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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar
versão impressa ISSN 2182-5173
Rev Port Med Geral Fam vol.30 no.3 Lisboa maio 2014
EDITORIAL
Prevenção quinquenária: prevenir o dano para o paciente, actuando no médico
José Agostinho Santos*
*Assistente de Medicina Geral e Familiar
USF Dunas, Lavra, ULS - Matosinhos
Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence
As actividades preventivas adquirem uma grande dimensão no quotidiano clínico do médico.1 Quatro níveis de prevenção são classicamente descritos na literatura: primária, secundária, terciária e quaternária.2-3
Qualquer um destes níveis de prevenção adquire uma importante expressão nas decisões clínicas sobre o paciente e sobre a relação médico-paciente. O potencial para uma boa razão benefício/custo destas decisões está retido numa medicina centrada no paciente.3-6 No entanto, as definições das actividades preventivas nestes quatro níveis parecem partir do princípio garantido de que o médico, como elemento único, é alicerce estável desde que seja possuidor da melhor evidência científica e/ou desde que seja praticante dos princípios éticos que deverão reger o seu exercício profissional. Se assim não for, poderá ser considerado desactualizado e/ou disruptor do juramento de Hipócrates.
Por outro lado, a relação médico-paciente e o paciente são ambos mutáveis, pelo que os outcomes negativos que possam emergir inesperadamente com as atitudes preventivas (primárias, secundárias, terciárias ou quaternárias) serão entendidos e não-puníveis (uma vez que a mutabilidade traz alterações que não puderam ser consideradas no início das decisões clínicas).
Nos dias de hoje poder-se-á discutir as melhores medidas para identificação e posterior resolução e prevenção de questões relacionadas apenas com o médico. Nesta sucessão de diferentes degraus de prevenção propõe-se aqui uma última mas não menos importante plataforma relacionada com a prevenção do burnout que consome a estabilidade do médico (conduzindo a uma mutabilidade de cariz negativo). O burnout é definido como um estado de plena exaustão física e/ou psicológica que germina da produção contínua e intensiva de respostas concertadas perante as elevadas exigências no local de trabalho.7-8 A exaustão equipara-se ao sobreaquecimento de um equipamento em sobreuso. Ora, o uso excessivo dos recursos tanto materiais como humanos, testando os limites, constitui uma tentação para a qual alguns administradores ou gestores poderão facilmente ceder. Entender-se-á, sob um falso princípio, que o sobreuso será rentável. No caso particular dos médicos, o sobreuso da sua actividade (número crescente de pacientes, encurtamento do tempo de consulta, sobrecarga de horas extraordinárias) poderá ser entendido como rentável para a instituição, assim como favorecedor de uma maior acessibilidade dos pacientes aos serviços da unidade. Nesta linha de pensamento estarão apenas medidos resultados intermédios. Na realidade, a meta final (qualidade de cuidados prestados com repercussão global no estado de saúde do paciente) não é avaliada.
O risco do burnout não é, portanto, contemplado por se entender, talvez, que tal é do foro pessoal exclusivo do médico. De facto, nos dias actuais e apesar de tanto se falar das consequências do burnout, os médicos sentem que pouco se valoriza a prevenção do seu burnout como parte da prevenção de problemas de saúde para os pacientes.9 Mas, na verdade, a prevenção do burnout delineia-se num fluxo particular: prevenir o dano para o paciente, actuando no médico. Esta actuação diferencia-se de qualquer das outras categorias de prevenção (que se centram no campo biopsicossocial do paciente e na relação médico-paciente). Poder-se-á dizer que constitui uma prevenção a um quinto nível e denominar, quiçá, de prevenção quinquenária.
Interessam aqui as questões como o erro médico. As medidas em prevenção quinquenária poderão conduzir a um incremento da motivação dos médicos, maximização dos raciocínios clínicos correctos (que, por sua vez, conduzam ao diagnóstico definitivo o mais precocemente possível), aumento da fluidez na comunicação entre estes profissionais de saúde e possivelmente trarão uma multiplicação dos lucros económicos inerentes às atitudes médicas assertivas e efectivas.10-12 Apesar de também protegerem o paciente do dano, estas medidas distinguir-se-iam da prevenção quaternária devido a dois aspectos: 1) a prevenção quinquenária actuaria exclusivamente no campo biopsicossocial do médico; 2) a prevenção quaternária emerge de acções sobre as convicções clínicas sem benefícios comprovados (mas que são tidas, pelos médicos portadores, como condutoras a boas práticas), enquanto a prevenção quinquenária emerge de acções que evitam práticas involuntariamente incorrectas.
