Enquadramento teórico
Para compreender melhor qual a resposta da UE a estas duas crises económicas, urge contextualizar a União Europeia à luz das teorias das relações internacionais. A história da construção europeia demonstra que este começou por ser um projeto de integração supranacional e voluntária entre os Estados-nação europeus1. Contudo, alguns autores classificam a UE como um compromisso político único e que resulta, acima de tudo, das decisões tomadas pelos governos dos Estados-membros2. Por exemplo, o investigador Ben Rosamond3 fala numa organização internacional cuja tomada de decisão tem por base a interdependência política e a forma como os atores usam o seu poder, assente num sistema político altamente descentralizado e baseado no compromisso voluntário dos Estados-membros e dos seus cidadãos e dependente da ação dos governos dos países4.
Isto leva-nos a duas das principais perspetivas que explicam o processo da integração europeia, que dão respetivamente destaque aos atores não estatais e supranacionais (neofuncionalismo) e aos Estados (intergovernamentalismo). Se o primeiro quadro teórico vê o projeto europeu como uma conceção regional em que a cooperação é baseada em interesses não estatais5 e guiada por entidades supranacionais que se comprometem com o bem comum6, o segundo vê como um exemplo bem-sucedido de coordenação política no âmbito da qual os Estados atuam ao nível global com interesses nacionais, que são negociados em conjunto com vista a um acordo7.
No que toca à questão orçamental, o intergovernamentalismo - principalmente o liberal - explica melhor elementos como a manutenção da regra da unanimidade no que concerne ao Quadro Financeiro Plurianual ou às finanças da UE, já que os Estados-membros atuam no seio comunitário com base em preferências formadas ao nível nacional e que são negociadas em conjunto8. Para o intergovernamentalismo liberal, cabe às instituições supranacionais mediar estas negociações interestatais e atuar como legitimadoras das preferências internas, o que quer dizer que os Estados-membros são as peças centrais da integração europeia9. As políticas orçamentais, como as referentes ao Quadro Financeiro Plurianual, são adotadas através de processos intergovernamentais, sendo o Conselho da UE, no qual estão representados os Estados-membros, o principal órgão executivo e legislativo, que decide por unanimidade, e podendo a Comissão ter ideias políticas, mas sem sequer definir a agenda10.
Foi na formação de mais alto nível do Conselho, o Conselho Europeu, que surgiram as principais decisões (e tensões) na resposta às crises, como a recente aprovação do pacote de recuperação que incluiu uma emissão conjunta de dívida ao nível comunitário11.
As questões de orçamento implicam uma intensa negociação política porque as verbas representam os compromissos com os recursos necessários para atingir o bem público e, assim, os acordos entre os Estados-membros refletem escolhas políticas sobre alocação e distribuição de fundos12.
Na União Económica e Monetária (UEM), na qual se inserem as discussões sobre as verbas, a negociação intergovernamental prevê que todos saiam a ganhar, com maior poder para países mais fortes, como os do eixo franco-alemão, por terem sido fundadores e, ao longo da evolução da integração, terem desempenhado o papel de importantes motores da construção europeia13.
Criada com o objetivo político de assegurar cooperação e solidariedade entre os Estados-membros, a UEM ainda não está totalmente concluída, faltando maior integração ao nível orçamental e também maior responsabilização democrática14. Além de revelar as vulnerabilidades relativas à UEM, a crise financeira de 2008 afetou a integração europeia ao criar divergências e discussões internas altamente politizadas15. Este cenário levou a uma consequente reforma supranacional, com maior coordenação em termos orçamentais, aprofundamento económico e reforço do papel do Banco Central Europeu, pois em situações como crises os Estados-membros veem-se incapazes de controlar a direção e o ritmo da integração16.
Ainda assim, os interesses dos Estados-membros foram determinantes para a resposta então dada à recessão, tendo em conta os limites impostos nas negociações pelas divergentes preferências nacionais que resultaram na rejeição da emissão de dívida conjunta na UE17.
Nestas negociações de índole intergovernamental sobre a área económico-financeira na UE, os Estados-membros com maior poder, os que têm alternativas ao acordo negociado ou os que são mais pressionados internamente são mais propícios a aceitarem uma negociação difícil, relativamente aos países menos poderosos, o que revela que as características de cada país e também o seu poder de negociação podem condicionar uma discussão18.
