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Revista Internacional em Língua Portuguesa

versão impressa ISSN 2182-4452versão On-line ISSN 2184-2043

RILP vol.44  Lisboa dez. 2023  Epub 14-Dez-2023

https://doi.org/10.31492/2184-2043.rilp2023.44/pp.83-97 

Artigo Original

Discurso, termómetro da competição política: Os primeiros meses de oposição do 18.º Presidente do PSD ao XXI Governo Português

Edmilson Gomes dos Santos1 

1Universidade da Beira Interior, Covilhã - Portugal.


Resumo

Com este artigo propõe-se elaborar sobre a relação existente entre o discurso político e a competição política, e dissertar sobre a competição político-partidária em Portugal nos primeiros meses de Rui Rio à frente do principal partido na oposição, o Partido Social Democrata. Pretende-se alcançar o segundo objetivo referido a partir da análise da interação discursiva, publicada em jornais, entre o chefe do XXI Governo Constitucional de Portugal e o líder do principal partido na oposição. Na primeira parte, é apresentada uma elaboração teórica sobre os vários conceitos implicados na relação estudada; de seguida, são expostos os procedimentos e resultados do estudo empírico levado a cabo. Argumenta-se que, pela natureza comunicacional da política, o discurso político pode ser um indicador do nível da competição político-partidária. Chegou-se à conclusão de que, no período analisado, houve um elevado nível de convergência no discurso, entre os líderes dos partidos estudados, o que aponta para a existência de um fraco nível de competição política em Portugal.

Palavras-chave: Comunicação política; jornais; competição política; PS; PSD; Portugal

Abstract

This article proposes to elaborate on the relationship between political discourse and political competition, and lecture on the political-party competition in Portugal in the first months of Rui Rio ahead of the main opposition party, PSD. We intend to achieve the second objective already mentioned through the analysis of the discursive interaction between the head of the Portuguese XXI Constitutional Government and the leader of the main opposition party, seen through published newspapers articles. In the first part, a theoretical elaboration is presented on the various concepts involved in the relationship studied; in the following section are exposed the procedures and results of the empirical study carried out. It is argued that, due to the communicational nature of politics, political discourse can be an indicator of the level of political-party competition. It was concluded that, in the period analysed, there was a high level of convergence in the discourse, among the leaders of the parties studied, which points to the existence of a weak level of political competition in Portugal.

Keywords: Political communication; newspapers; political competition; PS; PSD; Portugal

Introdução

Por poder ser aguerrido, antagónico, brando, similar, convergente ou concordante no conteúdo, o discurso político pode apresentar-se como termómetro da competição existente num sistema partidário. Esta é a premissa base que serve de guia para este trabalho de investigação de carácter exploratório. Enquanto é proposta uma reflexão crítica sobre o discurso político na esfera pública / mediática, é reiterada a importância da discussão sobre a competição política, sobretudo quando a cartelização dos partidos é apontada como causa da suposta falência das democracias liberais (Katz & Mair, 2009).

Neste artigo propõe-se elaborar sobre a relação existente entre o discurso político e a competição política, e dissertar sobre a competição política partidária a partir da análise da interação discursiva dos primeiros meses de oposição do 18.º Presidente do PSD (Rui Rio) ao XXI Governo Português.

A composição do XXI Governo Constitucional Português, denominado de “geringonça”, constituiu um marco singular da democracia portuguesa (Silva, 2019; Galastri, 2019). Esse governo, liderado pelo Partido Socialista (PS), foi formado por acordo parlamentar com o Bloco de Esquerda (BE), Partido Comunista Português (PCP) e Partido Ecologista “Os Verdes” (PEV), e com o apoio do Pessoas-Animais-Natureza (PAN). Por representar um momento singular de governação, pretende-se averiguar os moldes em que a oposição política afirmou-se. De forma a definir e a limitar o nosso objeto do estudo, focamos as análises de discursos diretos dos líderes do principal partido da oposição e do governo. Assim sendo, as nossas análises recaíram sobre o secretário-geral do Partido Socialista e Primeiro-ministro, António Costa, e sobre o presidente do Partido Social Democrata, Rui Rio.

