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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar
versão impressa ISSN 2182-5173
Rev Port Med Geral Fam vol.34 no.5 Lisboa out. 2018
https://doi.org/10.32385/rpmgf.v34i5.12006
RELATOS DE CASO
Meningite bacteriana: complicação inesperada de otite média aguda
Bacterial meningitis: unexpected complication of acute otitis media
Joana Oliveira Ferreira,1 Inês Simões Tinoco,1 Joana Fernandes2
1. Médica interna de Medicina Geral e Familiar. USF Serra da Lousã
2. Médica Assistente graduada de Medicina Geral e Familiar. USF Serra da Lousã
Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence
RESUMO
Introdução: A otite média aguda é uma patologia frequente nos cuidados de saúde primários. Raramente apresenta complicações; porém, quando existem revelam-se graves e com importante morbimortalidade. Com este artigo pretende-se descrever um caso de meningite aguda secundária a otite média aguda e as suas implicações para a saúde e qualidade de vida do doente e da família.
Descrição do caso: Homem de 42 anos, ativo, pertencente a família nuclear, que recorreu ao médico de família por apresentação inaugural de otite e sinusite agudas, com sintomas de intensidade fruste. Três dias após a instalação do quadro sintomático surgiu agravamento clínico, rapidamente progressivo e degradante do estado geral. O utente deu entrada no serviço de urgência em estado comatoso, pirexia e crise convulsiva. Em contexto de urgência realizaram-se meios complementares de diagnóstico, como punção lombar, tomografia computorizada e angiotomografia, que confirmaram diagnóstico de meningite aguda bacteriana por Streptococcus pneumoniae e acidente vascular cerebeloso direito, ambos em resultado de complicações de otite média aguda.
Comentários: A otite média aguda pode ser observada em diferentes fases de apresentação clínica. Quando evolui para mastoidite pode culminar em meningite e trombose dos seios venosos cerebrais. Este caso descreve a evolução clínica de um diagnóstico desfavorável de otite média aguda complicada. Aborda o papel do médico de família como gestor da doença, importante na articulação de cuidados de saúde primários e secundários, na reabilitação do utente e acompanhamento familiar. Alerta ainda para a importância da capacitação do utente para os sinais e sintomas de desvio da evolução clínica esperada.
Palavras-chave: Otite média aguda; Meningite; Dinâmica familiar.
ABSTRACT
Introduction: Acute otitis media is a common pathology in primary care. It rarely presents with complications, but when they occur they are serious and have considerable morbidity and mortality. This article aims to describe a case of acute meningitis secondary to acute otitis media, and its implications for the health and quality of life of the patient and his family.
Case description: A 42-year-old male, active, belonging to a nuclear family, who turned to the family physician due to inaugural presentation of acute otitis and sinusitis, with symptoms of low intensity. Three days after the onset of symptoms, rapid clinical deterioration occurred, with worsening of the general health status. The patient was admitted to the emergency department in comatose state, with pyrexia and convulsive crisis. In the emergency department, additional tests were performed, such as lumbar puncture, computerized tomography and angiotomography that confirmed the diagnosis of acute bacterial meningitis caused by Streptococcus pneumoniae and right cerebellar stroke, both secondary to acute otitis media.
Comments: Acute otitis media can be observed in different stages of its clinical presentation. When it progresses to mastoiditis, it can culminate in meningitis and cerebral venous sinus thrombosis. This case describes the clinical evolution of a complicated diagnosis of acute otitis media. It addresses the critical role of the family doctor managing disease, enhancing the articulation between primary and secondary health care, and in the rehabilitation of the patient and follow-up of the family. It also warns of the importance of empowering patients on the detection of signs and symptoms that deviate from the expected clinical evolution.
Keywords: Acute otitis media; Meningitis; Family dynamics
Introdução
A otite média aguda (OMA) é uma doença infeciosa e inflamatória do ouvido médio, com alta incidência nos cuidados de saúde primários. Podem estar na sua base alterações genéticas, infeciosas, imunológicas, anatómicas e determinados fatores ambientais. Dentro da etiologia infeciosa, esta divide-se em vírica, bacteriana ou fúngica. Aproximadamente 70% das OMA são de etiologia bacteriana.1
Os principais agentes etiológicos são Streptococcus pneumoniae e pyogenes, Staphylococcus Aureus, Haemophilus influenzae e Moraxella catarrhalis.1-2
Raramente ocorrem complicações; contudo, estas podem ser graves e causadoras de morbimortalidade. A meningite bacteriana (MB) secundária a OMA permanece como complicação importante, apesar da disponibilidade atual de antibióticos eficazes.3 Habitualmente está associada a infeção por Streptococcus pneumoniae.4
Com este caso pretende-se demonstrar o impacto desta complicação num caso clínico de apresentação simples, e semelhante a tantos outros, num doente jovem ativo, na sua família e na dinâmica familiar.