Isto verificou-se, por exemplo, na crise financeira de 2008, quando as barreiras impostas pela Alemanha apoiada pela França levaram a UE a enveredar pelo caminho da austeridade, enquanto, em 2020, foi o eixo franco-alemão que avançou com as chamadas ‘corona bonds’, designação dada à emissão de dívida conjunta19.
Foi no seio do Conselho e do Conselho Europeu, em que se juntam países com diferentes características e interesses, que se levantaram as principais vozes con- tra uma emissão dívida conjunta na anterior crise.
O elefante na sala de 2011
Uma possível emissão conjunta de dívida na UE já era uma solução falada há vários anos, mas, que nem um elefante na sala, foi rejeitada até à crise pan- démica. Essa rejeição foi visível aquando da crise económica e política na zona euro devido ao colapso internacional do banco norte-americano Lehman Bro- thers, em 2008.
O projeto da moeda única sempre foi mais político e com vista ao aprofunda- mento da integração europeia do que económico e, por isso, aquando do colapso financeiro mundial, as salvaguardas do euro não foram suficientes e isso afetou principalmente os países com economias mais vulneráveis20.
Devido às divergências de rendimentos dos países do euro, a moeda única teve diferentes impactos de política económica para os Estados-membros periféricos e centrais, já que, na crise da moeda única, os países do norte sofreram menos consequências negativas do que os do sul21.
Perante essas disparidades, começaram a surgir, em 2010, pedidos para um redesenho institucional do euro, que assentaria em garantias dos Estados-mem- bros da moeda única num compromisso conjunto em forma de ‘Eurobonds’ para permitir às instituições supranacionais (como a Comissão) avançar com emissão de dívida conjunta suportada pelos países e, assim, arrecadar dinheiro para res- ponder aos danos da crise22.
Porém, pela oposição principalmente do eixo franco-alemão, a ideia de ter ‘Eurobonds’ não avançou, sendo refutada pela Alemanha e depois também por França, que se juntou à rejeição alemã23.
Na altura, a UE optou antes por enveredar por medidas económicas vistas como controversas ao nível social24, como a criação de pacotes de assistência macrofinanceira desenvolvidos pelo organismo informal de caráter supranacional designado por ‘troika’, composto por representantes da Comissão Europeia, do Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional25. Isso teve conse- quências ao nível político, com o exacerbar de fenómenos como o populismo e o euroceticismo no conjunto da UE26.
Foram também criados novos instrumentos para reforçar a disciplina orça- mental por parte dos países e a supervisão pelas instituições supranacionais, mas nos novos critérios da UEM os investimentos sociais estavam limitados, o que motivou críticas sobre a falta de coesão social27.
Tais políticas afetaram também a perceção da sociedade civil relativamente aos decisores políticos por consequências como a diminuição do investimento público, o aumento dos impostos, o congelamento das pensões, o aumento da idade da reforma e ainda os limites à contratação no setor público28.
Uma vez que grande parte das decisões foram tomadas em ambientes opa- cos e com um papel limitado do Parlamento Europeu, enquanto única institui- ção democraticamente eleita, as medidas deram origem a protestos e ao surgi- mento de novos partidos populistas face à insatisfação com os políticos tradicionais no poder, com alguns investigadores a considerarem que, desde então, a UE sofre de défice democrático29. Devido à dimensão da crise, às de- sigualdades entre os Estados-membros, ao poder dos países credores face aos devedores e relativamente à Comissão na definição das respostas e ainda pelas medidas impostas e as suas consequências, a crise do euro poderia ter servido para a assembleia europeia defender a democracia comunitária, mas isso não aconteceu e, em vez disso, esta instituição ficou de fora das negociações das políticas30.
A UE passou então a estar repleta de casos de ‘política contra a política’, com os cidadãos a manifestarem este seu descontentamento nas ruas e a identificarem-se com mensagens populistas, eurocéticas e antieuropeias31.
Nesta conjuntura europeia, a complexidade da crise do euro também assentou na diversidade dos atores envolvidos, trazendo para o debate as instituições euro- peias e o Fundo Monetário Internacional, atores financeiros, cidadãos e grupos de interesse, mas com a decisão final a caber aos países, dado o cariz intergoverna- mental da área orçamental32.
Devido à ausência de um espaço de debate político ao nível comunitário, as- sistiu-se a uma politização da integração europeia, com um debate interno sobre assuntos europeus, para o qual contribuíram os meios de comunicação social de massa (‘mass media’), que provocaram a tomada de decisões de âmbito intergo- vernamental ao se focarem mais nos interesses e nos políticos nacionais - noticia- dos como os principais responsáveis pelas decisões tomadas na UE - em detri- mento da atuação das instituições supranacionais33.