Posto isto, pretende-se dar resposta à seguinte pergunta de partida: tendo em conta a interação discursiva, qual foi o nível da competição política entre o PS e o PSD, nos primeiros meses de oposição de Rui Rio?

Para dar resposta à questão colocada e perseguir os objetivos definidos, adotou-se o seguinte procedimento: na primeira fase foi proposta uma reflexão teórica sobre a relação entre o discurso político e a competição política (abordando os principais conceitos implicados nessa relação: comunicação política, discurso político, competição política), e na segunda fase foram expostos os resultados de um estudo empírico, que consistiu na seleção e análise de discursos diretos dos principais agentes dos partidos em estudo (Rui Rio e António Costa), publicados em jornais nacionais (um semanário: Expresso, e um diário: Diário de Notícias) entre fevereiro a outubro de 2018 - os primeiros nove meses de Rui Rio como presidente do PSD e ator com maior potencial de oposição ao governo, liderado pelo PS.

Para a persecução deste objetivo adotamos, ao nível metodológico, uma abordagem qualitativa - dado que a inferência foi feita através dados não numéricos - recorremos à análise documental (análise dos jornais), e à análise de conteúdo. Este trabalho é pertinente na medida em que propõe uma reflexão crítica sobre o discurso político na esfera pública/mediática, enquanto sugere analisar a competição política entre partidos, a partir da interação discursiva dos seus principais intervenientes. Ademais, como Puhle (2002) argumenta, o estudo partidos políticos constitui uma relevante contribuição para o estudo da qualidade da democracia.

1.Sobre a política, a comunicação, e a comunicação política

Aristóteles, no seu contexto histórico e cultural, foi capaz de conceber o Homem em medidas que reúnem consenso até aos dias atuais. Conforme expressou, dentre todos os animais, o Homem é o único que detém a palavra; o discurso permite-lhe tornar “claro o útil e o prejudicial”, a distinguir “bem e o mal”, “o justo e o injusto”, e “é a comunidade destes sentimentos que produz a família e a cidade” (Aristóteles, 1998, p. 55). O desenvolvimento da linguagem permitiu ao ser humano a possibilidade de criar abstração, generalização, teorização e conceber afirmações genéricas acerca de casualidades. Estes fatores somados representaram vantagens no que toca à sobrevivência em relação aos outros animais (Fukuyama, 2012, p. 67), e possibilitaram a criação de formas mais complexas de organização política.

Por seu turno, Foucault (1997) sustentou que o discurso está ligado ao desejo e ao poder, por isso, reconhece-lhe a capacidade de “ordem”, de determinar o modo de disposição das coisas e dos seres na comunidade política1. É aqui despontado o caráter político da comunicação. Segundo Foucault, o discurso traduz as lutas sociais e para além de ser uma ferramenta de disputa pelo poder (ambicionado), o discurso é o próprio poder. Daí a necessidade de um conjunto de procedimentos de controlo/ delimitação do mesmo.

Estas linhas iniciais serviram de mote para propor uma reflexão da comunicação política, a partir da relação entre o poder da singularidade humana (a palavra, o discurso, a comunicação verbal) e a sua capacidade de conceber formas complexas de organização política (diferentes regimes). Definir comunicação política revela-se desafiante, até porque este conceito composto é constituído por conceitos que nas suas particularidades podem adotar definições concorrentes. Para definir comunicação, de forma ampla, é necessária uma abordagem multidisciplinar (Fiske, 1993). Contudo, num sentido restrito, a comunicação, enquanto transmissão de qualquer estímulo, é um processo que requer mais do que uma parte (pelo menos duas): parte do emissor para o recetor (que, em resposta, torna-se ele mesmo emissor) e requer meios de comunicação (responsáveis por ligar o emissor ao recetor). Luhmann ressalta a importância desses meios argumentando que “aquilo que sabemos sobre a nossa sociedade, ou mesmo sobre o mundo no qual vivemos sabemo-lo pelos meios de comunicação. Isso é verdade não apenas para o nosso conhecimento da sociedade, mas também para o nosso conhecimento da natureza (…) ” (Luhmann, 2000, p. 6).

