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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar
versão impressa ISSN 2182-5173
Rev Port Med Geral Fam vol.32 no.3 Lisboa jun. 2016
RELATOS DE CASOS
O papel do médico de família como advogado do doente: caso clínico de endocardite
The family physician as patient advocate: a case report of a patient with endocarditis
Ana Rita Brochado*
*Médica Interna de Medicina Geral e Familiar. USF Monte da Lua.
Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence
RESUMO
Introdução: O caso clínico que se apresenta, de uma endocardite por Borrelia burgdorferi, é relevante não só pela raridade da patologia, mas também pela reflexão que suscita sobre as competências do médico de família, tal como definidas pela WONCA.
Descrição do caso: Homem de 36 anos, com hipertensão arterial e antecedentes de cirurgia cardíaca na adolescência por comunicação interventricular, que desenvolveu, ao longo de um período de cerca de quatro meses, queixas de vertigem, hemianópsia, cefaleias, alterações da memória, hemiparésia, paralisia facial e disartria. Após realização de tomografia crânio-encefálica, mostrando lesões isquémicas e ecocardiograma com lesão sugestiva de vegetação valvular, foi internado com o diagnóstico de endocardite por Borrelia burgdorferi, tendo sido submetido a cirurgia cardíaca para colocação de prótese valvular. Por insuficiência periprotésica e infeção da mesma foi submetido a nova cirurgia um mês depois. No pós-operatório, e apesar do acompanhamento em psicologia e medicina física e reabilitação, mantém vários défices, nomeadamente nas funções cognitivas mais complexas.
Comentário: A endocardite é uma entidade que pode apresentar manifestações clínicas subtis, nomeadamente com sintomas ou sinais cutâneos, osteoarticulares, neurológicos, cardíacos ou sistémicos. Até à data existem poucos casos clínicos de endocardite por Borrelia burgdorferi descritos e o seu diagnóstico é desafiante, tanto mais que requer o uso de exames complementares de diagnóstico de difícil acesso para o médico de família, o que implica a referenciação aos cuidados de saúde secundários. É nesta articulação com os cuidados de saúde secundários que as competências do médico de família de advocacia do doente são postas à prova.
Palavras-chave: Endocardite; Acidente Vascular Cerebral; Médico de Família.
ABSTRACT
Introduction: Although endocarditis caused by Borrelia burgdorferi is rare, this case report is relevant because it stimulates reflection on the core competencies of the family physician.
Case report: A 36 year-old male patient with a history of arterial hypertension and cardiac surgery in adolescence for repair of an interventricular communication, presented with a four-month history of vertigo, hemianopsia, headache, memory loss, hemiparesis, facial paralysis and dysarthria. Tomography of the brain showed ischemic lesions. The echocardiogram suggested the presence of valvular vegetations. He was admitted to hospital with the diagnosis of Borrelia burgdorferi endocarditis, and underwent cardiac surgery with valve replacement. Due to infection of the prosthetic valve and leaking, he had a second surgery a month later. Despite referral to psychology and physical rehabilitation, the patient continues to suffer from numerous deficits, in complex cognitive function.
Discussion: Endocarditis may present with subtle clinical manifestations, including dermatological, bone, joint, neurological, cardiac, and systemic signs. There are few case reports of Borrelia burgdorferi endocarditis. The diagnosis is challenging. It involves diagnostic tests that are not readily available to the family physician, requiring referral to secondary care. This tests the competence of the family physician as the patient’s advocate.
Keywords: Endocarditis; Stroke; Family Physician.
Introdução
O caso clínico que se descreve é relevante não só pela raridade da patologia (estima-se que haja envolvimento cardíaco na borreliose em 0,3 a 4% dos casos, estando descritos apenas dois casos confirmados de endocardite de Lyme na Europa até 2012),1 mas também, e sobretudo, pelo processo que levou ao diagnóstico. Serão, assim, abordados e discutidos não só o quadro sintomático e hipóteses diagnósticas colocadas, mas também o papel do médico de família neste processo, nomeadamente as dificuldades sentidas na articulação com os cuidados de saúde secundários. Reveem-se as competências definidas pela WONCA para a medicina geral e familiar2 (particularmente na tomada de decisões em quadros clínicos precoces ou indiferenciados e na medicina centrada na pessoa) e o papel do médico de família como advogado do doente.