Sendo que os meios de comunicação social ligam, através do esclarecimento da opinião pública, atores relevantes34 como responsáveis políticos e sociedade civil, os ‘mass media’ desempenharam um importante papel na crise do euro en- quanto principal fonte de informação35.
A mudança de atuação em 2020
A repartição de competências na UE é definida pelos Tratados36, podendo as instituições supranacionais (como a Comissão) atuar dentro dos limites das tare- fas que os Estados-membros lhes atribuíram para alcançar os objetivos estipula- dos. Ainda assim, situações como crises forçam alterações no desenho institucional europeu37 e podem levar, por exemplo, à adoção informal de competências, o que se verificou na resposta à pandemia de COVID-19 pelas acentuadas conse- quências económicas para os países38.
Com a crise pandémica, verificaram-se fragilidades na cooperação e na res- posta conjunta no espaço comunitário, que foram respondidas pela Comissão Eu- ropeia39, que extravasou as suas competências para assumir a tarefa de coordena- ção, nomeadamente no domínio orçamental. Devido à necessidade de orientação, a gestão e a organização do combate à pandemia foram assim assumidas pelo executivo comunitário, que propôs soluções supranacionais para responder à cri- se económico-financeira. Com a argumentação de que a crise da COVID-19 seria “diferente de qualquer outra” na UE, a Comissão Europeia avançou, no final de maio de 2020, com uma proposta para a emissão de dívida conjunta para arreca- dar 750 mil milhões de euros nos mercados financeiros para financiar a Próxima Geração UE (Next Generation EU - NGEU), argumentando que “a solidariedade, a coesão e a convergência” deveriam impulsionar a recuperação pós-pandemia40. Foram necessários cinco dias de negociações no Conselho Europeu para, em julho desse ano, os líderes da UE chegarem a acordo sobre o NGEU e assim apro- varem a proposta do executivo comunitário, naquela que foi uma das cimeiras europeias mais longas da história41.
A dificultar o acordo entre os 27 Estados-membros estavam três pontos de bloqueio, nomeadamente quem iria pedir verbas emprestadas, que condições se- riam associadas a esses empréstimos e como esse montante seria reembolsado, dúvidas que foram ultrapassadas durante a negociação para chegar a um acordo intergovernamental42.
Depois de um período inicial de hesitação e de divergência sobre a emissão de dívida conjunta, os chefes de Governo e de Estado da UE acabaram por a aceitar, com alguns investigadores a salientarem a solidariedade europeia43 e outros a resposta económica mais rápida e de maior dimensão financeira do que a dada na crise anterior44.
Do ‘não’ ao ‘sim, com certeza’
Uma semelhança entre a resposta à crise da COVID-19 e a dada anteriormen- te à recessão financeira assenta nos desacordos entre os Estados-membros do norte (também chamados de ‘frugais’, como Holanda, Áustria, Dinamarca e Sué- cia) e do sul da Europa (como Espanha e Itália), havendo novamente divisão en- tre os chamados vencedores e os vencidos da crise do euro, em questões como montantes e distribuição das verbas45.
Porém, verificaram-se novos bloqueios da Polónia e da Hungria por estes paí- ses estarem contra a criação do mecanismo de condicionalidade, que condiciona o acesso aos fundos mediante o respeito pelos valores do Estado de direito e da democracia da UE46.
Apesar das dificuldades, o acordo sobre a resposta orçamental e política da UE à pandemia veio contrastar com as políticas de austeridade pois permitiu uma emissão de dívida comum para redistribuição significativa entre os Esta- dos-membros através de subvenções47. Isto levou a um maior aprofundamento da integração europeia ao nível económico, já que as negociações orçamentais, apesar de intergovernamentais, passaram a contar com um importante ator su- pranacional, a Comissão Europeia48.
A resposta à crise da pandemia visava evitar um resultado devastador da mais profunda crise desde a Segunda Guerra Mundial49, chegando-se à conclusão de que o nível de resposta teria de ser europeu e coordenado em vez de nacional e reativo50.
São várias as respostas na literatura sobre as mudanças de comportamento dos países na resposta dada em 2010 à recessão financeira e à crise da COVID-19 em 2020, que têm em conta o contexto em cada ano, mas também o facto de os países terem a última palavra.
