidos quentes e corrente eléctricas. Nas queimaduras por líquidos quentes e chamas/fogo observou-se que algumas crianças tinham valores das superfícies corporais queimadas que diferenciam drasticamente (outliers) de outras superfícies e tais valores considerados outliers moderados enquanto nas queimaduras por corrente eléctrica o único valor é considerado um outlier mais afastado.
Superfície corporal afectada e graus de queimadura
Como ilustra a tabela 4, 50% das queimaduras com lesões do 2º e 3º grau associado tinham uma área da superfície corporal queimada de 16% no máximo e as do 3º grau 50% das crianças tinham até 9,5% da superfície corporal queimada. Em relação a todos os graus de queimaduras observou-se que algumas crianças registaram valores discrepantes da superfície corporal queimada em comparação com outras crianças. Com uma confiança de 95%, verificou-se que as crianças com a profundidade das lesões correspondente ao 2º e 3º grau associado registaram um valor médio da superfície corporal queimada superior e correspondente a 20,06±12,31 e os valores médios inferiores da superfície corporal queimada foram observados nas crianças com lesões do 2º grau superficial e profundo e 3º grau 14,20±8,46 e 14,39±12,03 respectivamente. O limite inferior da superfície corporal nas queimaduras do 2º e 3º grau associado assemelha-se aos valores médios da superfície corporal queimada em crianças com queimaduras do 2º grau superficial profundo e 3º grau.
Gravidade das queimaduras
No Hospital central Central do Maputo, a abordagem do grande queimado tem como critérios: Crianças com queimaduras do 2º grau> 10%, queimaduras do 3º grau> 5%, queimaduras na cabeça, face, pescoço com ou sem lesão nas vias aéreas, queimaduras do períneo, genitálias, articulações ou superfícies circulares com compromisso ventilatório/ circulário, queimaduras e traumatismo associado e queimaduras eléctrica de alta voltagem> 100 Volts. Olhando para a tabela 5, foram identificadas no estudo 89 (61,4%) crianças cuja superfície corporal afectada estava acima de 10% em relação a todos graus de queimaduras.
II grau superficial e profundo | II e III grau | III grau | Total | |
---|---|---|---|---|
SCQ <5% | 15 (10,3%) | 2 (1,4%) | 3 (2,1%) | 20 (13,8%) |
SCQ de 5% a 10% | 27 (18,6%) | 4 (2,8%) | 5 (3,4%) | 36 (24,8%) |
SCQ> 10% | 65 (44,8%) | 18 (12, 4%) | 6 (4,1%) | 89 (61,4%) |
Total | 107 (73,8%) | 24 (16,6%) | 14 (9,7%) | 145 (100%) |
Também são consideradas graves as queimaduras significativas na cara, olhos, orelhas e na região genitália e articulações. Nas 206 crianças do estudo 24,3% tiveram os membros superiores acometidos, 22,8% o tórax/membros superiores e inferiores/abdómen/região genital/glúteos /coxas, 18,4% a cabeça/ tronco/membros superiores/membros inferiores e 17,5% a face/ pescoço/tórax/ membros superiores.