Descrição do caso
Doente do sexo masculino, 36 anos, casado, pertencente a uma família nuclear em fase III do ciclo de Duvall, com formação em hotelaria, atualmente desempregado. O utente apresentava, como antecedentes, hipertensão arterial (controlada com perindopril 4mg e indapamida 1,25mg), rinite alérgica e eczema atópico, correção de comunicação interventricular aos 14 anos e cirurgia testicular (por hidrocelo bilateral) aos 34 anos. Como antecedentes familiares relevantes salientam-se hipertensão arterial e acidente vascular cerebral (AVC) do pai, aos 52 anos, e tios paternos também com história de AVC (em idade desconhecida).
Recorreu à consulta de doença aguda em setembro de 2013 por queixas de tonturas, cansaço, xerostomia, toracalgia de curta duração do tipo “picadas no peito” (sic) e parestesias das pontas dos dedos, com início há cerca de dois meses, que atribuía a ansiedade devido a situação laboral. Referia ainda insónia intermédia e terminal, humor lábil e ligeira diminuição do apetite, estando a fazer um medicamento homeopático. O exame objetivo não apresentou alterações, nomeadamente na otoscopia, auscultação cardiopulmonar ou exame neurológico sumário. O utente preferiu não iniciar na altura tratamento com antidepressivo e, por isso, foi medicado sintomaticamente com alprazolam 0,25mg duas vezes por dia, durante duas semanas, e trazodona (50mg ao deitar).
Uma semana depois recorreu novamente à consulta de doença aguda por manutenção das queixas, sobretudo das tonturas (que se apurou tratarem-se de vertigens). No exame objetivo salientava-se nistagmo horizontal escasso na manobra de Dix-Hallpike, pelo que se colocou a hipótese diagnóstica de vertigem posicional paroxística benigna, sendo medicado com beta-histina 16mg 3id, que descontinuou passados três dias por vómitos.
Cerca de três semanas depois voltou à consulta, com quadro de cefaleias, vertigem, alterações de memória e perda de acuidade visual súbita, tendo esta última motivado o recurso imediato ao serviço de urgência do hospital de referência no dia anterior à consulta. Do relatório de urgência apurava-se: observação em oftalmologia onde se constataram alterações da campimetria (hemianópsia direita e quadrantópsia inferior ligeira), mas sem patologia ocular, tomografia computadorizada do crânio (TC-CE) sem alterações e eletrocardiograma com bloqueio completo do ramo direito (já conhecido pela médica de família, dados os antecedentes de correção de comunicação interventricular), tendo tido alta; foi referenciado à consulta de otorrinolaringologia em três meses, medicado com beta-histina 16mg 3id e com indicação para eventual encaminhamento pelo médico assistente à consulta de cardiologia. Na consulta, o exame objetivo revelou uma hemianópsia direita e manobra de Dix-Hallpike com vertigem, mas sem nistagmo, sem outras alterações do exame neurológico e com auscultação cardiopulmonar normais. Dado o quadro com vertigem e hemianópsia de início súbito, e os seus antecedentes familiares de AVC (diagnóstico não completamente excluído pela tomografia na eventualidade de AVC isquémico em fase inicial), foi colocada essa hipótese diagnóstica e referenciado o doente ao serviço de urgência com pedido expresso para observação por neurologia.
Uma semana depois, novamente em consulta de doença aguda, diz ter sido observado no serviço de urgência (não foi fornecida nota de alta), embora não por neurologia, com diagnóstico de “esgotamento” (sic), tendo alta medicado com sulbutiamina 200mg id. Recorreu a uma consulta de psiquiatria, onde foi descontinuada a sulbutiamina e medicado com paroxetina 20mg id e bromazepam 1,5mg id, com melhoria parcial das queixas, apresentando, no entanto, alguma sonolência com a medicação, pelo que pediu certificação de incapacidade temporária para o trabalho (CIT). Durante o mês seguinte recorreu a mais três consultas para pedido de CIT, mantendo as queixas de sonolência (com remissão das alterações do campo visual e vertigens e melhoria quase completa das outras queixas), pelo que se propôs ajuste da terapêutica na próxima consulta de psiquiatria, prevista para daí a uma semana.
