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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.28 no.5 Lisboa set. 2012

 

RELATOS DE CASOS

Cessação tabágica: um salto de acrobática

Smoking cessation: an acrobatic jump

José Agostinho Santos*

*Interno de Medicina Geral e Familiar, USF Lagoa, Unidade Local de Saúde de Matosinhos.

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence


 

RESUMO

Introdução: A cessação tabágica é como um salto de acrobática. O médico de família tem a oportunidade de criar a pista atapetada (consulta após consulta), fornecer o trampolim (terapêutica) e, posteriormente, assistir ao salto daquele atleta (fumador) sobre a barra (dependência).

Descrição do caso: Lia, 46 anos, com história de tabagismo (20 cigarros/dia). Em Fev/2010, vem à consulta de cessação tabágica. Está motivada e com Fagerström = 5 pontos. É cuidadora da mãe, doente com adenocarcinoma pulmonar, e indica o exemplo da mãe como a forte razão para cessação. Iniciou vareniclina. Perante as falhas sucessivas, marca-se uma consulta de avaliação familiar. Revela ter sido abandonada pela mãe aos 6 anos e que «sinto uma enorme culpa: não tenho compaixão pelo seu sofrimento». Realiza-se uma psicoterapia breve. Lia deixa de fumar 2 meses depois.

Comentário: O caso revela o potencial diagnóstico e terapêutico de uma avaliação familiar. Consecutivas falhas fizeram suspeitar de algo naquela pista que impedia Lia de ganhar balanço. O desenrolar daquela vida criou uma pista comunicacional ansiolítica entre Lia e o seu médico. A avaliação permitiu detectar uma perturbação ansiosa latente, que dificultava o cumprimento do objectivo (o salto sobre a barra).

Palavras chave: Cessação Tabágica; Avaliação Familiar; Aconselhamento.


 

ABSTRACT

Introduction: Smoking cessation is like an acrobatic jump. The general practitioner has the opportunity to create the running track (in successive appointments), to provide a trampoline (specific therapy) and then watch the athlete (the smoker) jump over (smoking cessation) the bar (dependence).

Case Description: The patient was a 46 year-old female smoker. She came to a smoking cessation consultation. She was motivated to quit smoking and had a Fagerström score of 5 points. She was caring for her mother, who was a patient with pulmonary adenocarcinoma. The patient stated that her mother’s condition was the main reason for smoking cessation. She started treatment with varenicline. With failure of treatment, she came back for a family assessment. She had been abandoned by her mother when she was 6 years-old and said that “I feel tremendously guilty. I have no compassion for her suffering”. After brief psychotherapy, the patient stopped smoking two months later.

Comment: This case shows the diagnostic and therapeutic potential of family assessment in smoking cessation. The initial failure of treatment raised the suspicion there was something else that kept the patient from regaining balance. Telling her life story resulted in therapeutic communication between the patient and her doctor. This assessment detected a latent anxiety disorder, which was making it hard for the patient to quit smoking.

Key-words: Smoking Cessation; Family Assessment; Counseling.


 

INTRODUÇÃO

O tabagismo é sobejamente conhecido, entre a comunidade científica, como uma das principais causas de morbimortalidade.1 Estima-se que, em Portugal, os hábitos tabágicos sejam responsáveis por cerca de 8100 mortes/ano, 2100 por cancro do pulmão e 1800 por doença cardiovascular.2 O seu carácter modificável, enquanto factor de risco para diferentes patologias, realça a potencialidade benéfica e altamente económica de medidas primárias de prevenção de consumo e secundárias de cessação tabágica.3