Por seu turno, política, nos moldes clássicos, é concebida e definida como a arte da organização das interações humanas na cidade/ Estado com o objetivo de preservar a vida e assegurar a vida boa (Aristóteles, 1998); porém, outras definições podem ser adotadas. Entre as mais conhecidas e discutidas definições de Política, conta-se com a de Carl Schmitt (1972), segundo a qual as dinâmicas da esfera da Política coincidem com as da relação amigo/inimigo - desenvolveremos esta ideia mais adiante, a propósito da competição política. Qualquer definição ou conceção de Política (ver Bobbio, Matteucci & Pasquino, 1998, pp. 954-962) que se possa adotar com base no contexto democrático conserva, de forma explícita ou tácita, a preponderância da comunicação.

Chegados aqui, podemos questionar se viver em comunidade não é essencialmente comunicar e se a comunicação não se desenvolve das interações que se dão numa comunidade. Assim sendo, qual é a fronteira entre a comunicação e a política? Tendo em conta o que já aqui foi exposto, pode-se afirmar que a barreira entre a política e a comunicação é difusa, ou até mesmo inexistente.

Uma vez que já tratamos, embora de forma introdutória, dos conceitos “comunicação” e “política”, propomos agora voltar a nossa atenção para a “comunicação política”, enquanto conceito composto. O estudo da comunicação política orienta a nossa atenção para a relação entre três elementos: organizações políticas (partidos, organizações de interesse, governo, organização terrorista, etc.) media (jornais, televisão, etc.) e sociedade civil /cidadãos - eleitores (Wolton, 1989; Mazzoleni, 2010; McNair, 2012). No âmbito do nosso estudo revela-se importante ressaltar o papel que os media têm nas sociedades democráticas, visto que têm como funções: informar os cidadãos, fazer prevalecer os factos, disponibilizar uma plataforma de discussão das políticas públicas (formar opinião), publicitar as instituições políticas e governamentais (as suas medidas), e fornecer canais de defesa dos pontos de vista políticos (McNair, 2012).

A noção que é transversal aos diferentes autores é a de que a comunicação política é o elo entre as instituições políticas e os cidadãos, entre o eleito e o eleitor, entre o representante e o representado. Este processo permite a expressão de exigências, recomendações, proibições, punição, redistribuição, etc. no seio da comunidade política. De acordo com Wolton (1989), “comunicação política cria o espaço onde se dão os discursos contraditórios dos três atores com legitimidade para se expressar publicamente sobre política (os políticos, jornalistas e opinião pública)” (p.30).

1.1.Sobre o discurso político e a competição política

O discurso político (até quando perverso) alimenta-se de uma visão sobre o que é desejável ao nível social e coletivo; por isso mesmo está impregnado em todas as dimensões do fenómeno político (dimensão política, social, jurídica e moral) (Charaudeau, 2006).

O facto de haver um conjunto de termos com aplicação tanto na área militar como no campo da comunicação política revela muito sobre a natureza antagonista do discurso político. Vocabulários, comuns às duas áreas, como: defesa, ataque, estratégia, tática, reforço de posição, recuar, avançar, manter-se de pé, esquivar, conflito e luta, reforçam o caráter bélico da política. Assim como num campo de guerra, na argumentação há “vencedores” e “vencidos”; e “vencer” é melhor que “perder” (McGee, 1985, p. 167).