Em dezembro de 2013, o doente recorreu ao serviço de urgência por quadro súbito de hemiparésia esquerda, parésia facial homolateral e marcada disartria. Foi efetuada TC-CE que mostrou uma lesão sequelar cortico-subcortical parietal esquerda, pelo que foi acionada a via verde do AVC e transferido para outro hospital (Unidade Cerebrovascular) para trombólise. Foi repetida TC-CE que, em relação à anterior, mostrou uma provável hipodensidade radiária direita e foi iniciada trombólise. Durante o internamento foram ainda realizados os seguintes exames complementares de diagnóstico: ressonância magnética crânio-encefálica, que demonstrou enfarte agudo em topografia cortico-subcortical do hemisfério cerebral direito e enfarte com componente hemorrágico núcleo-capsular recente; ecocardiogramas transtorácico e transesofágico com imagem compatível com vegetação no folheto anterior da válvula mitral e pequena comunicação interventricular; estudo analítico do AVC no jovem no qual se salienta: anticorpo IgM anti Borrelia burgdorferi positivo, anticorpos anti-citoplasma (ANCA) positivos (título de 1/160 com padrão mosqueado), proteína C reativa de 1,8mg/dL. Foi, assim, feito o diagnóstico de AVC isquémico de etiologia cardioembólica por endocardite a Borrelia burgdorferi, tendo sido medicado com ceftriaxone e vancomicina (posologia não constante da nota de alta).
Após nove dias de internamento foi transferido para o serviço de cardiologia, apresentando no exame objetivo, à data da transferência, auscultação cardíaca com sopro sistólico de intensidade II/VI mais audível no bordo esquerdo e exame neurológico sem défices focais relevantes. Neste serviço foi submetido a cirurgia em janeiro de 2014, com substituição da válvula mitral por prótese mecânica. Por insuficiência perivalvular e vegetações na prótese foi novamente submetido a cirurgia para substituição de prótese mitral em fevereiro de 2014. O exame bacteriológico revelou infeção por Candida spp e Klebsiella spp, pelo que foi medicado com anfotericina, meropenem e amicacina durante seis semanas (posologia não constante da nota de alta). Na véspera desta segunda cirurgia teve novo episódio isquémico, com alexia. O doente teve alta em abril de 2014, medicado com varfarina (em esquema posológico ajustado para INR alvo entre 2,5 e 3,5) e voriconazol 200mg 2id (com indicação para cumprir terapêutica com este antifúngico por três meses após a alta e fazer profilaxia da endocardite bacteriana nos procedimentos dentários de maior risco – que envolvessem manipulação da gengiva ou região periapical dos dentes ou perfuração da mucosa oral),3 bem como pantoprazol 40mg id, ácido fólico 1mg e ferro 90mg id, sertralina 50mg id e bromazepam 3mg id.
Cerca de uma semana após a alta, o doente recorreu à consulta com a sua médica de família, sendo referenciado às especialidades de neurologia e medicina física e reabilitação com vista à recuperação funcional. Ainda em maio de 2014 voltou à consulta, para renovação de CIT, constatando-se que apresentava algumas dificuldades em lidar com a situação e os défices funcionais inerentes, pelo que foi pedido o apoio da psicologia. Durante este mês teve, como complicações, anemia hemolítica (atribuída à válvula mecânica) e novo episódio de AVC (ressonância magnética apresentava sinais de enfarte isquémico cortico-subcortical parietal direito em fase subaguda, associado a pequenas áreas de transformação hemorrágica cortical, bem como várias lesões isquémicas não recentes). O doente manteve os tratamentos de fisioterapia, com recuperação parcial. No entanto, em dezembro de 2014, a avaliação neuropsicológica ainda identificou defeitos nos processos de atenção sustentada e dividida, baixa iniciativa verbal semântica e fonológica, diminuição da iniciativa grafomotora, dificuldade na realização de operações aritméticas mais complexas por cálculo mental, a par de baixa flexibilidade mental; o doente é autónomo nas atividades de vida diárias básicas, embora com alterações cognitivas que interferem na realização de tarefas de maior complexidade.
