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Revista Internacional em Língua Portuguesa

versão impressa ISSN 2182-4452versão On-line ISSN 2184-2043

RILP  no.46 Lisboa dez. 2024  Epub 31-Dez-2024

https://doi.org/10.31492/2184-2043.rilp2024.46/pp.77-88 

AMBIENTE E EDUCAÇÃO

Práticas de leitura e escrita no contexto de uma escola periférica

Andressa dos Santos Galvão1 

Dulce Cassol Tagliani2 

1E.M.E.F. em Tempo Integral Prof. Valdir Castro, Brasil

2Universidade Federal do Rio Grande (FURG), Brasil


Resumo

Neste trabalho, buscamos refletir sobre as práticas de linguagem desenvolvidas dentro do Programa Residência Pedagógica em uma escola da periferia do município de Rio Grande/RS/Brasil. Apresentamos um recorte de três atividades desenvolvidas e discutimos a importância de um trabalho envolvendo os diferentes gêneros textuais/discursivos. Tendo como base teórica os pressupostos da Linguística Aplicada, e buscando apoio também em orientações curriculares nacionais, percebemos que o desenvolvimento de atividades de leitura e escrita de diferentes gêneros foi fundamental para que os estudantes pudessem perceber a diversidade linguística e cultural que permeia a sociedade em que estão inseridos, assim como refletir sobre as possibilidades de uso da língua. Por fim, discutimos o importante papel da escola no sentido de facilitar, por meio de um trabalho com as múltiplas linguagens, o exercício pleno da cidadania.

Palavras-chave: Leitura; Escrita; Ensino; Escola; Periferia

Abstract

In this work, we aim to reflect on language practices developed within the Pedagogical Residency Program in a school located in the outskirts of the municipality of Rio Grande/RS/Brazil. We present three selected activities and discuss the importance of engaging with various textual and discursive genres. Drawing on the theoretical framework of Applied Linguistics and national curriculum guidelines, we recognize that the development of reading and writing activities across different genres was essential for students to perceive the linguistic and cultural diversity within their society, as well as to reflect on the diverse applications of language. Finally, we discuss the significant role of the school in facilitating, through the exploration of multiple languages, the full exercise of citizenship.

Keywords: Reading; Writing; Teaching; School; Outskirts

De nada adianta o discurso competente se a ação pedagógica é impermeável a mudanças (Paulo Freire).

Introdução

No Brasil, há anos discutimos sobre a importância de práticas de linguagem que sejam efetivas e façam sentido para os estudantes, principalmente para aqueles de escolas públicas, no sentido de oportunizar e/ou ampliar habilidades de leitura crítica e escrita de textos de diferentes gêneros. Vivemos, ainda, em um contexto com grandes desigualdades sociais, econômicas e culturais, o que se reflete fortemente na formação básica dos estudantes, a despeito de todas as políticas públicas voltadas para minimizar os problemas educacionais. Ao olharmos para contextos periféricos, percebemos que o percurso para que habilidades mínimas de leitura e escrita sejam ampliadas é extremamente complexo, tendo em vista as carências de toda ordem que permeiam esse processo. Nesse sentido, buscamos, neste texto, refletir sobre a importância de ações voltadas para o desenvolvimento de habilidades de leitura e escrita, no sentido de que essas ações possam ecoar positivamente na formação de indivíduos cientes de sua condição e que possam agir para quebrar paradigmas e atuar criticamente na sociedade.

A partir dessas considerações, percebemos que as práticas de linguagem de língua portuguesa constituem-se em valiosas ferramentas para o desenvolvimento de diferentes habilidades, tendo em vista que a partir dos anos finais do ensino fundamental, por exemplo, os estudantes participam (ou poderiam) “com maior criticidade de situações comunicativas diversificadas, interagindo com um número de interlocutores cada vez mais amplo, inclusive no contexto escolar, no qual se amplia o número de professores responsáveis por cada um dos componentes curriculares” (Brasil, 2017, p.136). É a esse contexto de ensino fundamental que nos voltamos neste texto, trazendo algumas das experiências vivenciadas no âmbito do Programa de Residência Pedagógica (PRP), vinculado à Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES) e desenvolvido na Universidade Federal do Rio Grande (FURG), em parceria com escolas da rede pública de Rio Grande/RS/Brasil, entre os anos de 2022 e 2024. As reflexões aqui pretendidas refletem as práticas de linguagem desenvolvidas em uma dessas escolas, uma escola periférica da cidade, que trabalha em turno integral e conta com alunos também da periferia e com dificuldades de toda ordem.

