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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar
versão impressa ISSN 2182-5173
Rev Port Med Geral Fam vol.30 no.5 Lisboa out. 2014
CLUBE DE LEITURA
O que ocupa os médicos de família portugueses?
What keeps family physicians busy in Portugal?
Raquel Braga
Médica de Família, USF Lagoa, ULS - Matosinhos
Granja M, Ponte C, Cavadas L. What keeps family physicians busy in Portugal? A multicentre observational study of work other than direct patient contacts. BMJ Open. 2014;4:e005026.
Introdução
O contexto da Medicina Geral e Familiar (MGF) evoluiu bastante nos últimos 30 anos em Portugal, desde o início da especialidade até aos dias de hoje. Para além das tarefas da consulta, o Médico de Família (MF) tem de manter os registos clínicos actualizados, fazer cartas de referenciação, renovar prescrições, analisar e registar exames complementares de diagnóstico, estabelecer contactos telefónicos e por e-mail com doentes e familiares, colaborar com outros profissionais de saúde, analisar os dados do seu desempenho, participar em tarefas de gestão e organização das Unidades de Saúde, participar no ensino médico e na investigação.
Objectivos
Quantificar o tempo despendido pelos Médicos de Família (MF) extra-consulta; avaliar a satisfação profissional dos MF; analisar a associação entre o tempo despendido em tarefas extra-consulta e o número de tarefas executadas e as características dos MF; analisar a associação entre o tempo despendido em tarefas extra-consulta e a satisfação profissional.
Metodologia
Estudo transversal, usando técnicas “tempo e movimento”. Foram documentados dois dias de trabalho, por observação directa, efectuada por internos do 1.o ano da formação específica de MGF ou alunos de medicina do 5.o e 6.o anos, presentes na consulta dos MF, seus tutores ou orientadores. A amostra de conveniência foi seleccionada de entre MF com listas com mais de 1.000 utentes que participavam no ensino médico em 2012. Os dados foram analisados por métodos estatísticos descritivos e analíticos, adoptando um nível de significância de 0,05.
Resultados
Foram incluídos na amostra 155 MF que trabalhavam em 104 Unidades de Saúde (41 médicos em UCSP e 114 em USF). Os MF prestavam cuidados a listas com mais de 1.090 utentes e menos de 2.030 (média de 1771,4 utentes), sendo os médicos participantes originários de catorze das dezoito regiões de Portugal.
A média de idade dos respondentes foi de 48,8 anos, sendo a média de anos de prática como MF de 19 anos; 70,3% dos respondentes eram do género feminino. A amostra de MF parece ser representativa dos MF que trabalham em Portugal em termos geográficos e de idade. A taxa de recusa à participação no estudo foi de 4,7%.
Os MF (n=155) trabalhavam mais de 8h por dia e despendiam uma média de 143,6 min/dia (135,2 - 152,0 com IC 95%) em tarefas extra-consulta, como renovação de prescrições, ensino médico, reuniões, tarefas de gestão e coordenação, comunicação com outros profissionais, o que representa 33,4% da sua carga laboral. Uma média de 10,8 tarefas diferentes foram executadas por dia, tendo sido observadas a execução de mais de uma tarefa simultaneamente em média 3,7 min/dia. Quantidade idêntica de tempo foi despendida em tarefas extra-consulta clínicas (73,0 min) e não clínicas (74,3 min). Em média foram registadas 19 consultas presenciais (duração 15,9 min) e 6 contactos não presenciais.
Os MF com listas de utentes maiores despendem menos tempo nestas tarefas (p=0,002). Os MF com mais idade (p=0,002) e com listas maiores (P=0,01) desenvolvem menos tarefas diferentes. A média de satisfação profissional medida numa escala de 1 a 5, validada para a população portuguesa, foi de 3,5 e não foi encontrada relação estatisticamente significativa entre esta e a quantidade de tempo despendido em tarefas.
Conclusões
Os MF despendem um terço do seu tempo laboral em actividades de gestão organizacional, coordenação dos cuidados e ensino médico. O tempo dedicado a estas tarefas, que são executadas fora da consulta presencial, diminui com o aumento do tamanho da lista e com a idade dos médicos.
COMENTÁRIO
Este estudo é pioneiro ao caracterizar e quantificar as tarefas executadas pelos MF, sobretudo por esta caracterização ser efectuada por observadores externos. Já num estudo exploratório anterior1 tinha sido caracterizada a carga de trabalho efectuada fora da consulta presencial, documentada pelo próprio MF, como ocupando 23% das suas tarefas diárias.
O presente estudo multicêntrico, de grande dimensão, com uma metodologia adequada, espelha algo que é sentido por todos os clínicos: há uma carga de trabalho bastante consumidora de tempo, que não é explicitamente quantificada nem pelos indicadores de saúde nem pelos indicadores de desempenho e que constitui um terço da carga laboral.