Mudança de posições dos Estadosmembros e ‘luz verde’ das novas coligações
Uma primeira razão incide sobre as alterações nas posições dos atores cen- trais nestas negociações, os líderes europeus, com concessões feitas em mo- mentos de conflito, especialmente no que toca à dimensão orçamental e ao Estado de direito51. Pesou, desde logo, a decisão de a Alemanha apoiar a emis- são de dívida conjunta, uma mudança em relação à sua posição ao nível orça- mental52, depois de na crise anterior a então chanceler alemã, Angela Merkel, ter dito que, “enquanto fosse viva”, não apoiaria este tipo de medidas53. Esta mudança de posição da Alemanha, que acabou por influenciar a francesa, foi complementada pela aceitação por parte dos países ‘frugais’ de subvenções aos países (no total de 390 mil milhões contra 360 mil milhões em emprésti- mos) embora impondo condicionalidade, bem como da aceitação pela Polónia e Hungria desta condição de respeito pelo Estado de direito para receber fun- dos da UE54.
Estas cedências para a emissão de dívida conjunta representam, contudo, fragilidades no compromisso europeu, existindo divisões devido às diferentes expectativas políticas sobre o rumo do projeto europeu, pelas antigas e novas coligações de Estados-membros que se solidificaram nesta negociação sobre a NGEU: a aliança franco-alemã, os ‘frugais’ e a aliança polaco-húngara55.
- Verdadeira solidariedade europeia
A necessidade de solidariedade europeia foi outro dos motivos que levou à ‘luz verde’ na UE à emissão de dívida conjunta, sendo que permitiu que os líderes políticos europeus se comprometessem com um plano para relançar a economia europeia, na sequência da iniciativa da Comissão, possibilitando à União e aos seus Estados-membros trabalharem em conjunto para recuperar pós-pandemia56. Com a COVID-19 a expor desigualdades entre países, foram postos em prá- tica os valores europeus quanto à coesão económica e social, como previstos no artigo 174.º do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia, que indica que, para o desenvolvimento harmonioso ao nível europeu, a UE deve tentar reduzir a disparidade entre as regiões57.
Comparando a resposta à crise financeira com o pacote de recuperação, a NGEU demonstra a solidariedade entre os Estados-membros da UE, consolida uma expansão de competências ancoradas na Comissão Europeia - incumbida de propor, concretizar e controlar a iniciativa - e lança as bases para uma cooperação mais eficaz em termos macroeconómicos pan-europeus58.
A emissão de dívida conjunta foi, assim, simbólica por ter envolvido acordos institucionais e grande dimensão macroeconómica59.
- Necessidade de evitar erros do passado
Outros investigadores, por seu lado, consideram que mais do que reativa, esta medida foi uma intervenção preventiva e para evitar problemas verifica- dos no passado, já que, no âmbito desta visão, foram as vulnerabilidades preexistentes e não os impactos da pandemia que conduziram ao compromisso para os recursos da NGEU, até porque os países mais frágeis após a crise eco- nómica da COVID-19 receberam a maioria dos recursos, nomeadamente em subvenções60.
A emissão de emissão conjunta na UE é, de acordo com este posicionamento, uma reação a vulnerabilidades políticas que decorreram de fragilidades e tensões económicas61.
Lições aprendidas
Outro argumento reside no facto de os chefes de Governo e de Estado da UE terem aprendido com os erros do passado e, reconhecendo a nova crise como uma ameaça para o projeto europeu, admitiram que a governação económica europeia deixasse de estar limitada à sua função reguladora e passasse a ser complementa- da também por uma função redistributiva62.
Pela primeira vez, a UE comprometeu-se ao nível orçamental, tendo as lições aprendidas com a recessão possibilitado respostas mais rápidas e decisivas à crise da COVID-19, nomeadamente depois de, na crise financeira anterior, as desigual- dades sociais e a insatisfação com as medidas impostas ter afetado a economia dos países, especialmente no sul da Europa, e ter reforçado fenómenos como o euroceticismo e o populismo63.
Para evitar uma politização da crise, os Estados-membros optaram por aceitar o papel de liderança da Comissão, mostrando-se favoráveis a iniciativas de go- vernação despolitizada e tecnocrática64.
Segundo esta visão, a pandemia abriu novos caminhos em termos de ambição, instrumentos utilizados e características institucionais, o que se deveu à aprendi- zagem política com a crise financeira, mas também ao contexto da situação e às lições tiradas com a evolução macroeconómica65.
Resposta ao défice democrático
Um outro conjunto de justificações sobre as mudanças de atuação nas duas crises em foco, com o qual tendo a concordar mais, incide sobre a necessidade de dar resposta ao défice democrático da UE, dada a conjuntura.