A título de esclarecimento e/ou informação, o PRP é um programa financiado pela CAPES e tem como principal objetivo fomentar projetos institucionais de residência pedagógica, inserindo acadêmicos de cursos de licenciatura no ambiente escolar, contribuindo, dessa forma, para o aperfeiçoamento da formação inicial de professores e, consequentemente, para a qualidade do ensino no âmbito da educação básica, por meio da articulação universidade e escola.

Um pouco de história

Acreditamos que retomar alguns pontos da trajetória histórica de constituição da disciplina de língua portuguesa no Brasil seja importante para compreendermos o atual contexto de ensino e aprendizagem, especialmente quando olhamos para as escolas públicas.

Desse modo, quando discutimos ensino de língua portuguesa nesses contextos de escolas periféricas, principalmente, cabe ressaltar que “as classes populares conquistaram o espaço escolar através da democratização do ensino, que tomou uma direção quantitativa no sentido de ampliar a oferta educacional, principalmente o número de escolas para essas classes populares” (Tagliani, 2006, p. 2). Assim, conforme apontam Hammes Rodrigues e Cerurri-Rizzatti (2011), considerando as novas condições sociais e culturais, justificadas pelo acesso dos filhos de famílias das classes trabalhadoras a novas escolas, na década de 50 do século XX, as funções e os objetivos da escola se transformaram e, consequentemente, alterações no ensino de Língua Portuguesa (LP) são percebidas, mesmo que de forma incipiente.

A inclusão da disciplina Língua Portuguesa no currículo escolar ocorre apenas no final do século XIX, incorporando as disciplinas Gramática, Retórica e Poética. Até a década de 40 do século XX, cabe lembrar, quem frequentava as escolas eram alunos de classes sociais privilegiadas, oriundos de

“contextos culturais escolarizados, com práticas de leitura e escrita frequentes em seu meio social, e que já tinham o domínio da variedade de prestígio e da norma padrão da língua portuguesa. A esses alunos continuavam a ser úteis e necessárias as mesmas aprendizagens, adaptadas às características e às exigências das diferentes épocas” (Hammes Rodrigues & Cerurri-Rizzatti, 2011, p. 58).

Ao longo das décadas, ainda no século XX, percebemos algumas mudanças em relação ao processo de ensino e aprendizagem de LP. Na década de 60, observamos uma aparente integração entre estudos sobre a língua (envolvendo a gramática) e estudos da língua (envolvendo textos). Na década de 70, fruto da ideologia de um regime militar, surge a nova lei de Diretrizes e Bases da Educação, Lei nº 5692/71, que reformula o ensino primário e médio de acordo com as pretensões do então governo. A língua passa a ser considerada um instrumento para o desenvolvimento da nação - essencialmente utilitarista (domínio de uma técnica). Só na segunda metade da década de 80 daquele século, tendo como pano de fundo a abertura política no Brasil e a consolidação de estudos linguísticos voltados para o ensino e aprendizagem de línguas, é que observamos uma reorganização e uma redefinição dos objetos de ensino. Na década de 90, temos a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), um documento que buscou orientar as práticas de linguagem no contexto escolar e trouxe impor- tantes contribuições, dentre elas, citamos: o propósito de repensar os objetivos de ensino; a inclusão, na sala de aula, de questões relacionadas às inúmeras variedades linguísticas e ao preconceito linguístico; ampliação de habilidades de leitura e de produção de textos, considerando diferentes gêneros textuais/ discursivos; a ideia de (re)pensar um ensino de linguagem de natureza operacional e reflexivo. Tal documento serviu de base para o desenvolvimento das práticas escolares até a publicação, no ano de 2017, de um novo documento, agora normativo, que reforça e amplia as orientações dos PCN, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), que determina as competências, as habilidades e as aprendizagens essenciais que os estudantes devem desenvolver durante cada etapa da educação básica.