O que é dito ou transmitido tem força porque impele para a ação. Como a linguagem se liga à ação no campo político? Para Charaudeau (2006), a ligação entre a linguagem e a ação dá-se na medida em que no seio político a atividade discursiva é voltada (1) para as ideias e a sua força de verdade (espaço de produção das ideologias) e (2) para os atores e a sua força de ação (espaço de produção das relações de força). A atividade discursiva é moldada de acordo com a posição do sujeito político (dentro ou fora do governo). De acordo com a sua situação, os atores políticos devem adotar diferentes estratégias de ação e comunicação, uma vez que estão em posições de legitimidade diferentes. Dependendo da localização na arena política, os diferentes atores/partidos podem adotar estratégias discursivas de promessa, decisão, justificação e dissimulação (Charaudeau, 2006).

Se por um lado cabe a quem governa decidir, justificar e dissimular, por outro lado, resta ao opositor prometer, criticar, e apresentar alternativas. Assim, podemos constatar que o discurso político e a competição política são conceitos que estabelecem uma relação de simbiose. A competição política é feita por meio do discurso político e o discurso político, no que lhe concerne, desponta a sua essência no âmbito da competição. No seio político luta-se pela sobrevivência, no caso, pela sobrevivência política.

C. Schmitt sustenta que todos os conceitos, expressões e fins políticos têm um ponto controverso; eles apresentam um conflito concreto cuja consequência extrema se expressa nas categorias: amigo / inimigo. Sendo o inimigo “aquele contra o qual se conspira” (Schmitt, 1972, p. 195). A oposição política, nas palavras do filósofo alemão, é a mais intensa e extrema de todas e qualquer outra oposição concreta será tanto mais política quanto mais se aproximar da dicotomia amigo-inimigo2. Na política doméstica esse antagonismo é delegado aos partidos políticos. Portanto, o grau máximo de desenvolvimento da política interna é alcançado quando dentro de um Estado os contrastes entre os partidos políticos se transformam em disputas políticas (Schmitt, 1972).

Freund, sociólogo francês, acolheu e desenvolveu a proposta de Schmitt reafirmando que “enquanto houver política, ela dividirá a coletividade em amigos e inimigos”3. Visto que numa comunidade é inevitável que haja desencontros de interesses que se transformem em rivalidade, estes conflitos tornam-se políticos na medida em que dividem os diferentes grupos numa luta pela conquista ou manutenção de poder, numa luta pela capacidade de influenciar, decidir ou impor (Freund, 1965; citado por Bobbio, Matteucci & Pasquino, 1998, p. 445).

Edelman foge da dictomia proposta por Schmitt, e indica que no confronto político, para além do inimigo, existe também o adversário ou oponente - dependendo da profundidade da divergência. Enquanto o inimigo político, adotando um nível de divergência intolerável, dá ao espetáculo político o seu poder de despertar paixões, medos e esperança (ex.: Nazis - Judeus/ Estados - Terroristas); o adversário ou oponente, não tem que ser necessariamente inimigo; comporta apenas antagonismos ideológicos em relação às medidas do que está na posição contrária (Edelman, 1988). C. Mouffe, na mesma senda, defende que os que eram tidos como inimigos devem assumir o papel de adversários numa sociedade democrática. Os adversários são “inimigos legítimos”, com quem compartilhamos a liberdade e igualdade; “são pessoas cujas ideias são combatidas, mas cujo direito de defender tais ideias não é colocado em questão” (Mouffe, 2005, p. 20).

Todas as reflexões reunidas até aqui evidenciam a natureza agonística da política, e o facto de o campo discursivo ser o espaço, por excelência, da fundamental e inevitável competição política.

2.Partidos Políticos e Representação

É possível identificar nos partidos políticos: o caráter associativo (um grupo com uma visão comum); a ação orientada para a conquista de poder político e a multiplicidade de estímulos e motivações (Downs, 1957; White, 2006). Os partidos políticos surgiram como instrumento de organização para participar na gestão do poder político, ou seja, o nascimento e o desenvolvimento dos partidos está ligado à questão da participação no processo de formação das decisões públicas, por parte de diversos estratos da sociedade; nesta perspetiva, os partidos estão ligados aos governos representativos (Duverger, 1970; Bobbio, Matteucci & Pasquino, 1998). Os partidos têm capacidade para formar, expressar, conduzir e manipular informações (Duverger, 1970; Sartori, 2005).

