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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.31 no.4 Lisboa ago. 2015

 

ESTUDOS ORIGINAIS

Qualidade do sono e prevalência das perturbações do sono em crianças saudáveis em Gaia: um estudo transversal

Sleep quality and sleep disturbances in healthy children in Gaia: a cross sectional study

Ma Adriana Rangel,1 Carolina Baptista,1 Ma João Pitta,2 Sara Anjo,2 Ana Luísa Leite3

1Médica Interna de Pediatria, Serviço de Pediatria, Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia e Espinho, EPE.

2Médica Interna de Medicina Geral e Familiar, UCSP Barão do Corvo, ACeS Grande Porto VII - Gaia.

3Médica Assistente Hospitalar de Pediatria, Serviço de Pediatria, Centro Hospitalar de Vila Nova de Gaia e Espinho, EPE.

Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence


 

RESUMO

Objetivos: Avaliar a qualidade do sono e estimar a prevalência das perturbações do sono em crianças dos dois aos 10 anos de idade num centro de saúde da área metropolitana do Porto.

Tipo de estudo: Estudo observacional descritivo e transversal.

Local: Consulta de saúde infantil e juvenil num centro de saúde na área urbana do ACeS Grande Porto VII - Gaia.

População: Crianças dos 2 aos 10 anos inscritas num centro de saúde do ACeS Grande PortoVII - Gaia.

Métodos: Aplicação do questionário Portuguese Children’s Sleep Habits Questionnaire (CSHQ-PT), traduzido e validado para a população portuguesa, bem como um inquérito padronizado com questões individuais a crianças entre os 2-10 anos, observadas em Consulta de Saúde Infantil e Juvenil, de abril a junho de 2014.

Resultados: A amostra foi composta por 131 crianças com mediana de idades de cinco anos, 55% em idade pré-escolar, com predomínio do sexo masculino (53,5%). O índice de perturbação do sono (IPS) associou-se com o grupo etário (maior na idade pré-escolar, p=0,032) e, considerando o cut-off de 41, 80,2% apresentaram um IPS elevado (mediana=47). Um IPS superior associou-se à necessidade de um familiar no quarto (p=0,005) ou na cama (p<0,001) para adormecer, visualização de televisão (p=0,006) e uso de videojogos (p=0,04). As crianças que partilhavam quarto com irmão ou dormiam sozinhas apresentaram um IPS inferior às que partilhavam quarto com os pais (p=0,015). Um IPS inferior associou-se a um rendimento escolar superior (p=0,029).

Conclusão: Os problemas comportamentais do sono são frequentes na nossa população, particularmente em idades mais jovens, existindo associação significativa com a necessidade da presença de um familiar no quarto ou na cama para adormecer, bem como à visualização de televisão e uso de videojogos, estando este dois últimos associados a um menor tempo total de sono.

Palavras-chave: Transtornos do Sono; Determinantes Epidemiológicos; Cuidados Primários de Saúde.


 

ABSTRACT

Objectives: To evaluate the quality of sleep and estimate the prevalence of sleep disorders in children from two to 10 years old at a health center in the metropolitan area of Porto.

Study type: Cross-sectional study.

Setting: Child health consultations at a primary health care center in the urban area of Grande Porto ACeS VII - Gaia.

Participants: Children aged from 2 to 10 years enrolled in a health center of ACeS Grande PortoVII - Gaia.

Methods: The Children’s Sleep Habits Questionnaire (CSHQ-PT) translated and validated for use in Portuguese, and a questionnaire on individual, social, and family issues, were applied to children between two and 10 years of age, who attended a child health consultation between April and June, 2014.