Nesse contexto, a BNCC afirma, de maneira explícita, o seu compromisso com a educação integral. Reconhece, assim, que a Educação Básica deve visar à formação e ao desenvolvimento humano global, o que implica compreender a complexidade e a não linearidade desse desenvolvimento, rompendo com visões reducionistas que privilegiam ou a dimensão intelectual (cognitiva) ou a dimensão afetiva. Significa, ainda, assumir uma visão plural, singular e integral da criança, do adolescente, do jovem e do adulto - considerando-os como sujeitos de aprendizagem - e promover uma educação voltada ao seu acolhimento, reconhecimento e desenvolvimento pleno, nas suas singularidades e diversidades. Além disso, a escola, como espaço de aprendizagem e de democracia inclusiva, deve se fortalecer na prática coercitiva de não discriminação, não preconceito e respeito às diferenças e diversidades (Brasil, 2017, p.14).

Com base nessas considerações, podemos considerar, mesmo que apenas teoricamente em muitos casos, que as práticas educacionais estão voltadas para o amplo desenvolvimento dos indivíduos, possibilitando a eles a participação efetiva em eventos de letramento diversos, tendo como base práticas de letramentos consistentes. Entendemos, de acordo com Hammes Rodrigues e Cerurri-Rizzatti (2011, p. 49), “que à escola compete ressignificar as práticas de letramento dos alunos, ampliando-as tanto quanto lhe seja dado, de modo a que possam transitar com desenvoltura por diferentes espaços sociais, independentemente de tais espaços lhes serem ou não familiares”.

Sobre o contexto de desenvolvimento das práticas de linguagem

As atividades do subprojeto Língua Portuguesa, no âmbito do PRP, foram desenvolvidas em três escolas do município de Rio Grande/RS/Brasil. Para fins de discussão neste texto, teremos como foco uma das escolas participantes. Trata-se de uma escola de tempo integral, voltada para o ensino fundamental, situada na periferia do município, que atende estudantes das comunidades de seu entorno. A proposta pedagógica de uma escola em tempo integral “procura diminuir as desigualdades culturais/intelectuais e ampliar democraticamente as oportunidades de aprendizagem, valorizando o tempo e o espaço da permanência da criança na escola, buscando desenvolver a formação humana integral” (Projeto Político Pedagógico da escola, 2022, p. 28).

Com relação a sua estrutura física, a escola está instalada em um prédio novo, inaugurado em 2022, contando com 12 salas de aula, laboratório de informática, quadra poliesportiva coberta, cozinha, refeitório, laboratório de ciências, biblioteca, área verde, sala de professores, pátio descoberto. Conta, ainda, com internet banda larga e organização de lixeiras (para lixo reciclável).

A escola trabalha de forma integral (são 8h diárias de estudo), atendendo em torno de 200 estudantes (oriundos de famílias com baixo grau de escolaridade), que recebem alimentação na escola. São estudantes em situação de vulnerabilidade social, principalmente, o que significa que suas famílias dispõem de poucos recursos para lidar com questões de educação, moradia, renda, trabalho, entre outros. Conforme explicitam Winter, Menegotto e Zucchetti (2019, p. 168),

De acordo com a Política Nacional de Assistência Social - PNAS (BRASIL, 2005), a vulnerabilidade vai além da precariedade no acesso à renda. Também está atrelada a fragilidades de vínculos afetivos relacionais e a desigualdades de acesso a bens e serviços. Associada à desigualdade social e à perversa concentração de renda, indo além das privações e diferenciais de acesso a bens e serviços, revela-se numa dimensão mais complexa que é da exclusão social.

Como já referido, a escola desenvolve suas atividades em tempo integral, é no espaço escolar que as crianças e adolescentes realizam as principais refeições. Além disso, diversas atividades extras são realizadas: oficinas e projetos elaborados e desenvolvidos pelos professores regulares da instituição. Conforme mencionado no Projeto Político Pedagógico da escola, houve, recentemente, um esvaziamento das turmas de 8º e 9º anos, muito provavelmente em função do desejo de alguns alunos de participar de outros projetos sociais, incluindo aí, o Programa Jovem Aprendiz (PJA). A título de informação, o PJA é um projeto do governo federal que tem como objetivo a inclusão social de jovens no mercado de trabalho, visando o desenvolvimento de competências teóricas e práticas que auxiliem na preparação para o mundo do trabalho. Importante destacar que um dos principais motivos dessa evasão seria a possibilidade de contribuição com a renda familiar.