Diversas campanhas são dirigidas a fumadores com o objectivo de estimular a cessação tabágica, como os alertas patentes em maços de cigarros ou a lei de restrição de consumo em diferentes espaços públicos fechados.4 A cessação tabágica constitui, no entanto, um desafio difícil para o fumador. A dependência do tabaco é complexa, resultando de uma conjugação de factores individuais de personalidade, genéticos e sociais em torno de um núcleo que situa a indução de dependência física e psicológica pela nicotina.4-7 A manutenção desta ligação à nicotina é conseguida pelo seu traço estimulante psicomotor, inicialmente favorecedor de uma melhoria da atenção e da memória e redutor do stress e do apetite.4-8 Esta adicção é definida pelo DSM-IV como um consumo diário de nicotina, com surgimento de sintomas com a súbita interrupção ou acentuada redução do consumo de nicotina por 24 horas ou mais (estado depressivo ou humor disfórico, insónia, irritabilidade, ansiedade, dificuldade para se concentrar, inquietude, queda da frequência cardíaca, aumento do apetite e/ou do peso), que produzem mal-estar clinicamente significativo, com deterioração social, laboral ou em áreas importantes da actividade do indivíduo.9

Um em cada três fumadores actuais fez uma tentativa de cessação nos 12 meses anteriores.10 Esta tentativa passada é reveladora de um processo de mudança comportamental que, apesar de não ter sido bem sucedido, poderá ficar presente de forma latente. De facto, quanto maior o número de tentativas anteriores, maior a probabilidade de êxito na tentativa actual.4

Diferentes correntes tentam teorizar o processo de mudança de comportamentos relacionados com a saúde. Entre estas, a corrente de Prochaska e Di Clemente torna-se mais reconhecida pela elaboração de uma terapia transteórica de abordagem de um dependente (fumador, neste caso) segundo o seu estádio de mudança.4,5,7,11 O modelo de Prochaska e Di Clemente descreve cinco estádios que pavimentam um caminho de alteração de comportamento:

1. Estádio de pré-contemplação, em que o fumador não mostra qualquer preocupação com o seu comportamento adictivo.

2. Estádio de contemplação, em que o indivíduo se preocupa com o seu comportamento dependente. Pensa alterá-lo dentro de seis meses, mas ainda sem traçar, de forma objectiva, um projecto de mudança.

3. Estádio de preparação, em que o fumador planeia modificar o seu comportamento a curto prazo (30 dias).

4. Estádio de acção, em que o paciente se encontra sem fumar há menos de seis meses (correspondentes ao período em que a recaída é mais frequente, com ou sem farmacoterapia).

5. Estádio de manutenção, em que indivíduo não fuma há mais de seis meses e mantém a abstinência por um período de cinco anos.

A integração de um fumador num programa de consulta de cessação tabágica pressupõe a apreciação do grau de motivação – quantitativamente, pelo teste de Richmond4,13 – e a avaliação do grau de dependência, usando o teste de Fagerström.4,7,11,12 O nível motivacional e de dependência auxiliará o clínico a situar o fumador no espectro de mudança comportamental e a criar um plano de acção clínica. Torna-se também essencial a identificação de life-events anteriores, estados de humor ou actividades da vida diária que possam acrescentar alguns pontos na determinação do nível motivacional, assim como na percepção do contexto sociofamiliar que possa interferir no sucesso de uma cessação tabágica.4-7,11

Todo este programa clínico integra, por sua vez, a entrevista motivacional, uma abordagem centrada e individualizada para cada fumador e cuja finalidade consiste em criar um ambiente favorável para a verbalização de medos e expectativas e, assim, esclarecer, aconselhar e resolver ambivalências relativas ao tabagismo.4-7,11,14 O objectivo posterior, porém principal, consiste na mudança de estádio comportamental.4,14

A cessação tabágica envolve, resumidamente, uma mudança comportamental tão complexa quanto difícil. Poderá ser descrita pelos ex-fumadores, em consultas aleatórias, como uma experiência desafiadora, uma luta ou mesmo uma prova. E tal como um atleta necessita de boa condição física antes de uma prova, o fumador precisa de boa condição emocional (que abarca, naturalmente, a condição motivacional) para ser bem sucedido. A cessação tabágica é, portanto, como um salto de acrobática. O médico assistente tem a oportunidade de criar a pista atapetada (consulta após consulta), fornecer o trampolim (terapêutica) e, posteriormente, assistir ao salto daquele atleta (fumador) sobre a barra (dependência).