Results: A total of 131 questionnaires were analyzed. The median age was 5 years and 55% of the subjects were in the pre-school age with a predominance of male subjects (53.5%). The Sleep Disturbance Rate (SDR) was higher in pre-school aged children (p<0.032). Using a cut off score of 41, an elevated SDR was found in 80.2% (median 47). A higher SDR was associated with the need for a family member in the bedroom (p=0.005) or in bed (p<0.001) to help the child fall asleep, or the use of television (p=0.006) or videogames (p=0.04) before bedtime. Children who slept alone or shared a bedroom with a sibling had a lower SDR than those sharing bedroom with their parents (p=0.015). A lower SDR was associated with higher academic performance (p=0.029).

Conclusion: Sleep-disturbances are frequent in this population, particularly in younger ages. A significant association was found between the need for the presence of a relative in the room or in bed to help the child fall asleep. Television viewing and use of videogames were associated with a reduced total sleep time.

Keywords: Sleep Disorders; Epidemiologic Factors; Primary Health Care.


 

Introdução

O sono apresenta um papel vital no crescimento e desenvolvimento das crianças sendo, no entanto, as suas perturbações frequentemente subdiagnosticadas.1 É um processo fisiológico complexo, influenciado por propriedades biológicas intrínsecas, temperamento, expectativas, normas culturais e condições ambientais.2

Estudos demonstram que tanto os médicos como os pais não estão, em muitos casos, preparados para identificar e abordar este tipo de problema nas consultas.3-4 Estima-se que cerca de 25% das crianças tenham, nalguma fase da sua infância, uma perturbação do sono.5 Em Portugal, os dados disponíveis sobre prevalência das perturbações do sono são consideravelmente menores quando comparados com a literatura internacional, variando de 5,6 a 32%.6-8 Apesar de frequentes, as alterações do sono são culturalmente aceites por uma grande parte dos pais e, dessa forma, subvalorizados.6

Sabe-se que as perturbações do sono podem causar morbilidade substancial na criança, nomeadamente consequências a nível do comportamento, da aprendizagem e mesmo perturbações de desenvolvimento como hiperatividade, défice de atenção, défice cognitivo, depressão, risco de quedas acidentais e obesidade.2,9-10 Além das complicações mencionadas nas crianças, estas perturbações podem também ocasionar nos pais privação de sono, fadiga, alterações do humor, frustração, afetando o desempenho parental e constituindo até fator de risco para violência familiar e divórcio.2,5

A abordagem dos hábitos de sono, quer pela família quer pelo médico, nem sempre é feita nas consultas de vigilância de saúde infantil e juvenil, ficando a deteção de possíveis perturbações para uma fase mais tardia em que as manifestações e suas repercussões já se fazem sentir.5 Por este motivo, torna-se fulcral a abordagem sistemática deste tema nas consultas de saúde infantil como forma de prevenção,2 dado que a instituição de regras para uma boa higiene de sono pode ser suficiente para corrigir algumas destas perturbações.5

Embora seja cada vez mais reconhecida a importância do sono na saúde infantil e juvenil, existem ainda poucos estudos sobre esta questão em Portugal baseados em inquéritos padronizados. Recentemente elaborado, traduzido e devidamente validado para a população portuguesa, o Portuguese Children’s Sleep Habits Questionnaire - CSHQ-PT tem por objetivo avaliar os hábitos de sono e detetar eventuais problemas associados.11 Em Portugal foi aplicado por Silva e colaboradores a uma população escolar da região metropolitana de Lisboa.6 Deste modo, o objetivo principal do presente estudo foi avaliar a qualidade do sono e estimar a prevalência das perturbações do sono em crianças dos dois aos 10 anos de idade num centro de saúde da área metropolitana do Porto através da aplicação do CSHQ-PT. Como objetivos complementares comparam-se estes achados com o estudo referido6 e estudaram-se fatores individuais, sociais e familiares, com influência na qualidade do sono.

Material e Métodos

Elaborou-se um estudo observacional descritivo e transversal. A amostra foi constituída por crianças com idades entre os dois e os 10 anos, observadas em consulta de saúde infantil e juvenil, num centro de saúde da área urbana do ACeS Grande Porto VII - Gaia, no período de abril a junho de 2014. A amostra foi dividida em dois grupos consoante a idade: pré-escolar (dois aos cinco anos de idade) e escolar (seis aos 10 anos de idade).