A escola organiza, ainda, eventos culturais e artísticos abertos a toda a comunidade. Muitas vezes, o acesso, pelos estudantes e suas famílias, a bens culturais é proporcionado exclusivamente pela escola, que não tem apenas a função social de espaço de saber, mas também de espaço de acesso à cultura. Os avanços que queremos no espaço escolar não se limitam à socialização de conhecimentos, envolvem, sobretudo, um olhar sobre a cultura e diversidade das comunidades - buscamos uma escola plural, que considere a diversidade de sujeitos envolvidos em seu contexto, sujeitos estes sócio-historicamente situados.

Uma outra forma de compreender esses jovens que chegam à escola é apreendê-los como sujeitos sócio-culturais. Essa outra perspectiva implica em superar a visão homogeneizante e estereotipada da noção de aluno, dando-lhe um outro significado. Trata-se de compreendê-lo na sua diferença, enquanto indivíduo que possui uma historicidade, com visões de mundo, escalas de valores, sentimentos, emoções, desejos, projetos, com lógicas de comportamentos e hábitos que lhe são próprios (Dayrell, 1996, p.5).

Ainda de acordo com Dayrell (1996, p.2), a escola vai além de um conjunto de regras que a constitui; ela tem uma dupla dimensão que inclui “alianças e conflitos, imposição de normas e estratégias individuais, ou coletivas, de transgressão e de acordos. Um processo de apropriação constante dos espaços, das normas, das práticas e dos saberes que dão forma à vida escolar”.

Nesse sentido, investimentos na educação despontam como um importante fator que pode contribuir para o acesso à informação e à cultura, o que pode se reverter em capacitação profissional e gerar oportunidades diversas, ajudando a minimizar as condições de vulnerabilidade (OxfamBrasil). Também nesse sentido, citando Carvalho (2002), Winter, Menegotto e Zucchetti (2019, p. 175) indicam “a educação como fundamental para que o indivíduo possa exercer sua cidadania, pois a mesma desdobra-se nos princípios da liberdade e justiça social”, o que ampliaria a possibilidade de que esse indivíduo desenvolva sua criticidade e tenha poder de participação nas decisões que irão impactar sua vida em sociedade.

Seguindo esse viés, consideramos, no leque de possibilidades que a educação formal nos dá, que as práticas de linguagem na escola podem ampliar habilidades e competências que podem ser aliadas dos estudantes na busca pela “liberdade e justiça social” mencionadas anteriormente. Acreditamos que práticas de leitura e escrita na escola, dentro de uma visão de língua como prática social, têm papel fundamental no sentido de ampliar o acesso a bens culturais e sociais. De acordo com Antunes (2003, p. 81), “a leitura se torna plena quando o leitor chega à interpretação dos aspectos ideológicos do texto, das concepções que, às vezes sutilmente, estão embutidas nas entrelinhas”. Com relação à produção de textos, a autora afirma que a escrita deve priorizar textos socialmente relevantes, com alunos sentindo-se “sujeitos de um certo dizer” e que estabelecem vínculos comunicativos com leitores diversificados (se possíveis reais), para que possam “tomar as devidas decisões do que dizer e de como fazê-lo” (Antunes, 2003, p. 64). Nas atividades desenvolvidas com os estudantes no contexto educacional apresentado, buscamos seguir esses princípios, sempre tendo em vista suas necessidades, dificuldades, expectativas e experiências vividas.

Mãos à obra: reflexões sobre as atividades desenvolvidas e suas implicações

Durante o período de execução do subprojeto de Língua Portuguesa/Programa Residência Pedagógica, entre 2022 e 2024, buscamos discutir estratégias de desenvolvimento de atividades que fossem ao encontro das necessidades dos estudantes da educação básica, tendo em vista um perfil de aluno em situação de vulnerabilidade social, em sua grande maioria. Nesse contexto, temos, então, estudantes que leem e escrevem muito pouco fora da escola, o que nos faz refletir sobre a importância da escola também nesse sentido, já que estão no ambiente escolar em tempo integral. Observamos, ainda, que o acesso a atividades culturais é bastante limitado e/ou inexistente fora do espaço escolar, tendo em vista os escassos recursos familiares. Destaca-se, assim, a necessidade de um trabalho, dentro da escola, que dê conta de ampliar as habilidades de leitura e escrita, nas diferentes disciplinas, no sentido de dar visibilidade a diferentes formas de linguagem e diferentes práticas sociais, artísticas e culturais. Importante envolver os estudantes em práticas diversas, para que possam se familiarizar com diferen- tes linguagens que manifestam diferentes culturas e, consequentemente, ampliar sua competência comunicativa/discursiva. Conforme Ribeiro e Coscarelli (2023, p. 97-98), a BNCC

“destaca, entre as competências gerais da educação, a valorização de conhecimentos historicamente construídos, o exercício da curiosidade, da investigação e da análise crítica, a valorização de diversas práticas artísticas e culturais, o uso de muitas linguagens e o domínio de tecnologias digitais da informação e da comunicação (TDIC)”.