DESCRIÇÃO DO CASO

Dados demográficos: Lia (nome fictício) é uma mulher de 46 anos, professora de português/francês, natural de Vila do Conde e residente em Matosinhos. Tem dois meios-irmãos mais novos, frutos de uma segunda relação da mãe Maria (nome fictício). É casada com João (nome fictício) e tem uma filha de 23 anos (Vera, nome fictício). Todos se inserem numa família alargada desde Setembro/2009, altura em que a sua mãe passou a pertencer ao agregado familiar.

Do seu genograma (Figura 1), realçam-se os seguintes antecedentes familiares: a mãe, de 66 anos, fumadora e com diagnóstico de adenocarcinoma pulmonar em Junho/2009; o pai de 70 anos, com hipertensão arterial (HTA); avó materna, já falecida, diabética e hipertensa; avô materno, já falecido, hipertenso e fumador.

 

 

História Médica Pregressa: Como antecedentes pessoais activos, Lia tem:

• Tabagismo: 20 cigarros/dia

• Doença venosa crónica classe 3 (Classificação CEAP)

• Fibroadenoma com 2 cm de maior diâmetro, na mama direita

Não tem medicação habitual. Usa meias de compressão elástica classe II e usa contraceptivo de barreira. Faz uma alimentação variada e equilibrada. Bebe um copo de vinho tinto ao almoço e ao jantar, e ingere dois cafés por dia (após pequeno-almoço e após almoço). Sem consumo de drogas. Actualmente, faz uma caminhada diária durante 30 minutos e 60 minutos de hidroginástica 2 vezes por semana.

Exames complementares de diagnóstico mais recentes: estudo analítico (29/12/2009): sem alterações; radiografia pulmonar (11/01/2010): sem alterações; provas funcionais respiratórias (15/12/2009): sem alterações.

A História da Doença Actual é, abaixo, dividida segundo as datas das consultas. O raciocínio clínico desenvolvido em cada contacto entre o Médico de Família e Lia é componente de cada divisão.

17 de Fevereiro/2010: Vem à primeira consulta integrante de um programa de apoio intensivo à cessação tabágica. Procede-se à avaliação clínica da fumadora.

História tabágica: Iniciou os hábitos tabágicos aos 19 anos «por desejo fútil de emancipação» (sic), inicialmente fumando 10 cigarros/dia. Deixou de fumar quando soube que se encontrava grávida, sem ajuda farmacológica ou sintoma de privação, e manteve a abstinência durante toda a gestação e nos três anos seguintes. Retomou os hábitos, em contexto de eventos sociais, aumentando até 20 cigarros/dia, quantidade que mantém desde há 10 anos. Diz fumar actualmente «pelo prazer após o café, pelo vício de mão e pelo valor anti-stress do cigarro» (sic). Os contactos com fumadores são escassos: o marido e a filha nunca fumaram e as melhores amigas são ex-fumadoras.

Sintomas: Refere uma tosse matinal semi-produtiva que alivia totalmente a meio da manhã. Nega dispneia, dor/aperto torácico, pieira ou fadiga limitante das suas actividades quotidianas.

Razões e Apoio: Aponta diversas razões para deixar de fumar que incluem o gasto do orçamento familiar, a tosse matinal que a perturba, o impacto estético negativo que regista em si mesma (tonalidade dos dentes, envelhecimento da pele) e a «pressão» (sic) exercida pela filha e pelo marido. Realça o apoio que obtém junto destes familiares, fruto da «saudável proximidade» (sic) que revela existir entre os três. Salienta, porém, que o mais forte motivo se prende com o confronto diário com a imagem doente da mãe, também fumadora e vítima de adenocarcinoma pulmonar com metastização óssea e em seguimento pelo Serviço de Cuidados Paliativos. Diz «ser cuidadora da minha mãe fez-me perceber o que não quero sofrer». Revela ter uma relação «boa» (sic) com a mãe e que este contexto diário terá contribuído para uma percepção próxima dos efeitos carcinogénicos dos componentes do cigarro.