Descrição do caso
Utente do sexo masculino, 42 anos, casado, com três filhos - 16, 10 e 8 anos -, pertencente a família nuclear em fase V de ciclo de Duvall, operário fabril em fábrica de borracha, residente em habitação própria, com condições de salubridade e saneamento básico. Antecedentes pessoais conhecidos de asma em remissão, sem medicação habitual e sem história de alergias medicamentosas.
Em 06/12/2016 recorreu a consulta de doença aguda com a sua médica de família, por queixas de otalgia à direita, congestão nasal e mialgias generalizadas. À observação apresentava-se hemodinamicamente estável, apirético, olhos encovados, com voz nasalada, sem alterações à auscultação cardiopulmonar e com exame neurológico sumário sem alterações. Com a otoscopia direita eram visíveis discretos sinais inflamatórios do canal auditivo externo - eritema e tumefação -, sem abaulamento da membrana timpânica (MT), reflexo luminoso presente e sem sinais de rotura. Otoscopia esquerda sem alterações. A rinoscopia revelou hipertrofia da mucosa nasal bilateralmente e desconforto à percussão dos seios perinasais. Foi então diagnosticada otite externa direita e sinusite agudas, tendo sido prescrita medicação de aplicação tópica auricular - dexametasona, neomicina e polimixina B 1mg/ml + 10mg/ml + 10.000 U.I./ml (cinco gotas no ouvido direito, de 12/12 horas, durante cinco dias) -, bem como mometasona 50 microgramas, spray nasal (dois puffs em cada narina, de 24/24 horas, 14 dias) e ibuprofeno 600mg (um comprimido de 12/12 horas, durante cinco dias). Sem outras queixas teve alta da consulta, com alerta dos sinais de alarme que deveriam motivar a reavaliação - febre, otorreia, hipoacusia, acusia, cefaleia intensa, tonturas, náuseas, vómitos.
Nos dois dias que se seguiram o utente apresentou melhoria clínica do estado geral e das queixas álgicas, comparecendo na sua atividade laboral e mantendo as suas atividades de vida diárias.
Ao terceiro dia, no domicílio, o utente apresentou agravamento súbito do estado geral, com cefaleia, febre - temperatura auricular de 39 °C - e episódio de síncope, sem recuperação espontânea de consciência. Foi ativado o número nacional de emergência 112 pela esposa. Deu entrada no serviço de urgência em estado comatoso, grau 8 na escala de Glasgow e tensão arterial de 175/89mmHg. Ao exame neurológico apresentava pupilas em midríase bilateral, no entanto reativas, e esboço de resposta motora em descerebração. Durante a observação clínica foi presenciada uma crise convulsiva generalizada (crise tónica com desvio ocular superior). Após controlo da pirexia e estabilização hemodinâmica, o utente foi submetido a exames auxiliares de diagnóstico de modo a determinar a causa do agravamento clínico.
Foram colhidas hemoculturas e realizada punção lombar. Foi iniciada ventilação mecânica invasiva para proteção de via aérea e, na suspeita de etiologia infeciosa, iniciou terapêutica antibiótica empírica com ceftriaxone, vancomicina e ampicilina.
Com a realização de tomografia computorizada (TC) crânio-encefálica levantou-se a suspeita de trombose venosa cerebral do seio sagital superior, acidente vascular cerebeloso isquémico direito, presença de sinusite etmoidal e maxilar, otite média e mastoidite direitas. Estas alterações foram posteriormente confirmadas por angio-TC (Figura 1).