Previamente estimou-se como universo amostral representativo necessário um total de cerca de 90 questionários, considerando um erro amostral de 5%, com intervalo de confiança 95% e numa população de 18.985 crianças em idade pré-escolar e escolar (números do Ministério da Educação), com uma prevalência mínima esperada de 5,6%.

Os critérios de inclusão foram a idade elegível da criança e a vontade dos pais em participar com consentimento informado e escrito. A cada caso elegível foi aplicado, e respondido presencialmente na consulta, o CSHQ-PT ao acompanhante da criança à CSIJ. Este questionário foi complementado com um inquérito padronizado sobre fatores sociofamiliares e individuais elaborado pelos autores e testado previamente num período experimental.

A versão portuguesa do CSHQ-PT foi validada para crianças dos dois aos 10 anos de idade e encontra-se disponível online.11 O questionário permite avaliar as horas de acordar e de deitar (à semana e ao fim-de-semana), bem como a duração habitual do sono e a frequência de diversos comportamentos relacionados com o sono.

Alguns comportamentos-problema, que correspondem ao mesmo tipo de distúrbio do sono, podem ser agrupados em subescalas (Quadro I).

 

 

Realizou-se a soma da cotação total das questões para obtenção do Índice de Perturbação do Sono (IPS) e a soma parcelar nas diferentes subescalas (Quadro I).

O questionário anexado ao CSHQ-PT, elaborado pelos autores, incluiu questões sobre antecedentes patológicos e medicação diária da criança, rendimento escolar, prática de exercício físico, bem como hábitos e rituais antes de adormecer, entre outras. Incluiu ainda questões sobre o tipo de agregado familiar, escolaridade e profissão dos pais (incluindo trabalho por turnos e trabalho noturno), antecedentes de insónia, depressão, necessidade de medicação e hábitos parentais para adormecer.

Na análise estatística utilizou-se a versão 21.0 do programa SPSS® (IBM®, SPSS® Statistics Inc., Chicago). O teste de Shapiro-Wilk (p>0,05) foi usado para testar a normalidade das variáveis quantitativas. A comparação de frequências relativas, de distribuições e de valores médios foi avaliado através de testes de qui-quadrado (variáveis categóricas), Mann-Whitney e Kruskal Wallis (variáveis numéricas de distribuição não normal) e testes t de student e ANOVA (variáveis numéricas paramétricas). Considerou-se uma probabilidade de erro tipo I (α) de 0,05.

O estudo foi aprovado pela Comissão de Ética da Administração Regional de Saúde (ARS) do Norte e foi concedida autorização dos autores da versão portuguesa do CSHQ-PT para aplicação do mesmo neste estudo.

Resultados

Foram respondidos um total de 141 inquéritos, dos quais 10 (7,1%) foram excluídos por preenchimento inválido (n=1, idade superior a 10 anos) ou muito incompleto (n=9, mais de 20% das respostas omissas). Deste modo, foram incluídos no estudo dados referentes a 131 crianças.

Destas 131 crianças, a idade mediana correspondeu aos cinco (Amplitude Interquartil - AIQ: 3-7) anos, com predomínio do sexo masculino (n=70, 53,5%). Cinquenta e cinco por cento (n=72) correspondiam a crianças em idade pré-escolar (dois aos cinco anos de idade), das quais apenas nove ainda não frequentavam infantário e/ou pré-escola. A mediana da idade de entrada no infantário foi 24 (AIQ: 12-36) meses.

A restante caracterização sociodemográfica da amostra é resumida no Quadro II.