As medidas de emergência adotadas para tentar conter a propagação da CO- VID-19, como a limitação de liberdades individuais (por exemplo, proibição de circular livremente) e a imposição de novas obrigações (como usar máscara ou ter distanciamento social), levantam dúvidas sobre a legitimidade da governação em tempos de crise, em particular se a obtenção de resultados pode compensar a suspensão temporária da resposta política e dos procedimentos de responsabili- zação66. Como a legitimidade está ligada à eficácia das políticas para o desem- penho para o bem comum, a participação e representação dos cidadãos na respos- ta dada pelas elites e a qualidade dos procedimentos de governação estavam em risco na UE com a COVID-1967.
Ciente da possibilidade de agravamento do défice democrático na UE, o Con- selho optou por uma resposta diferente, com uma atuação conjunto em vez de isolada68.
O que se verificou foi, portanto, uma ação conjunta e solidária para evitar um fenómeno agravado pelos tempos de austeridade, o do défice democrático. Mes- mo que haja investigadores que rejeitem a existência deste défice democrático - como Andrew Moravcsik69 e Giandomenico Majone70 por, respetivamente, a UE ter limites institucionais e não ser um superestado - este é um problema reconhe- cido pelas elites europeias, que têm vindo a apostar em fomentar a democracia europeia com o reforço dos poderes do Parlamento Europeu, a elaboração de políticas mais transparentes e um caráter cada vez mais participativo do processo decisório na União71.
Porém, estas estratégias não se têm revelado bem-sucedidas na resposta ao défice democrático da UE e, por isso, a União ainda é vista como um sistema conservador incapaz de responder à crescente agitação social por, muitas vezes, as medidas não terem ‘cara’ e não se poder responsabilizar os seus atores72.
- Influência da cobertura noticiosa na tomada de decisões
Considerando que os ‘media’ podem influenciar os comportamentos da elite política nas várias fases do processo político, tanto no processo de ‘agenda-setting’, como na tomada de decisões e na implementação de políticas públicas73, o papel da comunicação social é ainda outro fator para esta mudança na resposta às cri- ses.
Enquanto parte indispensável da vida democrática moderna que, frequente- mente, domina o processo político74, os ‘media’ foram, durante a pandemia de COVID-19, a principal fonte de informação para a opinião pública, mas também o maior instrumento de comunicação para governos e decisores políticos explica- rem, por exemplo, como a doença poderia ser combatida75.
Como se verificou na crise do euro, a cobertura mediática contribui para a construção social dos problemas e dos processos decisórios europeus, tendo em conta que a ligação da opinião pública à UE é principalmente feita através dos meios de comunicação regionais e nacionais, contribuindo para a identificação dos principais atores e da sua legitimidade76.
- A pressão social decorrente da natureza e o momento das crises
Ouso a acrescentar a esta lista um outro argumento que resulta da minha expe- riência de observação empírica, relativo à resposta das populações no contexto de cada uma das crises.
Em primeiro lugar, pesa o facto de a crise de 2008 ser apenas económica e financeira, enquanto a da COVID-19 envolve uma componente de saúde pública, verificando-se maior sentido de inevitabilidade devido à democratização da doença. Já na recessão financeira, havia uma ideia de que classes mais baixas sofreriam mais com as politicas de austeridade e estariam a pagar por erros de grupos privilegiados, as elites.
Por outro lado, o peso da opinião pública aumentou devido a novas platafor- mas que lhes deram voz, como as redes sociais.
A pressão da sociedade civil para medidas de cariz mais social contribuiu para decisões ao nível comunitário dado que as crises são um momento crítico no campo político e na elaboração de políticas da UE77.
Todos estes argumentos levam a que, hoje em dia, aquela que era uma solução renegada, seja vista como uma política ‘estrela’ equacionada para arrecadar ver- bas para ajudar a reconstruir a Ucrânia78, devido à destruição causada pela inva- são russa ou ainda para reforçar a capacidade de defesa na UE79. Isto porque já foi aceite pelos Estados-membros, permitiu alcançar dimensão financeira e, princi- palmente, pelo impacto positivo na opinião pública.
Um Eurobarómetro realizado pelos serviços da Comissão Europeia um ano depois do aval à emissão de dívida conjunta e divulgado em setembro de 2021 demonstrou que o otimismo sobre o futuro da UE atingiu nessa altura o seu nível mais elevado desde 2009, enquanto a confiança no projeto comunitário chegou ao seu nível mais elevado desde 200880.