Comentário
A endocardite infecciosa é uma entidade com manifestações clínicas subtis, podendo manifestar-se aguda ou cronicamente e cujo diagnóstico assenta numa combinação de fatores, incluindo uma anamnese e exame objetivo cuidados, hemocultura, ecocardiograma e radiografia de tórax.4 Os achados físicos podem incluir febre, sinais de embolia no fundo ocular, conjuntivas, pele e dedos (incluindo lesões de Janeway, nódulos de Osler e pontos de Roth), reações autoimunes (artrite e glomerulonefrite), bem como embolização séptica para órgãos como o sistema nervoso central, coluna vertebral, enfarte renal ou esplénico. Para o diagnóstico são utilizados os critérios de Duke, sendo que este doente cumpria os critérios patológicos (vegetação cardíaca, embora se desconheça se houve confirmação histológica do microrganismo na mesma) e clínicos (um critério major: ecocardiograma com achados compatíveis com endocardite; e três minor: condição cardíaca predisponente, embolia arterial e evidência serológica de infeção recente com microrganismo compatível, neste caso a Borrelia burgdorferi).
A borreliose, infeção causada pelo espiroquetídeo Borrelia burgdorferi sensu lato, cujo vetor de transmissão ao humano é a carraça, origina um quadro multissistémico (pelo seu polimorfismo tem sido comparada com a sífilis) distribuído por três fases evolutivas que englobam um largo espectro de manifestações, fundamentalmente dermatológicas, neurológicas, reumatológicas e cardíacas. Apesar das respostas imunológicas do hospedeiro e da pronta instituição de terapêutica antibiótica, pode estabelecer-se uma infeção persistente, sendo que uma pequena fração de indivíduos irá evoluir para a cronicidade. Assim, consideram-se habitualmente três fases: primária ou de infeção localizada, secundária ou de infeção disseminada recente e terciária ou de doença crónica.5
As manifestações cardíacas da borreliose (cardite de Lyme) enquadram-se na fase secundária e foram, pela primeira vez, descritas em 1980. Aparentam ser mais frequentes nos Estados Unidos que na Europa, com maior incidência nos homens, numa proporção de 3:1, sendo a idade média de 44 anos na Europa e de 32 anos nos Estados Unidos.5 O envolvimento cardíaco na borreliose é habitualmente caracterizado por bloqueio auriculoventricular, pericardite ou cardiomiopatia dilatada. Os casos de endocardite são raros, estando descrita a ocorrência de apenas dois casos confirmados, um em França e outro na República Checa, num artigo de 2012.1 É salientado, no entanto, que, dada a seropositividade ser comum em áreas endémicas, o diagnóstico definitivo de endocardite por Borrelia burgdorferi deve ser feito através de PCR do material da vegetação valvular,1 desconhecendo-se se esse teste terá sido realizado no caso clínico que aqui se descreve, dado essa informação não constar da nota de alta hospitalar.
Em casos clínicos com sintomas difíceis de objetivar e cuja causa não é prontamente identificada pode colocar-se o diagnóstico diferencial de perturbação de conversão. No entanto, este diagnóstico não deve ser assumido primariamente mesmo que o doente tenha história de patologia psiquiátrica ou exames complementares de investigação inicial normais. O Diagnostic and Statistical Manual, fifth edition (DSM-5) requer, como critérios diagnósticos de perturbação de conversão, os seguintes: um ou mais sintomas de alteração da sensibilidade ou movimentos voluntários; achados clínicos que são incompatíveis com quadros neurológicos ou condições médicas reconhecidas; o sintoma ou défice não é melhor explicado por outra doença orgânica ou mental; o sintoma ou défice tem impacto relevante no doente a nível psicossocial ou requer avaliação médica. O diagnóstico depende, assim, do achado de sintomas que são incongruentes com a anatomia, fisiologia ou patologias conhecidas ou que são inconsistentes no tempo. O médico deve, no entanto, considerar que o conhecimento anatómico e fisiopatológico é incompleto, devendo manter outras hipóteses em aberto.6
Assim, o caso clínico aqui descrito é pertinente, não só pela raridade da patologia (tendo sido assumido o diagnóstico de endocardite por Borrelia burgdorferi, apesar das limitações diagnósticas já referidas), mas sobretudo pela reflexão que deve suscitar relativamente ao papel do médico de família como advogado do doente.
Tal como explicitado na árvore de competências e características da medicina geral e familiar da WONCA,2 o médico de família contacta tanto com problemas físicos, muitas vezes em estádios iniciais indiferenciados, como com problemas psicológicos, sociais, culturais e existenciais. Pela sua relação privilegiada com o utente e contacto estabelecido ao longo do tempo, bem como o seu conhecimento da família e comunidade em que o utente se insere, encontra-se em posição única para fazer uma avaliação holística do doente.