O doente foi então internado nos cuidados intensivos. Nesse momento, a esposa contactou a sua médica de família (MF), via telefone, de forma a dar conhecimento da situação clínica do marido e a expor a vulnerabilidade daquela família. O diagnóstico desfavorável alterou a dinâmica familiar com um sentimento de impotência e medo, verbalizado pela esposa. A MF contactou, via telefone, com o médico do serviço de cuidados intensivos, de modo a compreender a gravidade do diagnóstico. Foram discutidos dados clínicos inerentes ao diagnóstico do utente, apresentação inaugural do quadro clínico, negação da existência de alergias medicamentosas descritas, assim como qualquer medicação crónica ou comorbilidades do utente. Em consulta presencial com a MF, a esposa e filhos discutiram a incerteza assente no prognóstico reservado do utente. A relação médico-doente torna-se uma componente importante para a compreensão e aceitação das expectativas da doença. A MF assumiu uma posição privilegiada para exercer uma medicina centrada na pessoa e na família, com otimização da comunicação entre os cuidados de saúde primários e secundários. A acessibilidade ao contacto com a MF, seja direto (consulta na unidade de saúde, consulta domiciliária) ou indireto (via telefone ou email), permitiu o acompanhamento holístico numa família com critérios de risco e vulnerabilidade.
As hemoculturas foram negativas. Dos exames realizados salientam-se: líquido cefalorraquídio (LCR) purulento com presença de proteínas (545mg/dL), eritrócitos (500/µL) e leucócitos (9.800/µL); pesquisa de Cryptococcus por tinta-da-china negativa; cultura do LCR positiva para Streptococcus pneumoniae multisensível (resistente apenas a penicilina). Estabeleceu-se, por fim, o diagnóstico de meningite bacteriana secundária a otite média aguda.
Após o antibiograma fez-se ajuste terapêutico, completando nove dias de ceftriaxone 2.000mg de 12 em 12 horas. Cumpriu durante o internamento esquema de hipocoagulação com enoxaparina 1mg/kg de 12 em 12 horas, dexametasona, oxigenoterapia e fluidoterapia.
O utente foi periodicamente sujeito a controlo imagiológico das lesões endocranianas, apresentando discretas melhorias das lesões assinaladas.
Ao 12º dia de doença, após extubação, estabilização hemodinâmica e recuperação do estado de consciência, foi transferido para o serviço de doenças infeciosas para continuidade dos cuidados. Apresentava, neste momento, importantes limitações motoras, destacando-se a hemiparesia esquerda, desequilíbrio e disartria. Manteve internamento neste serviço durante mais nove dias, apresentando favorável evolução clínica e imagiológica, com progressiva recuperação da autonomia.
Teve alta a 28/12/2016 com indicação para terapêutica anticoagulante e corticoterapia em ambulatório. Manteve seguimento na consulta externa no serviço de doenças infeciosas.
A atuação da MF na reabilitação física do utente complementou a continuidade de cuidados e estabeleceu a ligação entre cuidados de saúde primários e secundários. Foi requisitado o acesso a cuidados de fisioterapia, com treino de marcha e recuperação de proprioceção, manutenção de vacinação e possibilidade de acompanhamento especializado no foro psicológico (Figura 2).
Em janeiro de 2017, a esposa do utente agenda consulta programada na sua MF para a atualizar da situação clínica e proceder à prorrogação de certificado de incapacidade temporária. O utente foi reavaliado, registando-se melhoria franca do estado clínico. No entanto, a limitação motora, ainda evidente, impedia o utente de realizar atividades físicas outrora assumidas pelo próprio. Com a assumida dificuldade física em subir escadas até ao quarto do casal, o utente viu-se obrigado a permanecer na sala, nomeadamente durante o descanso noturno, despoletando um impacto emocional na restante família. A esposa verbalizou a dificuldade na gestão da compreensão e aceitação de expectativas na recuperação morosa da doença, principalmente por parte dos filhos. Salientou também os obstáculos na organização da nova rotina diária e financeira da família. Destacou-se a sobrecarga física da esposa, única adulta ativa a gerir a rotina diária familiar, prestando apoio ao marido, dependente para algumas das atividades da vida diária; transporte dos filhos às atividades escolares e extraescolares; confeção das refeições e tarefas domésticas e gestão dos encargos financeiros mensais com um orçamento familiar económico diminuído. A MF disponibilizou uma escuta ativa, a possibilidade de auxílio médico domiciliário e a manutenção de processos de reabilitação física e psicológica, assim como a possibilidade de ativação de apoios sociais e económicos.
Comentário
A OMA é uma patologia frequente em Portugal. Pode dividir-se em cinco etapas clínicas: tubotimpânica, hiperémica, exsudativa, supurativa e perfuração espontânea timpânica (Quadro I).2 Estas fases relacionam-se diretamente com a intensidade da clínica.