 

 

Relativamente à constituição do agregado familiar, na maioria dos domicílios reside uma mediana de quatro pessoas (min=2; máx=8), sendo a maioria dos agregados do tipo nuclear (77,7%). No que diz respeito ao número de irmãos, a mediana é um (min=0; máx=4). A maioria das habitações tem dois (min=1; máx=4) quartos (49,6%) e, na maioria dos casos, a criança partilha-o com um irmão (42,6%) ou não o partilha com ninguém (41,9%). A idade mediana de saída do quarto dos pais é o ano de idade (min=0; máx=6); contudo, 13,2% da amostra ainda partilhava quarto com os pais (Md da idade três anos; AIQ: 2-7).

Hábitos e rituais para adormecer

A mãe é quem deita a criança na maioria dos casos (50,8%, n=66).

Em apenas 17,6% (n=23) os pais negam algum hábito ou ritual para a criança adormecer. Vinte e seis por cento necessitam de luz de presença, 22,1% necessitam de um familiar na cama para adormecer e 15,1% necessita de um familiar presente no quarto. O uso de chupeta foi reportado em 21,5% (n=28), sendo significativamente mais frequente na idade pré-escolar (p=0,001).

Quanto aos rituais antes de adormecer, 47,3% das crianças bebem leite, sendo significativamente mais frequente na idade pré-escolar (p=0,008); 36,6% leem e/ou ouvem uma história e 35,9% veem televisão. O uso de videojogos foi referido em apenas dois casos (1,5%).

A realização de sesta diária é mais frequente na idade pré-escolar (48,6% vs. 5,1%, p<0,001) e a proporção de crianças que dorme sesta nos diferentes grupos etários decresce com o aumento da idade.

A frequência dos diferentes hábitos e rituais assinalados no inquérito encontram-se ilustrados no Quadro III, bem como a comparação entre grupos (escolar vs. pré-escolar).

 

 

Qualidade do sono e problemas associados (CSHQ-PT)

A mediana da hora de deitar nos dias de semana foi 21h30min (AIQ: 21h07 - 22h00) e ao fim-de-semana às 22h00, não havendo diferenças estatisticamente significativas entre os grupos. A mediana da hora de acordar durante a semana foi 8h00 (AIQ: 7h30-8h15) e ao fim-de-semana 9h00 (AIQ: 8h00-10h00), ocorrendo mais cedo nas crianças em idade escolar (p=0,051).

A mediana do tempo total de sono foi 10h00 (AIQ: 9h30-11h00), sendo superior na idade pré-escolar (p=0,002) e decrescendo com o aumento da idade (figura 1). Quanto ao número mínimo de horas de sono, 56,3% e 41,1% das crianças no grupo pré-escolar e escolar, respetivamente, não dorme o número mínimo de horas recomendado (recomendações da Centers for Disease Control and Prevention - disponível em www.cdc.gov/sleep/about_sleep/how_much_sleep.htm).

 

 

O índice de perturbação do sono (IPS, cotação total do CSHQ-PT) na amostra tem uma mediana de 47 (AIQ: 42-51), que não difere significativamente do valor IPS encontrado por Silva e colaboradores6 na população da área metropolitana de Lisboa (p=0,81). Considerando o cut off de 41, 80,2% (n=105) apresenta um IPS elevado, decrescendo para 49,6% (n=65) quando considerado o cut off ajustado para a população portuguesa (IPS>48), sugerido por Silva e colaboradores.6

O IPS associou-se ao grupo etário, sendo mais elevado nas crianças em idade pré-escolar (p=0,032). Na análise de subescalas do questionário, as crianças em idade pré-escolar apresentam cotações mais elevadas nas subescalas Resistência em ir para a cama (p=0,001) e Parassónias (p=0,024), não havendo diferenças estatisticamente significativas nas restantes subescalas (conforme descriminado no Quadro IV).

 

 

O IPS não teve relação estatística com o género, antecedentes de prematuridade, presença de antecedente patológico reportado pelos pais ou com o uso diário de medicação.