Co-morbilidades: Lia é questionada sobre o seu estado de humor, horários de sono e estado físico geral. Conta sentir-se «algo cansada» (sic) pelo esforço nos cuidados de higiene prestados e «ansiosa» (sic) aquando das exacerbações dolorosas da mãe. No entanto, nega humor deprimido, perturbação do sono, apatia, anedonia ou receios quanto à abstinência tabágica. Sem história anterior de doença neurológica ou psiquiátrica.

Grau de dependência (altura da barra), grau de motivação (balanço), estádio de mudança comportamental: Lia está em estádio de Preparação, planeando o dia D para 1 de Março de 2010. Encontra-se também fortemente motivada (teste de Richmond = 9 pontos) e com um teste de Fagerström = 5 pontos, resultado definido como «pouco dependente». (Quadro I).

 

 

Exame objectivo: Lia está normotensa e normoponderal, e não apresenta alterações à auscultação cardiopulmonar.

São explanados, junto da paciente, os benefícios mais rapidamente percepcionados pelos ex-fumadores: a reserva monetária extra ao fim do mês, a redução da tosse matinal entre 1–9 meses, a diminuição da fadiga para esforços ligeiros a moderados, uma melhoria das sensações olfactivas e gustativas, entre outras.4,15 É também feito um aconselhamento relativo à evicção de contextos associados ao seu consumo tabágico (bares, restaurantes para fumadores), à intensificação do exercício físico, à particular atenção ao equilíbrio alimentar (que contrabalance uma polifagia no período inicial de abstinência) e aos picos impulsivos no período imediato pós-dia D. São abordadas algumas estratégias de contorno destes impulsos: atitudes substitutivas de gratificação oral como beber um copo de água, mascar uma pastilha elástica sem açúcar, falar com um colega ou escovar os dentes logo após o café, ou substitutivas de gratificação manual como enviar uma mensagem ou telefonar a um amigo.

No final da consulta, é reforçada a auto-confiança ao enumerar os seus factores preditivos de êxito na cessação tabágica, entre os descritos na literatura científica: bom apoio familiar e social (pontuado por ausência de fumadores, excepto a mãe fumadora), estado de humor estável, cessação anterior súbita e sem síndrome de privação, abstinência anterior com duração de cerca de três anos, grau ligeiro-moderado de dependência, alto nível motivacional, sem outros comportamentos aditivos, praticante de actividade física, elevado nível de escolaridade.4-7,14 Lia apresenta também factores que pioram o prognóstico de sucesso, com menor expressão no seu conjunto: ter familiares directos fumadores e o facto de ser mulher, embora o género feminino seja um factor preditivo de insucesso controverso e não confirmado em todos os estudos.4,7 Esboça-se um plano de consultas posteriores, que visam o acompanhamento próximo desta mudança comportamental, e opta-se por iniciar vareniclina (trampolim) com uma subida gradual da dosagem, uma semana antes do dia D.

15 de Março/2010: Lia volta à consulta programada em meados de Março. Entra no gabinete com fácies algo triste, referindo falha (tropeço) na cessação tabágica. Iniciou o fármaco, porém não assegurou o dia D. Atribui este insucesso ao aumento da sua ansiedade basal nesse dia, após a mãe ter tido uma agudização de lombalgias de difícil controlo com os opióides disponíveis em casa, o que terá obrigado a uma ida ao serviço de urgência hospitalar. Diz «não tive condições psicológicas nestas duas primeiras semanas do mês». É abordado o agravamento progressivo do estado de saúde da mãe, antecipando-se, desde já, prováveis períodos de agudização do seu padrão habitual de dispneia e dor e que poderão ter novo impacto na dinâmica familiar. Lia insiste, contudo, estar novamente em condições motivacionais para nova tentativa. É confirmada a presença mais regular da equipa de Cuidados Paliativos no domícilio, factor que Lia considera tranquilizador. Lia reforça «quero mesmo deixar de fumar e não quero ser como a minha mãe!». O plano consiste na reestruturação do esquema de consultas e no reinício da vareniclina no 7.o dia anterior ao novo dia D, 1 de Abril/2010.