Foi considerando esses pressupostos, aliados à BNCC e às teorias da Linguística Aplicada, que buscamos elaborar as práticas de linguagem desenvolvidas na escola. Diferentes contribuições teóricas destacam a importância de um trabalho com múltiplas linguagens, no sentido de ampliar as formas de interação dos indivíduos em seu meio. Nesse sentido, Bezerra (2003, p.38) destaca a teoria sócio-interacionista vygotskiana de aprendizagem, as teorias de letramento e as teorias de texto/discurso, que ampliam o olhar sobre o processo de ensino e aprendizagem e possibilitam “considerar aspectos cognitivos, sócio-políticos, enunciativos e linguísticos envolvidos no processo de ensino/aprendizagem de uma língua”.

No âmbito das teorias de texto/discurso destacam-se os estudos sobre os gêneros textuais/discursivos. Desde a publicação dos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), no final da década de 90, esse tema - os gêneros como aliados nas práticas de linguagem - vem ganhando força no Brasil. As orientações curriculares recentes, como a BNCC, indicam a necessidade de inserir textos de diferentes gêneros e de diferentes suportes (incluindo os digitais) nas práticas de sala de aula, o que favoreceria o desenvolvimento da competência comunicativa dos alunos, pois seria o elo entre as práticas sociais e os objetos escolares. De acordo com Bezerra (2003, p. 41):

O estudo de gêneros pode ter consequência positiva nas aulas de Português, pois leva em conta seus usos e funções numa situação comunicativa. Com isso, as aulas podem deixar de ter um caráter dogmático e/ou fossilizado, pois a língua a ser estudada se constitui de formas diferentes e específicas em cada situação e o aluno poderá construir seu conhecimento na interação com o objeto de estudo, mediado por parceiros mais experientes.

As discussões realizadas com o grupo de residentes que atuavam na escola seguiram por esse viés. Discutíamos a importância de um trabalho que fosse além de aspectos formais e estruturais dos textos e focassem nos aspectos comunicativos e interacionais. Assim, no período de trabalho experienciado pelos residentes, foram organizadas práticas envolvendo a leitura e a produção de diferentes gêneros. Importante destacar que a troca de experiências entre residentes e a docente da escola foi fundamental para o êxito das ações empreendidas, o que demonstra a necessidade de uma aproximação efetiva entre universidade e escola.

Um primeiro trabalho foi elaborado com o gênero lenda, para uma turma de 6º ano. A opção foi apresentar a lenda da erva-mate, uma espécie de chá muito utilizada para fazer o chimarrão, uma bebida típica e popular do Rio Grande do Sul, estado em que está situado o município de Rio Grande. É uma lenda indígena do sul do Brasil que fala sobre uma jovem índia que, por ser muito bondosa, se tornou a deusa dos ervais e precisava proteger e ajudar a multiplicar a erva-mate que torna os humanos fortes e saudáveis. A proposta foi muito bem recebida pelos estudantes e despertou bastante a curiosidade deles em relação ao produto. Eles não conheciam a árvore de cujas folhas se produz a erva e não sabiam sobre a tradição gaúcha de consumir o chimarrão. Além da curiosidade despertada, os estudantes puderam ter contato com as características do gênero lenda e sua função social. Puderam compreender, então, que as lendas são narrativas transmitidas oralmente pelas pessoas para explicar acontecimentos misteriosos ou sobrenaturais e que nas lendas há uma mistura de fatos com imaginário, história e a fantasia. Assim, a partir da lenda da erva-mate, eles tiveram a oportunidade de entrar em contato com aspectos da cultura brasileira alidada a alguns valores básicos como a generosidade, a bondade e a gentileza, a partir do trabalho de interpretação e compreensão de texto realizado. Também foi destacada uma característica importante do gênero, a oralidade, e as implicações disso em relação ao uso da língua; além da observação de que elas sofrem alterações ao longo do tempo, tendo em vista serem repassadas oralmente de geração a geração.