A representação, por sua vez, diz respeito a “substituir, agir no lugar de ou em nome de alguém, ou de algo; evocar simbolicamente alguém ou alguma coisa; personificar” (Bobbio, Matteucci & Pasquino, 1998, p. 1102). A representação é promotora de formação de grupos e identidades políticas (ex.: partidos políticos e sindicatos) e muda a identidade social (Urbinati, 2006)4.

Os partidos políticos, conservando o caráter representativo e antagónico, são tidos como pontes entre a sociedade civil e o Estado. As definições expressas nas linhas anteriores ressaltam o papel preponderante dos partidos políticos na viabilização do regime democrático, seja do ponto de vista funcional, organizacional e até da eficiência na construção e condução dos assuntos públicos. É importante notar que os partidos ocupam a mesma posição que a comunicação política, ambos ligam as instituições governativas à sociedade civil. A comunicação política é em simultâneo, o espaço, a ferramenta e a arma dos partidos políticos, principalmente no seio democrático, onde o instrumento de ataque e defesa é, por excelência, o discurso.

3. A competição política nos discursos dos principais partidos portugueses (PS e PSD)

Depois do 25 de Abril de 1974, o sistema de partidos português transformou-se rapidamente num sistema bipolarizado - “a alternância entre os dois partidos [PS e PSD] no governo confirma a bipolarização do sistema” (Lobo, 1996, p. 1090). Os resultados eleitorais, para além de evidenciar o domínio desses dois partidos, expõem também o pouco espaço ocupado pelos restantes. Como aponta Jalali, o sistema partidário português é um sistema que se “consolidou rapidamente” sendo que um dos padrões de interação é “a principal dimensão de competição entre PS e PSD” (Jalali, 2017, p. 72).

Até 2019, todas as eleições legislativas da história da democracia portuguesa foram ganhas pelo PS, pelo PSD ou por uma coligação que um desses partidos encabeçou5 - a formação dos governos tornou-se monopólio destes dois atores políticos. O que se pode apresentar como problema é o facto do domínio que esses partidos têm tido (dimensão de competição), não ser acompanhado de um aumento de identificação partidária por parte dos cidadãos, pelo contrário, tem havido uma diminuição do grau de identificação entre os cidadãos e estes partidos (Vieira & Wiesehomeier, 2013).

As eleições legislativas de 2015 foram ganhas pela coligação pré-eleitoral “Portugal à Frente” (PàF) constituída pelo Partido Social Democrata e pelo Partido do Centro Democrático Social Partido Popular (CDS-PP), membros do Governo cessante.

Contudo, perderam a maioria parlamentar que detinham na legislatura anterior, o que ditou a queda do XX Governo. Entre 2015 e 2019 o Partido Socialista (PS), enquanto protagonista, coligado com Bloco de Esquerda (BE), Partido Comunista Português (PCP), Partido Ecologista “Os Verdes” (PEV) (PEV), e com o apoio do Pessoas-Animais-Natureza (PAN) constituiu o XXI Governo - coligação pós-eleitoral de partidos de esquerda, popularmente denominada de “geringonça”. Como argumenta (Silva, 2019, p. 425), “o ineditismo da geringonça no contexto nacional e em contraciclo com a Europa marcará, seguramente, a narrativa da democracia portuguesa (…)”. Tendo em conta este padrão de interação entre o PS e o PSD, e a conjuntura política singular descrita, é aqui proposto avaliar o grau da competição entre esses dois partidos, a partir da análise dos discursos dos seus principais agentes (presidentes e secretários-gerais).