Regiões do corpo atingidas pelas queimaduras | N | % |
---|---|---|
Cabeça/Tronco/Membro (s) superior (s) / Membro (s) Inferior (s) | 38 | 18,4% |
Face/ Pescoço/ Tórax/ Membro (s) superior (s) | 36 | 17,5% |
Membro (s) superior (s) | 50 | 24,3% |
Membro (s) inferior (s) | 17 | 8,3% |
Tórax/ Membro (s) superior (s) e inferior (s)/ Abdómen/ Região genital/ Glúteos/ Coxa | 47 | 22,8% |
Abdómen/ Nádegas | 6 | 2,9% |
Cavidade Oral | 1 | 0,5% |
Região genital/ Períneo | 11 | 5,3% |
Total | 206 | 100,0% |
Tempo de internamento versus causas, profundidade e superfície corporal afectada
Analisando os resultados da tabela 7, as queimaduras por chamas/fogo foram responsáveis por período longo do tempo médio de internamento de 33,72±23,35, a variação de internamento foi de 1 a 137 dias, seguindo as crianças com queimaduras por líquidos quentes com o tempo médio de internamento de 18,89±17,65 dias com a variação do tempo foi de 1 a 101 dias e as crianças com queimaduras eléctricas permaneceram em média menos tempo de internamento 13,85±14,22 e variação foi de 1 a 45 dias. Em relação a profundidade as crianças com lesões do 3º grau e 2º e 3º grau associado em média ficaram internadas 36,17±24 e 33,39± 24,89 respectivamente. As crianças com lesões do 2º grau superficial e profundo, em média ficaram internadas 21,64± 19,37. Embora as crianças com lesões de 3º grau tenham ficado internadas em média mais dias a variação do tempo de internamento foi considerado reduzido (1-90 dias) em comparação com a variação do tempo de internamento das crianças com lesões de 2º e 3º grau associado (6-137 dias) e as crianças com lesões do 2º grau superficial e profundo (1-101 dias). Crianças com a superfície corporal queimada acima de 10% são as que mais tempo ficaram internadas e o tempo médio foi de 30±22,78, 50% das crianças tinham no máximo 25% a superfície corporal queimada e tempo reduzido de internamento registou-se em crianças com a superfície corporal queimada inferior a 5% em média foram 12,91±11,32 dias de internamento.
tempo de internamento | P | |||||
Causa das queimaduras | ||||||
Média ± S.D. Mediana (Min-Max) | Líquidos Quentes (N=136) 18,89±17,65 13,5 (1-101) | Fogo/ Chamas (N=57) 33,72±23,35 29 (1-137) | Corrente eléctrica (N=13) 13,85±14,22 8 (1-45) | P=0,000 | ||
Graus de queimaduras | ||||||
Média ± S.D. Mediana (Min-Max) | Grau não especificado (N=42) 12,64±9,4 12 (2-42) | II grau Superficial e Profundo (N=118) 21,64±19,37 16 (1-101) | II e III grau (N=28) 33,39±24,89 31 (6-137) | III grau (N=18) 36,17±24 34 (1-90) | P=0,002 | |
Superfície corporal afectada | ||||||
Média ± S.D. Mediana (Min-Max) | <5% (N=22) 12,91±11,32 10,5 (1-39) | 5%-10% (N=37) 19,92±18,66 14 (1-90) | >10% (N=90) 30±22,78 25 (1-137) | P=0,000 |
Discussão
Compreender a problemática por trás das queimaduras nas crianças é fundamental para o desenvolvimento de políticas de saúde pública mais fortes em Moçambique. O nosso estudo identificou vários factores associados a queimaduras na infância que ocorreram principalmente na cidade de capital Maputo e distritos vizinhos.
De acordo com o presente estudo a maior ocorrência de queimaduras foi em crianças de 2 anos com 39 (18,9%), o que está de acordo com estudos publicados (4) que demonstraram que nesta fase elas as crianças são curiosas e querem tocar as coisas ao seu redor, sem estarem cientes dos perigos potenciais. A proporção elevada de queimaduras em crianças pequenas pode também estar relacionada ao desenvolvimento da criança, aos factores socioeconómicos e à vigilância inadequada dos pais ou responsáveis (10).
A maioria das vítimas 113 (54,9%) deste estudo era do sexo masculino e este resultado é similar a alguns estudos realizados (11) (12). De acordo com Pedro et al. (13) as crianças do sexo masculino gostam de participar em brincadeiras de maior risco e possuem maior impulso em actividades relacionadas à curiosidade, quando distantes da supervisão de adultos. Apesar das crianças do sexo masculino terem registado maior número de pacientes internados, a relação sexo da criança e as causas da queimadura não foi significativa.
No presente estudo, as lesões mais frequentes em todos os grupos etários foram queimaduras por líquidos quentes, representando 136 (66%) de todas as lesões em segundo lugar chamas/fogo 57 (26,7%). Como ressaltam Pedro et. al (13) a causa mais comum de queimaduras pediátricas, independentemente do país e situação socioeconómica, é o contacto com líquidos quentes e, em segundo lugar, a chama directa. As queimaduras do 2º grau superficial e profundo foram as mais frequentes 118 (57,3%), a maior proporção 91 (44,2%) foi por líquidos quentes, este resultado assemelha-se a outros estudos (10) (14). As regiões corporais mais atingidas nesta pesquisa foram os membros superiores 50 (24,3%).