Um IPS significativamente mais elevado associou-se à necessidade da presença de um familiar no quarto (p=0,005) ou na cama (p<0,001) para adormecer, bem como à visualização de televisão (p=0,006) e uso de videojogos (p=0,047), estando estes dois últimos associados a um menor tempo total de sono (p<0,02). Não se verificou associação estatística com o uso de chupeta ou objeto de transição, nem com a necessidade de luz de presença. As rotinas de higiene (lavar os dentes, tomar banho) ou o hábito de leitura antes de dormir também não mostraram relação com o IPS.

As crianças que partilhavam quarto com irmã(o) ou que dormiam sozinhas apresentaram um IPS significativamente menor que aquelas crianças que partilhavam quarto com os pais (p=0,028). Um IPS inferior verificou-se também naquelas crianças que se deitavam sozinhas, ou que eram deitadas por ambos os pais, contrariamente aquelas que eram deitadas pela mãe ou pelo pai (p=0,005).

No que concerne aos fatores sociais e familiares, não se obteve associação do IPS com o tipo de agregado familiar, número de pessoas a residir no domicílio, escolaridade dos pais ou a sua situação profissional, nomeadamente com o trabalho por turnos ou com turnos noturnos. Houve apenas relação entre o IPS e antecedentes de insónia reportado pelos pais (p=0,033).

Um IPS inferior esteve estatisticamente associado a um rendimento escolar superior (p=0,029). Não se obteve associação entre o IPS e a frequência de birras, queixas de distração ou impulsividade reportadas pelos pais. A prática de exercício físico não mostrou associação com IPS; contudo, associou-se a uma cotação inferior na subescala “despertares noturnos” (p=0,032).

Discussão

A infância é caracterizada por mudanças consideráveis na organização, duração e estrutura do sono, com elevada incidência de problemas de sono transitórios como resistência em ir para a cama e ansiedade relacionada com o sono.10 O que é com frequência menos reconhecido são os problemas de sono crónicos que afetam até cerca de 30% das crianças. Além dos efeitos nefastos no neuro desenvolvimento da criança, os problemas de sono causam efeitos negativos a nível familiar.5

A maioria dos estudos sobre o sono nas crianças portuguesas aponta para uma elevada frequência de problemas do sono e comportamentos deletérios na nossa população, utilizando, contudo, inquéritos não padronizados, dificultando a comparação.2,5,7,12 O CSHQ é um dos inquéritos padronizados mais usados mundialmente e foi recentemente validade e traduzido para a população portuguesa.11 Foi aplicado por Silva e colaboradores6 numa amostra significativa de crianças na área metropolitana de Lisboa e, à semelhança de outros estudos, aponta para uma elevada prevalência de perturbações do sono, sublinhando a necessidade de rastrear as mesmas. O valor médio do Índice de Perturbação do Sono (IPS) encontrado neste estudo (46,51±6,80) não difere significativamente do encontrado no nosso.

Na presente amostra, tendo em conta o cut off original de 41 para o Índice de Perturbação do Sono (IPS), 80,2% apresentavam um IPS elevado. Silva e colaboradores6 sugerem o ajuste do cut off do IPS de 41 para 48, considerando este valor mais adequado à população portuguesa. Mesmo considerando este cut off, 49,6% apresenta um IPS elevado, demonstrando a elevada prevalência de comportamentos problema no que concerne ao sono na população estudada. Contudo, não se sabe se é apenas uma questão cultural ou se, de facto, as crianças portuguesas têm uma prevalência superior de problemas de sono e desconhece-se qual a repercussão das mesmas.

O grupo pré-escolar apresentou um IPS significativamente superior, o que traduz uma maior frequência de comportamentos problema na criança mais jovem, particularmente neste caso nas subescalas resistência em ir para a cama e parassónias. Este achado traduz a já conhecida maior prevalência das perturbações do início e manutenção do sono mais frequentes na criança pequena, bem como pesadelos, terrores noturnos e sonambulismo igualmente mais frequentes nesta idade.12 Deste modo, a inclusão de crianças em idade pré-escolar neste estudo pode ser responsável pela elevada proporção de crianças com IPS elevado.