Não constitui um pressuposto dos manuais de ética que o médico seja incansável e inesgotável.13 O burnout é expectável perante condições que favoreçam a sua germinação e poderá originar outcomes negativos que não são devidos a desactualização científica ou não-cumprimento dos princípios éticos. Tal inclui o erro médico honesto, em que os profissionais falham num plano mas cumprem as regras de actuação, a leges artis.14 Este erro é compreendido, mas deixa de ser alvo de prevenção (novamente: prevenção quinquenária).
Tenhamos, como exemplo, um quadro comum: o doente dependente e o seu cuidador. O médico terá uma atitude clínica a nível do cuidador enquanto individualidade única, que se acrescenta à atitude clínica a nível da interacção cuidador-doente e do doente. Não cabe ao médico iniciar acções no sentido de transformar uma pessoa próxima do doente num cuidador nato: a existência de um potencial para cuidar é um pressuposto exigido automaticamente a essa pessoa próxima, assim como é a entrega ao princípio ético de cuidar bem e não praticar o mal ao doente. Porém, cabe ao médico uma atitude que promova a expressão máxima desse potencial e dessa entrega, motivando o cuidador e prevenindo o seu desgaste.14-15 Ora, o médico é como um cuidador. Isto quererá dizer que as medidas nesta prevenção quinquenária não passam por criar actividades de estímulo à actualização científica ou ao cumprimento dos princípios éticos do cuidar, mas por estratégias que conduzam à evicção do erro que surge de uma deterioração do bem-estar biopsicossocial do médico.
A literatura é pródiga em artigos que abordam estratégias (com ou sem evidência comprovada) que alarguem a possibilidade de prevenção do burnout e/ou evicção os erros médicos.8-12 Estes erros poderão ocorrer durante o exercício profissional de médicos actualizados e que cumprem os fundamentos éticos. Foram já desenvolvidos uns poucos estudos no sentido de avaliar o impacto dessas estratégias na prevenção de resultados menos bons, algo que, em primeira instância, vai ao encontro do conceito da prevenção quinquenária. Se é certo que parte dos erros médicos brotam da ausência dos tais princípios fundamentais do código deontológico, também é conhecido que uma boa parte surge em contextos onde esses pressupostos estão bem vigorosos, ocorrendo falhas na dependência de outras circunstâncias.10-12
As estratégias no âmbito da prevenção quinquenária já existem na prática, faltando possivelmente a sua categorização e denominação para que sejam concretamente percepcionadas por todos os intervenientes num Sistema Nacional de Saúde. Elas desenrolam-se em quatro esferas: 8,10-12
1. Médico: estratégias que têm, como objectivo final, criar alterações ou manutenções favoráveis dos aspectos intrínsecos e biopsicossociais do médico, enquanto pessoa (existe uma componente afectiva no raciocínio médico);
2. Paciente/Comunidade: estratégias que visam gerar mudanças na comunidade onde o médico pratica o exercício profissional, de maneira a criar uma maior fluidez da relação médico-paciente;
3. Local de trabalho: estratégias que pretendem criar modificações a nível do local de trabalho que favoreçam a maximização do potencial profissional (recursos humanos, equipamento necessário no gabinete, adequabilidade dos sistemas informáticos de suporte à prática clínica, proximidade de outras especialidades médicas para referenciação e/ou discussão quanto à decisão clínica, protocolos de actuação clínica);
4. Administração/Governo: estratégias que vão ao encontro da satisfação do médico enquanto empregado de uma entidade que o contrata (nomeadamente, o fornecimento de redes de suporte às suas actividades).
As duas últimas esferas constituem, simultaneamente, campos de desenvolvimento de estratégias de governação clínica, definida como o processo através do qual “as organizações prestadoras de cuidados de saúde são responsáveis pela melhoria contínua da Qualidade dos seus serviços e pela garantia de elevados padrões de cuidados, criando um ambiente que estimule a excelência dos cuidados clínicos.”15 A questão que eleva é: estarão estas organizações a desenvolver estratégias que estimulem a excelência dos cuidados prestados?
O conceito da prevenção quinquenária é assim proposto, salientando o potencial para investigação existente nesta área. Tal como qualquer das outras categorias preventivas, a evicção do dano para o paciente constitui o objectivo tão final quão primordial.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Conflitos de interesse
O autor declara não ter conflitos de interesse.