1. Introdução
As perspectivas dos pacientes, estudantes de graduação, docentes, médicos e gestores são relevantes no processo da aprendizagem e do exercício profissional. Os desafios para a medicina no século XXI avolumaram-se com a pandemia da COVID-19 e, quaisquer que sejam, o profissionalismo permeia as dúvidas, as decisões, as evidências científicas e as ações, tanto no processo de aprendizagem quanto no exercício da atividade médica. E como nunca, é preciso compreender as diferentes perspectivas com inteligência, humildade e empatia. Neste contexto, parece relevante uma definição e diretrizes para orientar leigos e profissionais (Morihara et al., 2013; Birden et al., 2014; Barnhoorn & Youngson, 2014).
Profissionalismo pode ser expresso como um conjunto de valores, comportamentos e responsabilidades aplicados no quotidiano da atenção ao paciente e nas relações profissionais, e coloca relevo na totalidade da ação profissional (Gontijo et al., 2013; Ramos, 2014). Franco et al. (2015) indicam a necessidade de uma definição de profissionalismo que incida sobre um conjunto de competências: ética, altruísmo, responsabilidade, valores humanísticos e compromisso social. Sendo uma competência central dos médicos, precisa ser incorporada ao caminho percorrido na prégraduação, com recolha continuada de dados avaliáveis (Mueller, 2009, 2015).
Como o comportamento profissional é aprendido de maneira mais eficaz por meio de modelos de comportamento, a conscientização do corpo docente sobre os valores dos estudantes e o comprometimento docente na abordagem de lacunas podem melhorar a educação profissional (Jauregui et al., 2016). Um bom exemplo é a oportunidade que a aprendizagem de Anatomia representa de apresentar o conceito de profissionalismo ao estudante de medicina do primeiro ano, i.e. logo no início da formação médica (Karunakaran et al., 2017). No horizonte da modelagem de comportamento, uma experiência de grande riqueza de aprendizagem em profissionalismo é a análise planejada da exposição dos estudantes a comportamentos profissionais e não profissionais (Franco et al., 2017, 2018).
O profissionalismo pode ser descortinado durante a graduação e residência de forma objetiva, abrangente e consistente, em particular considerando os desafios atuais do exercício médico, incluindo a disponibilidade de conteúdo e qualidade dos vídeos do YouTube sobre o tema profissionalismo médico (Braga, 2019; Ahmad et al., 2020; Stehman et al., 2020).
Aprofundar as reflexões e ações para compreender as relações entre a medicina e a sociedade, de forma técnica e humana não é simples, e pode ampliar a complexidade ao adicionarmos o mundo digital e a inteligência artificial. (Cruess & Cruess, 2020) O impacto do conjunto tecnológico sobre o exercício da medicina já se faz evidente quando abala o papel de médico como o guardião dos cuidados de saúde, quando vem aumentando o atendimento baseado em turnos e amplia os cuidados baseados em equipa interprofissional. O exercício da medicina exige novas habilidades, onde memória e acumulação de conhecimento diminuirão em importância em contrapartida às habilidades de gestão de informações (Alrassi et al., 2020). Entretanto, é inevitável a reflexão, à luz das novas descobertas da neurociência, a possibilidade de gerir informações, sem o profundo conhecimento destas informações e de como elas se integram na determinação da saúde e da doença humana.
Assim, considerando a importância da percepção do estudante a respeito de profissionalismo e a preocupação com o impacto da mudança das atividades presenciais para on-line impostas pela pandemia, o objetivo deste relato foi documentar uma experiência pedagógica envolvendo a representação significativa dos estudantes da unidade curricular nuclear de humanidades médicas, no primeiro ano da Faculdade de Medicina da Universidade do Porto.
2. Metodologia
A abrupta adaptação das atividades de aprendizagem para o modo on-line gerou vários pontos de preocupação docente. A necessidade de percepção concreta do processo de aprendizagem-ensino-avaliação, nos fez propor perguntas objetivas, no início e final dos seminários sobre profissionalismo, que nos permitissem perceber os significados já existentes e se a experiência da abordagem on-line conseguiria provocar mudanças nesses significados. A construção desse texto é produto de uma narrativa reflexiva sobre uma experimentação pedagógica num momento em que a situação sanitária exigiu uma brusca mudança das atividades de aprendizagem presenciais para on-line.
A experimentação foi planejada para possibilitar uma resposta voluntária, rápida, analisável e que viabilizasse uma devolutiva útil aos estudantes. O número de alunos inscritos na unidade curricular foi 277, divididos em quatro turmas. Deste modo, foi solicitado, no início dos quatro seminários sobre profissionalismo, o envio por e-mail de duas palavras que os estudantes associavam ao profissionalismo ou ao não-profissionalismo. A mesma solicitação foi feita no término de cada seminário, ampliada para quatro palavras. A diferença entre duas e quatro palavras foi para tentar perceber o percentual de permanência das duas palavras iniciais entre as quatro finais. Todas as respostas, sem associação nominal, foram transferidas para uma folha Exel®, de forma somativa, a partir da qual foram obtidos os resultados. Como a análise foi anônima, foi possível computar apenas o número de participantes da ação inicial (duas palavras) e final (quatro palavras), não sendo possível obter o número dos participantes que participaram de ambas as ações.
3. Resultados
A solicitação de envio por e-mail de duas ou quatro palavras associadas ao profissionalismo ou ao não-profissionalismo, respectivamente no início ou ao final dos seminários revelou um total de 368 palavras enviadas (Figura 1).