3.1.Dados e Métodos

O estudo empírico consistiu na seleção e análise de discursos nas notícias que relacionassem o XXI Governo e o principal partido da oposição nos primeiros meses de mandato do presidente do PSD (Rui Rio), para elaborar sobre nível da competição político-partidária existente à data. Para a persecução deste objetivo adotamos uma abordagem qualitativa - uma vez que se trata de um estudo exploratório e a inferência é feita através da análise de dados não numéricos (notícias) (Creswell, 2002, p. 33) - recorremos à análise documental (análise dos jornais), e utilizámos como técnica a análise de conteúdo. Estas opções metodológicas possibilitaram identificar, classificar, analisar as notícias que relacionassem o XXI Governo e o principal partido da oposição para assim identificarmos os discursos de convergentes e divergentes.

A análise documental consiste no tratamento e interpretação dos dados provenientes de documentos, com o intuito de obter significado, compreender um fenómeno, e desenvolver conhecimento empírico (Bowen, 2009).

A análise de conteúdo, por seu turno, uma das principais técnicas utilizadas na área da Ciência Política (Vromen, 2010), é uma técnica de pesquisa que permite realizar inferências replicáveis (fidedignas) e válidas de textos (ou outras fontes de significados) para os seus contextos das aplicações (Krippendorff, 1980).

Nesta arquitetura metodológica, a objetividade e a fiabilidade são alcançadas a partir do estabelecimento prévio de critérios de seleção e análise, e da qualidade dos documentos e das evidências que eles contêm, tendo em conta o objetivo e os moldes do estudo em causa (Gray, 2004; Bowen, 2009).

De forma a garantir a variabilidade dos dados coletados, a seleção e a análise das notícias incidiram-se em dois jornais nacionais: um semanário (Expresso) e outro diário (Diário de Notícias). A análise incidiu apenas sobre notícias que continham discursos diretos - reprodução literal - dos agentes protagonistas das instituições em estudo.

Delimitação temporal: Foram analisados jornais de fevereiro de 2018 a outubro de 2018. Uma vez que o presente artigo avalia os primeiros meses do presidente do PSD na oposição, a seleção das notícias foi feita tendo em conta a tomada de posse do novo presidente do principal partido da oposição - Rui Rio tomou posse em fevereiro de 2018, tornando-se assim o 18.º Presidente do PSD. Do semanário Expresso foram analisadas publicações entre 02/18 a 10/18. Do Diário de Notícias foram analisadas publicações de 01/02/18 a 14/06/18.

As categorias de discursos identificadas nas notícias selecionadas e analisadas foram:

Nenhuma notícia - não foi encontrada nenhuma notícia com discurso direto sobre a interação entre o Governo e o líder do principal partido da oposição;

Discurso de convergência - foi identificado notícias com discurso direto de aproximação ou de apoio entre o líder do Governo e o líder do principal partido da oposição;

Discurso de divergência - identificadas notícias com discurso direto de demarcação e crítica na relação líder do Governo e o líder do principal partido da oposição.

Fonte documental (jornais): Arquivo da Biblioteca Central da Universidade da Beira Interior.

3.2.Resultados

Foram recolhidas e analisadas um total de 173 publicações (39 do Expresso e 134 do Diário de Notícias). A análise realizada culminou na elaboração do Quadro 1.

Quadro 1 Interação discursiva entre os líderes do XXI Governo (PS) e da principal oposição (PSD) - elaboração do autor 

Discussão dos Resultados

Como está representado no Quadro 1, foram selecionadas e analisadas 173 publicações, sendo que 39 foram do Expresso e 134 do Diário de Notícias. No que toca às categorias, no semanário foram identificados 31 “nenhuma notícia”, 7 notícias com “discursos de convergência” e 1 notícia com “discurso de divergência”. Em relação ao Diário de Notícias, foram identificadas 123 “nenhuma notícia”, 9 notícias com “discursos de convergência” e 2 notícias com “discursos de divergência”. Somando, foram identificadas 154 “nenhuma notícia”, 16 notícias com “discursos de convergência” e 3 notícias com “discursos de divergência”.