No presente caso, as queixas do doente, nomeadamente as tonturas e hemianópsia, foram valorizadas pela médica de família como queixas orgânicas, tendo sido feita a referenciação ao serviço de urgência (apesar do recurso a este serviço um dia antes se ter revelado aparentemente infrutífero) para investigação e realização de exames complementares de diagnóstico que não seriam possíveis em contexto de cuidados de saúde primários. Foi, aliás, esta valorização das queixas (mesmo após ter sido colocado o diagnóstico de somatização pelos colegas do serviço de urgência e da psiquiatria) que, em parte, motivou o doente a recorrer a outro hospital perante novos sintomas, o que eventualmente resultou no diagnóstico de endocardite. Assim se demonstra a importância do médico de família como advogado do doente: pela continuidade de cuidados, contextualizados na família e comunidade, está em posição privilegiada para exercer uma medicina centrada na pessoa e suas necessidades; e, sendo o primeiro contacto com o sistema de saúde, orienta os cuidados ao utente, incluindo no que diz respeito ao recurso aos cuidados de saúde secundários.
No entanto, quando a comunicação com os cuidados de saúde secundários falha, este papel de advocacia é posto em causa. No presente caso, esta falha comunicacional pode ter estado na origem do atraso diagnóstico. Considerando a comunicação entre os cuidados primários e secundários como tendo dois vetores direcionais, dir-se-ia que no vetor cuidados primários-secundários não se conseguiu fazer passar a informação de que se acreditava tratar-se realmente de patologia orgânica e não de uma perturbação de somatização (e do porquê desta “crença”, contextualizada no seguimento longitudinal do doente e da família). No vetor cuidados secundários-primários, particularmente no que na referenciação ao hospital da área diz respeito, houve muito pouca informação de retorno (quando houve), não havendo nunca menção à suspeita da médica de família e do porquê de se assumir o diagnóstico de somatização. Mesmo a informação sobre os exames complementares de diagnóstico efetuados foi incompleta ou inexistente (e o recurso à Plataforma de Dados da Saúde nada acrescentou, já que habitualmente pouca informação nos dá do hospital da área de referência à exceção do registo do dia em que o doente lá foi e algumas análises laboratoriais).
Por outro lado, e apesar dos contactos com a médica de família entre o episódio de referenciação à urgência e o diagnóstico terem ocorrido apenas para obtenção de CIT (por indicação do psiquiatra, o que de alguma forma validou o diagnóstico de somatização colocado pelos colegas da urgência), se se mantivesse a suspeita de patologia orgânica como primeira hipótese diagnóstica poderiam ter sido efetuados alguns exames complementares de diagnóstico a pedido da médica de família. Sendo certo que a maioria dos exames necessários para investigação do AVC no jovem não são possíveis no contexto de ambulatório, o ecocardiograma é e eventualmente talvez já demonstrasse a vegetação da endocardite. No entanto, estando nessa fase o diagnóstico de somatização, assumido quer pelos colegas da urgência quer pelo psiquiatra quer pelo próprio doente (cujas queixas à época eram apenas de sonolência atribuída ao cansaço e medicação), o papel da médica de família centrou-se mais na recuperação do doente e na coordenação de cuidados do que na eventual investigação etiológica.
Assim, serve o presente caso para nos lembrar que, como médicos de família, devemos valorizar as queixas do doente (realizando sempre uma anamnese e exame objetivo detalhados) e, tendo os seus interesses em mente e o raciocínio clínico enraizado em fortes conhecimentos não só técnico-científicos mas também humanos, usar dos recursos que nos forem possíveis para seu benefício (que poderão passar pela referenciação, pedido de exames complementares de diagnóstico, farmacoterapia ou apenas vigilância). Serve ainda para repensar os veículos de comunicação entre cuidados de saúde para que esses mesmos recursos possam ser otimizados em prol da saúde dos nossos utentes.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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5. Franca I. Borreliose de Lyme: uma introdução à doença [Lyme borreliosis: an introduction to the disease]. Trab Soc Port Dermatol Venereol. 2000;58 Suppl:11-39. Portuguese
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Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence
Ana Rita Brochado
Caminho do Murtal, Urbanização Sopé da Serra, 2710-663 Várzea de Sintra
E-mail: abrochado@campus.ul.pt
Agradecimentos
À minha orientadora de formação Dr.ª Vera Costa.
Conflito de interesses
A autora declara não ter conflitos de interesses.
Recebido em 05-08-2015
Aceite para publicação em 02-05-2016