Outro trabalho desenvolvido com os estudantes foi com o gênero carta. A proposta envolveu a leitura de uma animação de Natal, Klaus, cujo roteiro aborda a educação como um tema tão importante quanto a festividade em questão. Na trama,

Tudo muda na cidade quando a escola passa a funcionar: aqueles que não sabem escrever percebem a necessidade da escola para enviar as correspondências para Klaus e, por consequência, entendem como a instrução pode ajudar na evolução de todos ao seu redor. Ampliando a proposta de “gentileza gera gentileza”, o cineasta trata a educação enquanto uma solução para evitar que o ódio possa ter livre acesso às mentes vazias - algo visto nas pessoas que não tem acesso à leitura e acabam se tornando tão extremistas quanto seus familiares (https://cinemacomrapadura.com.br/criticas/565272/critica-klaus- netflix-2019-obra-de-arte-sobre-papai-noel/).

A trama possibilitou uma proveitosa discussão sobre a importância da educação e sobre o papel da escola, muitas vezes invisível para populações em situação de vulnerabilidade. Além disso, o filme serviu como ponto de partida para a atividade seguinte, que seria a produção de cartas, assim como ocorrera na trama. Assim, após apresentar aos estudantes as características do gênero, a etapa seguinte foi de produção do texto. Os residentes/professores disponibilizaram envelopes e solicitaram aos estudantes que escrevessem uma carta para o destinatário que quisessem. A escolha, obviamente, teria implicações sobre o uso que fariam da língua, tendo em vista as discussões realizadas sobre as diversas práticas sociais de que participamos e a importância de se observar quem são nossos interlocutores e qual o objetivo do texto que se pretende produzir. Assim, a partir da proposta feita, tivemos escritas bem significativas para destinatários diversos. Mesmo não sendo um gênero popular nos dias de hoje, o trabalho com a carta teve o propósito de ampliar o conhecimento dos estudantes sobre as diferentes formas de interação, tanto nos dias de hoje, com formas bem mais tecnológicas, quanto em décadas anteriores e não muito distantes, quando esta era uma das poucas formas de interação. Foi importante para os estudantes perceberem a evolução tecnológica da qual participam em alguma medida.

Por fim, trazemos um último exemplo de trabalho desenvolvido pelos residentes com uma turma de 6º ano da escola participante do projeto. Foram as práticas envolvendo o gênero conto. Os estudantes dessa turma, cuja faixa etária varia entre 10 e 12 anos, demonstram grande interesse por contos de terror e de suspense, então essas temáticas fariam parte da proposta de produção textual. Numa primeira etapa da proposta, os estudantes levaram para casa livros de contos para realizarem a leitura. Cada um escolheu o tema de sua preferência nessa primeira leitura. Num outro momento, a temática de terror e/ou suspense predominou nas atividades de leitura. Foram vários momentos de leitura atenta até a produção final, leituras estas que visavam também o reconhecimento das características do gênero. A etapa de produção envolveu a escrita e a reescrita dos textos, o que levou os alunos a refletirem sobre as escolhas linguísticas que estavam fazendo e a adequação ou não ao gênero em questão. A proposta culminaria com a organização de uma coletânea de contos, destinada à biblioteca da escola. Algumas questões extraclasse inviabilizaram a conclusão da proposta naquele momento.

Esta foi mais uma atividade que buscou ampliar as habilidades de leitura e escrita dos estudantes, no sentido de conscientizá-los de que a leitura e a escrita não são apenas práticas escolarizadas e que tais práticas fazem parte do dia a dia de qualquer cidadão, em maior ou menor medida, tudo de acordo com as interações sociais das quais participam e/ou participarão. Consideramos que o trabalho com diferentes gêneros possibilita aos alunos a compreensão dos diferentes textos nas inúmeras situações de comunicação, contribuindo para a formação de sujeitos críticos e capazes de compreender as questões sociais, culturais e ideológicas envolvidas nessas práticas. Nas interações diárias, incluindo as escolarizadas, é que nos constituímos como sujeitos, nossos conhecimentos se estabelecem e experiências são vivenciadas. De acordo com Lopes-Rossi,

Um dos méritos do trabalho pedagógico com gêneros discursivos, (...) é o fato de proporcionar o desenvolvimento da autonomia do aluno no processo de leitura e produção textual como uma consequência do domínio do funcionamento da linguagem em situações de comunicação, uma vez que é por meio dos gêneros discursivos que as práticas de linguagem incorporam-se nas atividades dos alunos (Lopes-Rossi, 2005, p. 80).