Na presente análise detetaram-se alguns fatores estatisticamente associados a um IPS superior, nomeadamente a visualização de televisão e uso de videojogos, partilha de quarto com os pais, a necessidade de adormecer com um familiar presente no quarto ou na cama e história parental de insónia.

O efeito nefasto do tempo de ecrã foi já demonstrado,13-14 considerando-se que se deve a um atraso no início do sono.

Relativamente a estudos prévios, verifica-se que uma menor proporção de crianças via televisão antes de dormir (35,9% vs. 71-77%).5,7 Contudo, não foi questionado o uso de outros dispositivos eletrónicos, como tablets, telemóveis, etc., cuja utilização pode ter aumentado nos últimos anos.

A associação entre um IPS mais elevado e a necessidade de um familiar no quarto ou na cama para adormecer, contrapondo-se ao IPS inferior nas crianças que se deitam sozinhas e que partilham quarto com irmão, é consistente com o conceito de que o adormecimento independente, em cama própria, é favorecedor de uma melhor qualidade de sono, conferindo à criança a capacidade de readormecer sozinha perante um despertar noturno.

O co-sleeping, isto é, a partilha da cama dos pais, é um comportamento desaprovado pela maioria das sociedades ocidentais por considerarem que não promove o adormecimento autónomo e, por outro lado, porque diminui a qualidade do sono, estando associado a maior sonolência diurna.15 Todavia, convém salientar que o sono é fortemente moldado por valores culturais, crenças e expectativas dos pais.16 As normas culturais determinam os limites entre os comportamentos de sono “normais” e “problemáticos”. Várias culturas não só promovem o co-sleeping como consideram que o quarto próprio para a criança é prejudicial.16 É por isso fundamental compreender o que constituiu de facto um problema de sono, quando, a quem e a melhor forma de abordar. Muitas vezes a abordagem envolve a modificação ou introdução de novos hábitos por forma a equilibrar as necessidades da criança e dos pais.

Os objetos de transição, normalmente objetos como a chupeta, a fralda, o peluche, facilitam o adormecimento ao providenciar uma sensação de conforto e segurança à criança, podendo ser usados com o objetivo de promover o adormecimento independente,16 não tendo demonstrado um efeito negativo no IPS. A associação entre um IPS superior e a história familiar de insónia denota a influência genética na estrutura do sono, embora menor que os fatores ambientais.17-18

A duração adequada do sono é um aspeto com frequência negligenciado. A redução do número de horas de sono pode ter os mesmos efeitos negativos que as restantes perturbações do sono. A este respeito verifica-se na presente amostra que a duração total do sono (DTS), à semelhança de outros estudos,19-21 decresce ao longo da idade (figura 1), de uma mediana de 12h00 (AIQ: 2h45) aos dois anos, para 9h37 (AIQ: 1h) aos 10 anos. A depressão na DTS aos oito anos de idade (Md = 9h15; AIQ 1h) não apresenta explicação aparente, podendo ser consequência do reduzido número do grupo (n=8), com dispersão de valores elevada. O decréscimo na DTS ocorreu de forma paralela a uma diminuição da proporção de crianças que faz sesta, sendo que apenas três crianças no grupo escolar (5,1%) realizam sesta diariamente. Obteve-se uma mediana de DTS que foi superior à média em Espanha,22 mas inferior a outros países europeus, nomeadamente Inglaterra, Irlanda, Suíça.20-21,23 O tempo total de sono diário correlaciona-se inversamente com a idade, bem como com a hora de deitar mais tardia,13-14,19 uma tendência que se tem vindo a agravar nos últimos anos, conforme demonstrado por Iglowstein e colaboradores.21