Um total de 91 estudantes enviaram, ao iniciar os seminários, 182 palavras que foram agrupadas pela igualdade, resultando em 59 palavras diversas, sendo Responsabilidade, Competência, Ética, Respeito e Dedicação, as mais frequentemente associadas ao profissionalismo (Figura 2).
No final do seminário, 173 estudantes enviaram 692 palavras associadas ao profissionalismo, que foram agrupadas pela igualdade, resultando em 100 palavras diversas, sendo Compaixão, Confiança, Competência, Ética e Respeito as mais frequentemente associadas ao profissionalismo (Figura 3)
Entre as 59 palavras enviadas inicialmente, 37 (63%) mantiveram-se entre as 100 enviadas posteriormente. E foi bastante interessante documentar o efeito da apresentação do tema no seminário e como o conteúdo foi suficiente para causar impacto positivo nos estudantes (Figura 4).
Chama atenção a referência da palavra compaixão que foi citada por apenas 1 (1%) dos 91 estudantes que enviaram duas palavras no início do seminário e passou a ser referenciada por 116 (67%) dos 173 estudantes que enviaram quatro palavras após o final do seminário.
A solicitação de envio por e-mail de duas palavras ou quatro palavras associadas ao não-profissionalismo foi, respectivamente, feita no início e final do seminário. Esta proposta foi feita apenas num dos grupos e 55 enviaram duas palavras e 50, quatro palavras (Figura 1). No grupo que enviou duas palavras, o total foi 110 que, agrupadas pela semelhança, resultou em 33 palavras diversas, sendo Desrespeito, Irresponsabilidade, Parcialidade e Incompetente as mais frequentemente associadas ao não-profissionalismo.
Ao final do seminário, 50 estudantes enviaram 200 palavras, que foram agrupadas pela igualdade, resultando em 69 palavras diversas, sendo falta de compaixão, falta de empatia, desrespeito e incompetência as mais frequentemente associadas ao não-profissionalismo (Figura 5). Entre as 33 palavras enviadas inicialmente, 14 (42%) mantiveram-se entre as 69 enviadas posteriormente. E foi observado impacto positivo nos estudantes (Figura 5), chamando atenção a referência de falta de empatia, que foi citada por apenas 3 (5%) dos 55 estudantes que enviaram duas palavras e passou a ser referenciada por 21 (42%) dos 50 estudantes que enviaram quatro palavras após o final do seminário.
4. Discussão
A importância do profissionalismo na educação médica difunde-se progressivamente. Nos últimos anos, tem havido um grande foco na importância do profissionalismo na educação médica e no desenvolvimento de currículos profissionais eficazes. Estudos revelam que a compreensão do profissionalismo dos estudantes de medicina melhora e evolui ao longo do tempo através da autorreflexão, experiência e exploração (Hoonpongsimanont et al., 2018).
Byszewski et al. (2012) revelaram que estudantes do primeiro ano, com exposição mínima ao currículo do profissionalismo, identificaram sete domínios associados: autogestão e centro do paciente, ética e reputação profissional, confiabilidade, autoconsciência e autoaperfeiçoamento, imagem, proficiência e aprendizagem ao longo da vida e integridade. Na análise dos resultados deste estudo, responsabilidade, competência, ética, respeito e dedicação foram as palavras mais frequentemente associadas ao profissionalismo, com perfil próximo daqueles revelados por Byszewski.
Os comportamentos importantes na formação profissional eram transmitidos por modelos respeitados. Contudo, na contemporaneidade, essa abordagem não é mais suficiente. E as observações mais recentes apontam para a transversalidade do profissionalismo no currículo médico, para o desenvolvimento docente privilegiando atividades dedicadas à excelência na modelagem de papéis de atributos profissionalismo, em especial empatia, respeito, autoaperfeiçoamento contínuo e altruísmo (Byszewski et al.,2012).
Dos 173 estudantes que enviaram quatro palavras associadas ao profissionalismo, 67% das citações corresponderam a apenas 10 palavras: compaixão, confiança, competência, ética, respeito, responsabilidade, empatia, colaboração, humanismo e dedicação. Todas estas palavras têm um importante papel na prática profissional. Deste modo, a associação com uma prática integrada à reflexão estruturada, ações educativas e ao acompanhamento aos pacientes, poderá facilitar a integração dos valores (Merlo et al., 2021).
O nosso estudo apresenta algumas limitações, pois foi uma experiência de um único ano letivo e de uma instituição e com a participação de estudantes do primeiro ano, iniciantes do curso de Medicina. No entanto, estes achados somam-se a outros, sendo escassa a documentação, de alguma forma, da compreensão dos estudantes de medicina sobre o profissionalismo, no início da formação médica na prégraduação. Sattar et al. (2021) trabalharam com estudantes em transição das fases pré e pós clínica em que, apesar do intervalo de um ano, a compreensão do profissionalismo entre os estudantes se manteve estável.
5. Conclusão
Existem diferenças na percepção dos estudantes sobre profissionalismo e não-profissionalismo, antes e depois de uma exposição mínima ao conteúdo. Aspecto indicador da importância da abordagem transversal do conteúdo sobre profissionalismo, com maior força de modelagem na formação da identidade profissional. São necessários esforços contínuos para investir na evolução das percepções sobre profissionalismo e não-profissionalismo dos estudantes, em todas as instituições de formação médica.