Cerca de 1 a 5% dos casos de OMA apresentam complicações que se classificam em dois tipos: complicações otológicas ou intratemporais (mastoidite, labirintite, petrosite ou paralisia facial) e complicações não otológicas ou intracranianas (meningite, abcesso cerebral e trombose dos seios venosos).2,5 A sua incidência bem como a morbimortalidade diminuíram graças à introdução de antibioterapia.1-3
A mastoidite aguda pode estender-se anatomicamente, atingindo os seios venosos e precipitando o transporte de microorganismos através da barreira hemato-encefálica, justificando o desenvolvimento de meningites bacterianas.2-5
A complicação intracraniana mais comum da mastoidite é a MB, sendo a etiologia mais frequente a infeção por Streptococcus pneumoniae.1-2,4 Estima-se uma incidência aproximada de 0,1-1% de casos de MB por Streptococcus pneumoniae secundária a OMA e/ou mastoidite aguda.4 Segundo o estudo realizado por Casado Flores e colaboradores, alguns sinais foram associados a indicadores de mau prognóstico clínico: prescrição de antibiótico na semana que antecede a admissão hospitalar do doente, choque, anomalias pupilares e leucocitose > 6.000/µL. Registou ainda que 35,8% destes não apresentavam qualquer sinal meníngeo ao exame neurológico e 11,6% sinais meníngeos duvidosos.6
A OMA é frequente no dia-a-dia do médico de família. As complicações são raras; no entanto, é essencial estar atento. Nem sempre a gravidade da apresentação inicial se correlaciona com o desenrolar do quadro clínico. Cabe ao MF alertar e capacitar o utente e família para eventuais complicações, informando para os sinais e sintomas de alarme.
Este caso vem revelar a transformação inesperada de uma primeira avaliação do utente com sinais clínicos frustes, apresentando-se apirético, sem alterações significativas à otoscopia ou do estado geral. Porém, evoluiu desfavoravelmente com uma rápida progressão para mastoidite e MB, gerando-se uma situação clínica grave.
O internamento de 18 dias, o adverso estado geral do utente, bem como a sua lenta recuperação tiveram impacto não só no indivíduo, mas também a nível familiar.
O caso clínico tem como objetivo lembrar que, como MF, somos o primeiro contacto do utente com o serviço de saúde. Além da correta recolha da anamnese, realização do exame objetivo de forma adequada e instituição de uma terapêutica correta, é essencial capacitar o utente para o reconhecimento de sinais e sintomas que possam estar associados a desvios da evolução clínica esperada.
Esta descrição clínica reflete também a importância da organização, multidisciplinaridade e interação entre os cuidados de saúde primários e secundários que, quando presentes, constituem o pilar de auxílio e promoção de melhores cuidados de saúde com impacto físico e mental. Demonstra ainda a importância do MF na continuidade de cuidados ao utente, nomeadamente na reabilitação e na continuidade de cuidados à família no acompanhamento de situações de risco e vulnerabilidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Machado MP, Marques MC, Santos AR, Dores L, Simão M, Macor C, et al. Controvérsias no tratamento da otite média aguda: revisão de literatura [Controversies in the treatment of acute otitis media: literature review]. Rev Port Otorrinolaringol Cir Cérvico-Fac. 2012;50(2):141-5. Portuguese
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4. Golmarvi S, Devue K, Hachimi-Idrissi S. A case of group A streptococcal meningitis following acute otitis media. Eur J Emerg Med. 2006;13(5):299-301. [ Links ]
5. Zernotti ME, Casarotto C, Tosello ML, Zernotti M. Incidencia de complicaciones de otitis media [Incidence of complications of otitis media]. Acta Otorrinolaringol Esp. 2001;56(2):59-62. Spanish
6. Casado-Flores J, Aristegui J, de Liria CR, Martinón JM, Fernández C. Clinical data and factors associated with poor outcome in pneumococcal meningitis. Eur J Pediatr. 2006;165(5):285-9. [ Links ]
Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence
Joana Oliveira Ferreira
E-mail: jo.oliveira.ferreira@gmail.com
http://orcid.org/0000-0002-0054-6383
Conflito de interesses
Os autores declaram não ter quaisquer conflitos de interesse.
Recebido em 14-02-2017
Aceite para publicação em 05-06-2018