7 de Abril/2010: Vem à consulta aberta por se encontrar com dúvidas relativamente à terapêutica. Encontra-se a tomar a dose máxima de vareniclina (1mg 2x/dia) e questiona se poderá manter a dose até ao dia 15 de Abril, eleito como novo dia D. Revela que alterou o dia D por «um problema pessoal» (tropeço). É aconselhada a manter a mesma dose.

30 de Abril/2010: Volta à consulta programada, documentando uma nova falha (tropeço) na cessação tabágica. São abordadas as possíveis razões que justifiquem os insucessos consecutivos. Diz ter andado mais ansiosa, realçando o carácter ansiolítico do cigarro. Não sabe especificar concretamente os motivos que incrementam a sua ansiedade basal. Nega tensão intraconjugal, regista a boa relação com a filha, afasta a possibilidade de problemas no local de trabalho. Nega que o agravamento clínico da mãe seja um factor implicado nestas tentativas frustradas. Acrescenta ainda «eu tenho que conseguir! Tenho o pior exemplo em casa... a todos os níveis!».

Perante um alto nível motivacional (documentado em novo teste de Richmond, 9 pontos) e ao seu discreto grau de dependência, as falhas sucessivas levantam subliminarmente a hipótese de existirem factores menos evidentes que estejam a dificultar o atingimento do êxito na cessação. Adivinha-se que a abordagem biopsicossocial desta paciente até então realizada é insuficiente ou incompleta. Numa tentativa empírica de a completar e de identificar aqueles factores, é agendada uma consulta para início de Maio/2010, totalmente dedicada a uma avaliação familiar. É acordado com a paciente que o objectivo de cessação tabágica ficará, para já, suspenso.

6 de Maio/2010: Na construção do genograma familiar, destaca-se um padrão transgeracional de tabagismo (avô materno – mãe – Lia). Lia atribui a pontuação máxima no APGAR familiar, revelando o contexto familiar altamente funcional e, mais uma vez, evidenciando o bom aporte de incentivo e apoio obtido no seio do seu agregado (Quadro II).

 

 

Ao construir a linha de vida de Medalie (Quadro III), revela ter sido abandonada pela mãe aos 6 anos e ter crescido até aos 18 anos em casa dos avós maternos. Conta que foi fruto de uma relação instável entre a sua mãe e seu pai, tendo vivido juntos até aos seus 6 anos embora «com o meu pai muito ausente» (sic), altura em que a mãe se afastara de Lia após ter emigrado para o Brasil com um companheiro com quem viria a casar e a ter outros dois filhos. Esta relação mãe-filha terá sido reatada há 5 anos, após o regresso definitivo da mãe a Portugal e após morte do seu padrasto. Lia é a única filha em Portugal e não tem contacto próximo com os seus meios-irmãos. Recorda-se de «ter chorado compulsivamente naquele mês em que ela partiu para o Brasil» e revela que se aproximou da mãe após esta a ter procurado. Diz que a relação, desde então, foi sempre «cordial, sem qualquer conflito, não se intrometendo na minha relação com a minha filha e marido» (sic). Com o avançar da consulta, diz que a mãe manteve uma vida autónoma até ao momento em que integrou o seu agregado familiar por se encontrar dependente de cuidados de terceiros. Evidencia a experiência «altamente enriquecedora» (sic) de ser cuidadora: «aprendi alguns tratamentos de enfermagem, a lidar com momentos de urgência médica... algo que me tem desafiado a tornar-me uma mulher mais desenrascada e sabichona» (sic). Quando questionada, nega um esgotamento gradual das suas reservas como prestadora de cuidados: «nunca fui psicologicamente abaixo, porque tenho uma família espectacular» (sic). Confrontada com os momentos de ansiedade que interferiram com as tentativas anteriores de cessação tabágica, conta «fiquei mais ansiosa pelo que eu sentia perante aqueles momentos de sufoco, do que propriamente pela minha mãe em si». Descortina depois que «sinto uma enorme culpa...não tenho qualquer compaixão pelo sofrimento da minha mãe e isto mexe comigo... sinto-me como se fosse um ser humano sem sentimentos». Acaba por confessar que entrara num ciclo de ruminação de pensamentos em que se via como uma «mulher fria» (sic) e como uma prestadora prática de cuidados “sem qualquer ligação emocional” (sic), altamente indutor de um sentimento de culpa e um mal-estar inespecífico e constante.