Desde a sua tomada de posse, o novo presidente do PSD mostrou-se disponível para uma reaproximação com o PS. Rui Rio afirmou que “a unidade constrói-se da parte de quem ganhou e da parte de quem perdeu” (Expresso, 17/02/ 2018, p. 5). No 37º congresso nacional do seu partido reiterou que “não é preciso inventar diferenças [entre partidos]. As que existem já são suficientemente marcantes para nos distinguirmos (…) como tenho vindo a dizer […] tenho como relevante, senão mesmo decisivo para o futuro de Portugal, o diálogo entre partidos”. No seguimento do mesmo discurso, entrou em contradição afirmando que “O PSD apresentar-se-á aos portugueses como alternativa forte e credível a esta governança da extrema-esquerda” e que “Bloco central não existe e não existirá” (DN, 19/02/18, p. 4). Passado algum tempo, Rio expôs mais evidências da inexistência da oposição afirmando que “temos [no PSD] de estar unidos ao próprio governo português (…) a ausência de oposição se deve ao interesse nacional” (DN, 23/03/18, p. 7). António Costa, chefe do governo e presidente do PS, em resposta a uma pergunta sobre uma reaproximação futura entre os dois principais partidos afirmou, admitindo um certo grau de convergência, que “Bloco Central não, mas o PSD não tem lepra” (Expresso, 11/08/18, p. 1).

Estes resultados mostram que a oposição não está expressa no discurso, e as interações entre os líderes do PS e do PSD são mais de convergência do que de divergência. É significativa a diferença entre o número de discursos de convergência (16) e de divergências (3) identificados. Importa salientar que a ausência de oposição, representada também pela categoria “nenhuma notícia” pode ser, ao mesmo tempo, interpretado como postura de passividade ou de convergência por parte do partido da oposição.

A convergência identificada ocorre num contexto em que há descontentamento e desconfiança generalizada, por parte dos cidadãos, para com os partidos e com outras instituições representativas que esses integram (Cabral, 2004; Magalhães, 2004; Teixeira, 2018).

A ausência de discurso de oposição ganha maiores contornos, sobretudo se tivermos em conta as possibilidades de oposição oferecidas pela conjuntura anteriormente descrita. Ademais, importa ressaltar que foi identificado um elevado nível de convergência discursiva interpartidária, dimensão de competição característica dos partidos cartéis. Este modelo de explicação de organização de partidos, apresentado por Katz e Mair (1995), sugere que o partido cartel emergiu na década de 70, nas democracias avançadas, em contexto de declínio geral dos níveis de participação e envolvimento na atividade partidária, e surgimento de forte apoio a grupos de dimensão reduzida e de “single-issue”. A interpenetração do partido no Estado, e certo padrão de conluio interpartidário caracterizam os partidos cartéis; o conluio tem como objetivo a acumulação de poder por parte dos partidos enquanto dificulta a entrada a novas organizações na arena da concorrência partidária. Num cenário de cartelização partidária, os partidos são parecidos ao nível de organização e de objetivos (Katz & Mair, 1995, 1996, 2002, 2009, 2012, 2018).

Considerações Finais

Partindo da elaboração teórica sobre a política, a comunicação, a comunicação política, partidos políticos, o discurso político e a competição política, argumentamos que o discurso político, por carregar a ordem do conflito inerente à política, pode indicar a “temperatura” ou o nível da competição política. Como vimos, quando o discurso é fraco, convergente e acrítico, o termómetro aponta para baixas temperaturas, ou seja, a competição política é contida ou até mesmo inexistente. Ao contrário, quando o discurso é forte, disruptivo, inconformado e crítico, a competição é, por essência, política.

São necessárias instituições que estabeleçam ordem nas condições conflituosas, inerente ao Homem, que traz consigo subjetividade, complexidade, e pluralidade de valores. Não existindo alternativas, ou não existindo competição política, o consenso toma conta da esfera política, condenando-a a inércia, a estagnação, a monotonia, a uniformidade, e a unissonância.