Assim, neste recorte aqui apresentado das atividades propostas, buscamos, em consonânca com Geraldi (2010, p. 186), levar os estudantes a uma reflexão importante sobre os usos dos recursos expressivos disponíveis no sistema linguístico. Dessa forma,

muito mais do que classificar, trata-se de perceber relações de similitude e diferença. Atividades de reflexão sobre os recursos expressivos, independentemente de uma metalinguagem, cuja existência resulta de uma teoria linguística, são mais produtivas para o desenvolvimento de competências no uso (perspectiva instrumental) e na consciência dos modos de funcionamento da linguagem (perspectiva cognitiva).

Consideramos, então, que um ensino de Língua Portuguesa na perspectiva aqui apresentada pode contribuir sobremaneira para integrar estudantes, principalmente os alijados socialmente, a práticas sociais diversas, considerando suas necessidades, experiências e expectativas em relação ao processo de ensino e aprendizagem. Nesse contexto, torna-se fundamental não esquecermos do papel da escola nesse processo, tendo em vista que, historicamente, a escola presta-se à manutenção das desigualdades linguísticas e sociais, a despeito de todos os esforços para desfazer esse equívoco histórico. Os estudos na área da Linguística Aplicada indicam a necessidade de solucionar o conflito linguístico e social existente no contexto escolar. Sabemos que para se adaptar às exigências de uma sociedade cada vez mais globalizada, o indivíduo precisa, necessariamente, adquirir a linguagem socialmente prestigiada, a despeito de ficar relegado à marginalidade social (Tagliani, 2006). Entretanto, práticas de linguagem envolvendo gêneros textuais/discursivos de diferentes esferas despontam como fundamentais nesse processo, visto que a linguagem é, ao mesmo tempo, o principal produto da cultura e o principal instrumento para sua transmissão. Os espaços são diversos, as culturas são diversas e as linguagens da mesma forma são diversas, a escola, por essa razão, deve ser plural.

Considerações finais

As reflexões aqui pretendidas, envolvendo as práticas de linguagem em uma escola periférica, tiveram como propósito destacar a relevância de ações voltadas para o desenvolvimento e/ou ampliação das habilidades de leitura e escrita de estudantes da educação básica, no sentido de que tais ações possam se refletir positivamente no agir desses sujeitos em sociedade, quebrando paradigmas e abrindo o leque de possibilidades de atuação em diferentes esferas sociais.

A percepção de que as práticas sociais com a linguagem são diversas e de que exigem a formação de sujeitos que reconheçam um conjunto de procedimentos, abre a possibilidade de (re)pensar as próprias práticas escolares com a língua(gem). Percebemos, então, em consonância com pressupostos da Linguística Aplicada e aliados à BNCC, que o trabalho com os gêneros textuais/discursivos desponta como uma excepcional oportunidade de levar os estudantes a lidar com a língua em seus mais diversos usos autênticos, inclusive os que transitam nas diferentes mídias. A análise de diversificados eventos linguísticos possibilita a identificação das características de gênero em cada um desses eventos, como, por exemplo, os gêneros presentes em um jornal, seja ele impresso ou on-line (Marcuschi, 2003). O recorte apresentado aqui, das práticas desenvolvidas na escola, buscou dar conta dessa diversidade.

Parece-nos fundamental que os estudantes usuários da língua tenham consciência de que suas experiências em sociedade, suas crenças e suas manifestações culturais são mediadas pelas diferentes linguagens. A escola, nesse sentido, não está isolada do mundo e tem o papel de abrir suas portas para a diversidade linguística e cultural que permeia qualquer sociedade, sem juízos de valor e sem preconceitos, afinal, não queremos um aluno calado e estigmatizado pelo uso que faz da língua. Dessa forma, pensamos na responsabilidade da escola nesse contexto e seu importante papel de ampliar competências e habilidades, inclusive as linguísticas, objetivando, assim, contribuir para a formação de cidadãos críticos e atuantes na comunidade em que estão inseridos.

Referências

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Recebido: 04 de Março de 2024; Aceito: 02 de Setembro de 2024

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