Na presente amostra, uma percentagem significativa de crianças (41,1-56,3%) não dorme o número mínimo de horas recomendado. Esta percentagem pode ainda ser mais importante, uma vez que o tempo de sono reportado pelos pais é habitualmente ligeiramente superior ao tempo de sono real, traduzindo mais o “tempo na cama” do que propriamente o tempo a dormir. Sendo a DTS fortemente determinada por fatores ambientais (~60%), há uma importante janela de oportunidade de intervenção.14,16

É fundamental salientar que os problemas de sono são com frequência subvalorizados e subdiagnosticados. Este facto deve-se, por um lado, ao facto de os profissionais de saúde com frequência não questionarem sobre o tema nas CSIJ, pressupondo que os pais espontaneamente levantarão essa questão.3,24 Contudo, o conhecimento dos pais acerca dos normais padrões de sono ao longo da infância, eventuais problemas e duração adequada do sono é claramente insuficiente.4 Este facto, aliado ao desconhecimento populacional dos efeitos negativos que estes exercem, leva a que estes sejam subreportados pelos pais nas CSIJ.10 De facto, nos estudos realizados em Portugal, apesar de uma percentagem significativa considerar que o seu filho tinha um problema de sono (74-84%), o tema só tinha sido abordado como queixa na CSIJ em 7-13%.2,7

Como limitações deste trabalho, refiram-se as inerentes ao facto de se tratar de um estudo observacional, ao processo e dimensão amostral. Por ter sido realizado num único centro de saúde de Vila Nova de Gaia, o que limitou a heterogeneidade geográfica e populacional, não possibilita, obviamente, a generalização à população de Vila Nova de Gaia. Contudo, o presente estudo permite salientar, ao identificar uma elevada prevalência de comportamentos problema nesta população, a necessidade de realização de estudos futuros nesta área, nomeadamente estudos que avaliem as repercussões destes comportamentos a nível familiar e na criança (comportamento, rendimento escolar, etc.).

Uma vez que não foi questionado ao acompanhante da criança a sua perceção da qualidade do sono da mesma ou se este considerava que a criança tinha algum problema de sono, não foi possível estimar o grau de concordância entre esta avaliação subjetiva e o IPS obtido - um dado que poderia ser interessante. Também não foi questionado se o tema já tinha sido abordado com o médico assistente/pediatra que acompanha normalmente a criança.

O preenchimento presencial do inquérito pode ter causado algum viés de resposta em algumas questões (nomeadamente quanto aos rituais antes de dormir), o que poderia explicar, por exemplo, a redução significativa da percentagem de crianças que via televisão antes de deitar face a estudos anteriores.

Uma vez que os antecedentes patológicos e medicação foram assinalados pelo acompanhante, uma percentagem destes poderá não ter sido referida e, portanto, ser superior ao estimado. Pelo facto de algumas patologias e medicação crónicas poderem influenciar negativamente a qualidade do sono, as mesmas poderiam explicar a elevada prevalência de perturbações do sono encontrada.

 

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Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence

Maria Adriana Rangel

Serviço Pediatria - Centro Hospitalar Vila Nova de Gaia/Espinho, EPE

Rua Francisco Sá Carneiro, 4400-129 Vila Nova de Gaia

E-mail: mariaadrianarangel@hotmail.com

 

Agradecimentos

Um agradecimento especial à Drª Isabel Ribeiro, minha orientadora de formação no estágio de Cuidados de Saúde Primários à Criança e ao Adolescente, que muito me ajudou na concretização deste trabalho.

Conflito de interesses

Os autores declaram não ter conflitos de interesses.

Comissão de ética

Estudo realizado após parecer favorável da Comissão de Ética para a Saúde da ARS Norte.

 

Recebido em 28-02-2015

Aceite para publicação em 19-08-2015

Artigo escrito ao abrigo do novo acordo ortográfico.

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