Este trabalho “invisível” pode ter um cariz clínico e não clínico. As tarefas consideradas como não clínicas, relacionadas com a recolha e análise de indicadores, a participação nas actividades de planeamento dos serviços, a colaboração na formação e educação médicas, bem como a participação em projectos de investigação, têm já um enquadramento legal enquanto competência dos médicos em geral.2-3 O trabalho clínico, que se prolonga para além dos encontros presenciais com o doente no consultório, inclui a articulação de cuidados com outros profissionais de saúde, com os doentes ou familiares, a avaliação de meios complementares de diagnóstico e a prescrição de medicação crónica, também não é quantificável. A estas tarefas sabidamente correspondem mais acessibilidade, mais continuidade e globalmente melhores cuidados. No entanto, este acréscimo de tarefas expectável com o aumento das listas não é tido em consideração pela tutela ao exigir o aumento das listas de utentes a colegas que mantêm as condições contratuais.
A imposição de aumento da dimensão das listas de utentes torna premente a utilização de tempo útil em consultas presenciais. Só o tempo necessário para seguir as recomendações relacionadas com o cumprimento das actividades preventivas e de vigilância de doenças crónicas é superior ao tempo que os MF podem acomodar, conforme resultados de estudo realizado em Portugal com uma lista de 1.587 utentes.4
Por outro lado, o rigor da contratualização, consubstanciado pela necessidade crescente de cumprimento de indicadores de saúde, alguns dos quais bastante complexos, são exemplos das mudanças do paradigma dos cuidados a prestar nos últimos anos.
Todos estes factores ocupam tempo para além de consulta que, como foi documentado neste e em outros estudos,1,4 não pode ser contido no horário laboral, observando-se que os MF dedicam, de facto, mais tempo do que aquele que está consagrado no seu contrato.
Neste estudo foi analisada a carga horária ocupada em tarefas extra-consulta relacionada com o tipo de contrato e a satisfação profissional. Não foi realizada uma análise que considerasse o modelo de funcionamento da Unidade de Saúde, o que pode funcionar como factor de confundimento. As Unidades de Saúde Familiar (USF) têm um modelo de funcionamento que assenta numa relativa autonomia e se baseia na garantia de cumprimento de um compromisso assistencial e não no cumprimento de um horário laboral, pelo que o aumento de utentes e o desempenho são compensados financeiramente nas USF em Modelo B. Estas USF são sentidas pelos MF como projectos seus e os prémios de desempenho são considerados estimuladores de criatividade e dedicação, condicionando melhores resultados na acessibilidade, na relação com os utentes e na eficiência e rigor dos cuidados prestados.5-6 No entanto, existem inúmeras tarefas realizadas pelos MF que, sendo essenciais para atingir o nível de qualidade desejada e garantir a satisfação dos utentes, não são contabilizadas na sua produtividade e não se reflectem directamente na sua remuneração.1
Este estudo levanta uma questão: Como é que os médicos mais velhos ou com listas maiores gerem a execução destas actividades fundamentais? Estes resultados sugerem que os médicos mais velhos ou com maior número de doentes podem estar a sofrer de desinvestimento profissional, executando menos tarefas e consagrando menos tempo a questões muito relevantes da actividade assistencial que reflectem a qualidade de cuidados prestados. Estes dados, preocupantes, devem conduzir a políticas que permitam e garantam uma gestão racional e uma valorização das tarefas extra-consulta a par de uma prática de consulta presencial adequada em que o tempo consagrado para a actividade clínica em todas as vertentes do seu desenvolvimento seja exequível, não esquecendo nunca o principal - os cuidados centrados no paciente e o tempo necessário para o escutar.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Granja M, Ponte C. O que ocupa os médicos de família? Caracterização do trabalho médico para além da consulta (What keeps family physicians so busy? A description of medical work beyond patient). Rev Port Clin Geral. 2011;27(4):388-96. Portuguese
2. Decreto-Lei nº 176/2009, de 4 de Agosto. Diário da República. 1ª série(149).
3. Decreto-Lei nº 177/2009, de 4 de Agosto. Diário da República. 1ª série(149).
4. Pinto D, Corte-Real S, Nunes J. Actividades preventivas e indicadores: quanto tempo sobra? (Preventive activities and performance indicators: how much time is left?). Rev Port Clin Geral. 2010;26(5):455-64. Portuguese
5. Alvim A. Cuidados de saúde primários, na altura de escolher. Jornal Público. 2011 Sep 29 (cited 2014 Sep 18), Available from: http://www.publico.pt/opiniao/jornal/cuidados-de-saude-primarios-na-altura-de-escolher-23085272. [ Links ] Portuguese
6. Braga R. A desaceleração do processo de reforma dos cuidados de saúde primários. Rev Port Med Geral Fam. 2013;29(4):218-20. [ Links ]
Conflitos de interesse
A autora declara não ter conflito de interesses.