 

 

Cria-se um ambiente de empatia na consulta, em que se mostra a compreensão pela natureza da relação com sua mãe. Salienta-se o papel diário difícil, porém bem-sucedido, que desempenha ao cuidar de uma idosa em estado terminal. É realizada uma terapia cognitivo-comportamental breve, realçando a sua luta constante contra sentimentos antagónicos que poderiam interferir (embora não tivessem interferido até hoje) na excelência da sua prestação de cuidados. E, como parte final da consulta, é acordado um espaçamento de semanas até nova tentativa de cessação tabágica, período necessário para auto-reflexão, compreensão e sedimentação da coerência destas emoções vividas. É explicado que o processo indutor de ruminação de pensamentos, agora desvendado em consulta, terá sido o principal criador de uma perturbação da ansiedade que tem impossibilitado o seu afastamento do cigarro com «valor anti-stress» (sic).

4 de Agosto/2010: Neste dia, vem à consulta aberta, questionando quando deveria interromper vareniclina: não fuma há sete semanas! Revela que usou os dias após a consulta anterior para «resolução interior de todos os conflitos sentimentais» (sic), que reduziram a sua ansiedade e, consequentemente, a necessidade tão premente e constante do cigarro. Diz que estabeleceu o dia 14 de Junho como dia D e que, com a ajuda medicamentosa, não terá mais fumado. Conta ter desenvolvido sintomas ligeiros de abstinência como craving na primeira semana, um tremor e uma sudorese matinal ligeiros. Não registou efeitos laterais com a terapêutica. Revela já sentir o paladar mais apurado e um melhor condicionamento físico para a sua actividade física e esforços na mobilização da mãe dependente. Ao exame objectivo, apresenta-se sem alterações relevantes, mantendo o mesmo peso.

Consultas seguintes: Lia concluiu doze semanas de tratamento farmacológico e manteve seguimento em consulta. Actualmente, abstinente há mais de um ano, encontra-se em estádio de Manutenção. A mãe faleceu em finais de 2010.

COMENTÁRIO

Este caso revela o potencial diagnóstico e terapêutico de uma avaliação familiar, conjunto de ferramentas muito acessível ao médico de família. De facto, as consecutivas falhas de cessação numa mulher com bom prognóstico (ou seja, com um conjunto de factores preditivos de sucesso) fizeram suspeitar que haveria algo naquela pista que impedia Lia de correr e ganhar balanço para o seu salto. A motivação é uma condição fundamental para o êxito na cessação tabágica e a sua ausência apaga as expectativas de abstinência.