Na segunda parte do trabalho, tendo em conta a conjuntura política, analisou-se a competição política nos discursos diretos do 18.º Presidente do PSD e do XXI Governo Português (governo formado por partidos de esquerda, “Geringonça”), líderes dos principais partidos portugueses (PS e PSD). Considerando os resultados do estudo empírico, devemos indicar, como resposta à pergunta de partida, que existiu um fraco nível de competição partidária, no período analisado - foi identificada uma elevada proporção de convergência discursiva entre o partido na oposição e o principal partido no governo, dimensão de competição característica dos partidos cartéis. Ademais, a relevância dos resultados acentua-se quando se considera a conjuntura política vivida, no mandato do XXI Governo Constitucional.

Em relação às conclusões do estudo empírico, pode-se contra-argumentar que: o estudo incide sobre um curto período e que, também por isso, os resultados podem não ser representativos da realidade. Por outro lado, pode-se contra-argumentar também que a convergência discursiva não implica necessariamente convergência na atuação.

Em primeiro, os resultados aqui apresentados são representativos apenas do período estudado, ou seja, os primeiros meses de oposição do 18.º presidente do PSD, Rui Rio - mais especificamente fevereiro a outubro de 2018. Em segundo lugar, a postura discursiva pode, de facto, não corresponder com a postura prática; no entanto, estamos aqui a elaborar sobre o campo da comunicação política, onde o discurso (de aproximação ou de oposição) é a primeira e a principal ferramenta de interação entre os atores políticos. Ademais, a nossa análise incidiu sobre notícias de jornais que continham discurso direto dos representantes máximos das forças partidárias, para que os resultados fossem representativos da postura real desses líderes e, consequentemente, dos seus respetivos partidos.

Como referimos, este trabalho é um estudo exploratório que serve, sobretudo, como uma introdução à temática e às opções metodológicas adotadas no tratamento da mesma. Serve também, para lançar hipóteses para trabalhos de investigações futuras, que possam ganhar outras proporções, ao nível de profundidade e dimensão.

Seria, por isso, pertinente desenvolver-se, no futuro, estudos que tenham maior abrangência; incluindo mais forças partidárias, mais órgãos de comunicação e maior período de análise.

Referências

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Notas

1. “(…) Suponho que em toda a sociedade a produção do discurso é ao mesmo tempo controlada, selecionada, organizada e redistribuída por um certo número de procedimentos que têm por função esconjurar os seus poderes e perigos, dominar o seu acontecimento aleatório, esquivar a sua pesada e temível materialidade” (Foucault, 1997, p. 9, 10).

2. Tradução nossa. “A oposição política é a mais intensa e extrema de todas, e qualquer outra oposição concreta é ainda mais política quanto mais se aproxima do ponto extremo, o de demarcar de acordo com os conceitos de amigo-inimigo” (Schmitt, 1972, p. 112).

3. “É característico do Estado eliminar, dentro dos limites da sua competência, a divisão dos seus membros ou grupos internos em amigos e inimigos, não tolerando senão as simples rivalidades agonísticas ou as lutas dos partidos, e reservando ao Governo o direito de indicar o inimigo externo. É, pois, claro que a oposição amigo-inimigo é politicamente fundamental» (Freund, 1965; citado por Bobbio, Matteucci & Pasquino, 1998, p. 445).

4. Urbinati (2006) identifica duas escolas de pensamento sobre o governo representativo: modelo eleitoral, que combina o elitismo nas instituições políticas (competência) e legitimação popular (localizada na votação através da eleição - consentimento) e modelo representativo, que olha para a legitimação como mais do que um ato de autorização, em vez de um esquema de delegação da soberania, a representação é um processo político que conecta sociedade e instituições.

5. Resultados das eleições legislativas portuguesas, 1976 - 2015, consultado em: http://eleicoes.cne.pt/ a 08/05/20 e em: https://www.eleicoes.mai.gov.pt/ a 08/05/20.

Recebido: 16 de Dezembro de 2020; Aceito: 03 de Maio de 2021

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