Esse inquérito revelou uma melhoria significativa na perceção, pelos cida- dãos, do estado das economias nacionais, apesar das incertezas relacionadas com a crise pandémica81.
A emissão de dívida conjunta é, hoje, uma realidade no espaço comunitário e poderá vir a ser novamente usada.
Conclusão
Olhando para os 10 anos de construção europeia retratados neste ensaio, é possível perceber que a última década de integração comunitária tem sido das mais desafiantes da história, dado o colapso financeiro e consequente contágio da zona euro que levou a uma crise da dívida soberana e, mais recentemente, pelo impacto na economia causado pela pandemia de COVID-1982.
Em ambas, a UE dependeu das decisões dos seus Estados-membros ao nível intergovernamental, que ainda assim foram mais guiadas pelas instituições su- pranacionais, como a Comissão, demonstrando uma influência crescente da po- lítica interna dos países e da opinião pública na elaboração das políticas euro- peias83.
Nesta última década, surgiram também novos desafios relacionados com a politização, o euroceticismo e o défice democrático84, que se expressaram com crescentes fenómenos de contestação, obrigando as elites europeias a decidir en- tre enfrentar a oposição dos cidadãos perante políticas insatisfatórias ou abando- nar o consenso e politizar as questões europeias nos espaços políticos nacionais85. A construção europeia tem sido marcada por momentos de tensão e conflito, mas também por ocasiões de consenso político e social, que em conjunturas crí- ticas facilitam uma mudança institucional ou política que profunda ainda mais a integração europeia86.
Definindo as situações de crise como problemas que necessitam de soluções, as respostas analisadas neste ensaio podem, de facto, demonstrar que se tornou um desafio crítico num momento decisivo87. Foi isso que aconteceu com a emis- são de dívida conjunta na UE, a meu ver.
Por motivos como a mudança de posições dos Estados-membros, a verdadeira solidariedade europeia, a necessidade de evitar erros do passado, as lições apren- didas com a crise do euro, a resposta para tentar combater o défice democrático e ainda a influência da cobertura noticiosa e da sociedade civil na tomada de deci- sões, foi possível chegar a uma atuação comum e concertada, inédita no espaço comunitário.
A NGEU tornou-se numa oportunidade para os países menos resilientes e mais afetados pela crise da COVID-19 conseguirem resolver os seus problemas estruturais através de investimentos e reformas financiadas por um pacote de recuperação conjunto88.
Esta mudança de paradigma trouxe também desafios futuros, para os quais dei- xo algumas sugestões. Primeiro, uma vez que a negociação intergovernamental relacionada com o orçamento da UE tem em conta os cálculos de custo-benefício dos Estados-membros, sendo que quem beneficia mais está mais disposto a ceder89, é necessário criar melhores mecanismos de governação para além do nível intergo- vernamental para enfrentar futuras crises90. A meu ver, isso poderia passar por for- mas mais eficientes de votação, abandonando a regra da unanimidade em certas questões orçamentais para optar por uma maioria qualificada, que assim evitaria bloqueios como os inicialmente verificados na cimeira de julho de 2020.
Além disso, urge dar resposta às reivindicações dos cidadãos, contando aqui com o papel dos ‘media’ para uma maior discussão dos assuntos europeus, já que a politização também pode ter efeitos positivos. Acrescentaria a sugestão de criar ações de literacia mediática para que, quando a opinião pública contactar com informação produzida pelos ‘mass media’, tenha conhecimentos suficientes para formular a sua visão.
Ao mesmo tempo, poderiam ser criadas novas formas de legitimidade demo- crática através de melhores meios de participação dos cidadãos e de melhor co- municação por parte das elites políticas, o que poderia refletir-se em mais toma- das de decisão conjuntas e parlamentares, como maior participação da assembleia europeia e dos parlamentos nacionais91.
Para concluir, a mudança de comportamentos entre estas duas crises demons- trou que as políticas podem mudar quando a situação assim o exige e para isso, no futuro, as elites europeias têm de resolver os desafios - económicos e políticos - com vista a uma Europa mais integrada para conseguir legitimar o espaço co- munitário enquanto os cidadãos o politizam92.
O insucesso das medidas da primeira crise permitiu evitar erros do passado e este é um exemplo de como a UE será sempre um processo em constante constru- ção e indefinido na sua forma: a União é aquilo que os europeus - representados pelos líderes - quiserem que ela seja em cada momento.