Neste caso em particular, os sucessivos insucessos não poderiam ser explicados por falhas motivacionais, pontuando a doente sempre bem alto no teste de Richmond. Suspeitou-se, pelo contrário, que houvesse um erro na aplicação dessa carga motivacional na própria acção de cessação, erro esse imperceptível para o seu médico (e, talvez, para a própria paciente) na fase inicial do seguimento programado. Christie-Seely chamar-lhe-ia insuficiência do modelo biomédico convencional e sugeriria uma avaliação familiar em busca de uma resposta.16,17

Uma avaliação familiar implica uma consulta alargada que ofereça um intervalo de tempo suficiente para a exposição de padrões e funcionalidade familiares e para a discussão de eventos de vida marcantes na vida do paciente e da dinâmica familiar.17 Trata-se, portanto, de uma consulta iniciada para a criação de um ambiente cúmplice que fortaleça a relação médico-doente e que induza um maior empowerment no paciente quanto à sua condição de saúde.17 É, por isso, também uma consulta mais consumidora de recursos. Porém, esta foi altamente eficaz no cumprimento de um objectivo que tendia a não ser bem-sucedido, através de uma assistência no primeiro passo para resolução de ambivalências sentidas, quer relativamente a uma temática familiar, quer relativamente ao cigarro. Criou-se um ambiente de empatia nesta consulta, que consistiu no auge da entrevista motivacional com Lia, permitindo uma abordagem ainda mais centrada em si, na sua família e no seu meio social. Houve, portanto, um gasto de recursos que constituiu um bom investimento clínico.

A construção do genograma expôs, para além da história familiar de doença cardiovascular, um padrão de tabagismo transgeracional, que alguns autores interpretarão como uma predisposição genética para esta toxicofilia. Vários polimorfismos genéticos têm sido apresentados como intervenientes neste processo. Estima-se que a genética possa ser responsável por até 60% do risco de iniciação do tabagismo e 70% da manutenção da dependência.7,8 Supõe-se que o sistema dopaminérgico seja um dos principais protagonistas, através dos receptores DRD2 e DRD4, transportador dopaminérgico DAT1 ou enzima MAO-A. Outras enzimas envolvidas são as CYP2A6 e CYP2D6, reguladoras do metabolismo da nicotina.7,18 Torna-se, também, relevante salientar um componente ambiental influenciador e patente neste padrão, algo discutível neste caso pela ausência da mãe fumadora. É, no entanto, importante a convivência com o avô materno fumador, num agregado familiar onde pertenceu até aos 18 anos.

O APGAR Familiar de Smilkstein revelou uma família altamente funcional, um aspecto muito importante pelo seu carácter estabilizador numa mudança de comportamento de estilo de vida. Esta ferramenta é de auto-preenchimento rápido e avalia o grau de satisfação individual com a funcionalidade familiar. Tem mostrado consistência interna quanto às suas propriedades psicométricas, a sua aplicação não parece ser influenciada por diferenças culturais, porém não se tem mostrado boa avaliadora da funcionalidade familiar com a sua utilização isolada.19,20 Este apoio da família é, reconhecidamente, dos mais contribuidores para um sucesso.4,5,7,14 Neste caso clínico, o uso desta ferramenta permitiu consolidar o bom prognóstico de Lia, porém, intrigou o seu médico de família quanto aos factores impeditivos de um sucesso. A suspeita caía, portanto, sobre a estrutura cognitivo-comportamental da própria paciente.

A linha de vida de Medalie explorou essa estrutura e consistiu num abrir, em plena pista, do tapete enrolado no qual Lia tropeçara em todas as tentativas. Esta ferramenta é usada, mediante uma linha, realçando alguns pontos nesse continuum, correspondentes aos eventos de vida mais marcantes.20 Mais do que retirar momentos passados de gavetas, esta construção poderá assumir-se mais como um desenrolar de um tapete desde uma infância até à idade actual, desvendando-se os life-events guardados entre as diferentes camadas do tecido. Neste caso, o abandono pela mãe aos 6 anos de vida, o reatar da relação aos 41 anos e a prestação exaustiva de cuidados de saúde desenvolveram todo um conjunto de sentimentos ambivalentes na paciente, que certamente estariam a ter repercussão no seu estado de humor e a criar um estado de tensão permanente. Esta ambivalência estender-se-ia em relação ao tabagismo, dificultando o seu remate final.