O estudo de Katharine et al. (2014) sugere que os membros superiores estão mais expostos com actividades manuais e reacções de defesa, colocando-os como linha de frente na ocorrência do evento (15). A maior prevalência da superfície corporal queimada neste estudo foi acima 10,0%, sendo que a maioria das lesões foram do 2º grau superficial e profundo. A extensão de superfície corporal queimada e graus das queimaduras são directamente proporcionais à gravidade clínica do paciente e ao risco de complicações e/ou morte (16).
Quanto maior a superfície corporal acometida, maiores serão as alterações metabólicas. As reservas energéticas se esgotam rapidamente, tornando imperativo o tratamento nutricional (17). Em média o tempo de internamento foi de 23 dias, representando um marcador importante para ocorrência de complicações, associadas à maior área da superfície queimada e à profundidade da lesão. O tempo médio de internamento foi diferente em relação às causas de queimaduras e as chamas/fogo e lesões com profundidade de 3º grau e 2º e 3º grau foram responsáveis por internamento mais prolongado. As queimaduras por chamas/fogo apresentam características clínicas de uma lesão considerada grave e este facto pode ser explicado por um conjunto de factores tais como, maior perda da barreira de protecção, lesão por inalação e as lesões são profundas. O grau em que uma queimadura causa danos à pele depende de muitos factores, incluindo a duração da intensidade do calor, espessura da pele, a área exposta e idade (18). O presente estudo mostrou que a época com maior registo de queimaduras por escaldão foi a estação fria (Abril à Setembro). No nosso contexto, a ocorrência de queimaduras nesse período é frequente devido principalmente ao manuseio de líquidos quentes (principalmente a água) para banhos e para o consumo.
Conclusões e Recomendações
Os resultados demonstram que as maiores vítimas de queimaduras são as crianças menores de 5 anos, que requerem cuidados especiais devido a sua imaturidade. Houve maior proporção de crianças no intervalo de 1 ano a 4 anos, nessa faixa etária o maior número de vítimas tem 2 anos de idade, e as crianças do sexo masculino foram predominantes. A principal causa de queimadura foram os líquidos quentes, e a profundidade das lesões foi de 2º grau superficial e profundo. As crianças com queimaduras por chamas/fogo em média permaneceram mais dias internadas 33,72±23,35 dias em comparação com as crianças que contraíram queimaduras por líquidos quentes e eléctricas. Em média o tempo longo de internamento também foi registado em crianças com queimaduras de 3º grau com o tempo de 36,17± 24 dias e crianças com queimaduras do 2º e 3º grau associado o tempo foi de 33,39±24,89 dias. Sendo a faixa entre 1-4 anos a mais afectada, recomenda-se uma maior vigilância por parte dos pais e cuidadores das crianças no sentido de mantê-las longe da cozinha e do fogão, deixar longe do alcance das crianças comidas e líquidos quentes, não se utilizar toalhas de mesa compridas sob o risco de criança poder puxar esses tecidos e resultar em queimaduras.
Tratando-se de um estudo em que toda a informação foi baseada em registos disponíveis, a qualidade dos processos clínicos com dados incompletos sobre os participantes ou sem informação necessária para o estudo foi a principal limitação. Por outro lado, o facto de ser um estudo de base hospitalar, os resultados não podem ser generalizados para o nível comunitário. No entanto, espera-se que os resultados do presente estudo contribuam com informações sobre a magnitude e a gravidade de complicações de queimaduras em crianças e, deste modo, servir de instrumento na contribuição para definição de melhores estratégias no tratamento com vista a reduzir desfechos fatais. Por outro lado, os resultados do estudo podem ajudar a direccionar programas preventivos, através de implementação de políticas específicas, promovendo campanhas de prevenção voltadas a população-alvo, acções educativas nos principais meios de comunicação sobre a saúde no ambiente doméstico, e a participação familiar na elaboração de acções preventivas para as queimaduras infantis.