É muito provável, então, que o desenrolar daquela vida tenha criado uma pista atapetada comunicacional ansiolítica entre Lia e o seu médico. Tal foi fundamental para eliminar as irregularidades do piso da pista onde Lia corria e tropeçava antes de tentar dar o salto sobre a barra. Estas irregularidades consistiriam em segmentos de tapete ainda enrolados, ocultando a causa das suas constantes falhas (ou tropeços), e foram geradoras de uma perturbação ansiosa latente que impedia o afastamento de um cigarro ao qual a paciente sempre atribuiu «um valor anti-stress».

Este caso documenta, portanto, o valor de um conjunto de ferramentas de avaliação familiar que poderão diagnosticar desajustes familiares condicionadores de uma pertubação latente do estado de humor e, consequentemente, comprometedores de um êxito na cessação tabágica. Uma comparação simples poderá ser elaborada entre esta habituação resistente (neste caso clínico, insucesso com 3 tentativas sob farmacoterapia) e uma hipertensão resistente (definida como valores tensionais elevados sob terapêutica com pelo menos 3 classes de fármacos anti-hipertensores21): uma Monitorização Ambulatorial de Tensão Arterial (MAPA) em 24 horas está recomendada para a avaliação de uma hipertensão resistente21 assim como a avaliação familiar poderá estar para uma habituação resistente. Ambas são gastadoras de recursos e exigentes de maior tempo, porém podem ser bastante orientadoras para uma conduta terapêutica alternativa, mais eficaz. Ademais, esse conjunto de ferramentas potencia um ambiente de escuta e aconselhamento que só criará maior fluidez da entrevista motivacional, razão pela qual o seu uso poderá ser terapêutico para além de diagnóstico. Será, por isto, discutível se esta avaliação familiar não deverá ser realizada em determinado ponto no programa de apoio intensivo na cessação tabágica ou, pelo menos, como recurso a usar em insucessos menos previsíveis.

O interesse deste caso de cessação tabágica situa-se na relevância que dá a este conjunto de ferramentas, evidenciando a possibilidade de estas motivarem, por si só, a construção de uma interface entre o Médico de Família e o Pneumologista. A avaliação familiar, de utilização relativamente frequente no âmbito da Medicina Geral e Familiar, encontra-se, porém, ao alcance de qualquer outra especialidade médica. No entanto, uma vez que o Médico de Família está mais treinado no uso da avaliação familiar, esta comunicação entre os dois especialistas poderá passar pela referenciação do paciente fumador para a Medicina Geral e Familiar, caso este apresente «habituação resistente» e tenha, por algum motivo, iniciado programa de apoio à cessação tabágica nos Cuidados de Saúde Hospitalares.

É certo que, com o tempo de consulta gradualmente mais curto em contexto de diferentes estabelecimentos de saúde, uma consulta alargada para uma avaliação familiar parece, num primeiro instante, pouco exequível. Vale a pena, porém, reflectir sobre o tempo e os recursos que esta única consulta poderá poupar, ao detectar uma co-morbilidade impeditiva de sucesso, prevenindo uma série de consultas para um objectivo que dificilmente se cumpriria.

Este caso é, por isso, um exemplo de êxito. A paciente correu finalmente até à sua barra a alta velocidade motivacional, sem mais tropeços, tendo conseguido dar o salto bem alto, com a ajuda do trampolim medicamentoso.

 

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Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence

José Agostinho Santos

Rua Hernâni Torres, 73, 4.o Dir

4200 – 320 Porto

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CONFLITOS DE INTERESSE

O autor declara não possuir qualquer tipo de conflito de interesse.

 

Recebido em 23/03/2012

Aceite para publicação em 27/09/2012

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