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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar
versão impressa ISSN 2182-5173
Rev Port Med Geral Fam vol.36 no.1 Lisboa fev. 2020
https://doi.org/10.32385/rpmgf.v36i1.12386
RELATOS DE CASO
Quando a alteração do padrão de marcha revela uma patologia cervical: o desafio do diagnóstico
When an alteration of the gait reveals cervical pathology: a challenging diagnosis
Ana Ribeiro da Silva*,
https://orcid.org/0000-0003-1165-5160
Ana Rita Melo*,
Antony Nogueira*,
Joana Teixeira*,
Filipa Correia Natal*
*USF Pevidém, ACeS Alto Ave.
Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence
RESUMO
Introdução: A doença degenerativa cervical é uma condição relacionada com a idade, apresentando sinais e/ou sintomas numa minoria dos casos. Este relato de caso tem como objetivo alertar para a importância em reconhecer a mielopatia espondilótica cervical como um diagnóstico diferencial perante quadros arrastados de diminuição progressiva da força muscular dos membros inferiores e alterações do padrão da marcha.
Descrição do caso: Paciente do sexo masculino, 64 anos, observado em consulta programada por um quadro de alteração do padrão habitual da marcha com cerca de três anos de evolução. Ao exame físico apresentava marcha de base alargada e sinais compatíveis com atingimento do neurónio motor superior: paraparésia espástica com hiperreflexia dos membros inferiores e sinal de Babinski positivo bilateralmente. Do estudo imagiológico efetuado destacou-se a presença de alterações degenerativas espondilodiscais da coluna cervical com compromisso medular, evidenciando a presença de um quadro de mielopatia espondilótica cervical. Submetido a laminectomia descompressiva cervical, encontra-se atualmente inserido em programa de reabilitação fisiátrica com recuperação quase total do seu padrão de marcha.
Comentário: A mielopatia espondilótica cervical é a condição clínica que representa a principal causa de mielopatia nos adultos. Poderá representar um desafio diagnóstico, quer pela ausência de achados específicos quer pelo elevado número de diagnósticos diferenciais. A sua suspeita aumenta na presença de alterações progressivas da marcha associadas a queixas sensoriais ou motoras nos membros superiores em indivíduos com mais de 55 anos.
Palavras-chave: Espondilose cervical; Mielopatia; Mielopatia espondilótica cervical.
ABSTRACT
Introduction: Degenerative cervical disease is an age-related condition, presenting signs and/or symptoms in a minority of cases. This case report aims to highlight the importance of recognizing cervical spondylolytic myelopathy as a differential diagnosis in the case of a progressive decrease in the muscular strength of the lower limbs and changes in gait pattern.
Case description: A 64-year-old male patient, seen at a consultation programmed for a change in the usual walking pattern with about three years of evolution. On physical examination, the patient presented a broad base gait and signs compatible with upper motor neuron attainment: spastic paraparesis with hyperreflexia of the lower limbs and a bilaterally positive Babinski signal. From the imaging study, the presence of degenerative spondylodiscal changes of the cervical spine with spinal cord involvement was highlighted, evidencing the presence of a cervical spondylotic myelopathy. Subjected to cervical decompression laminectomy, it is currently inserted in a physiotherapy rehabilitation program with an almost total recovery of its gait pattern.
Comment: Cervical spondylosis myelopathy is the clinical condition that represents the main cause of myelopathy in adults. It may represent a diagnostic challenge, either because of the absence of specific findings or because of the high number of differential diagnoses. Their suspicion increases in the presence of progressive gait changes associated with sensory or motor complaints in the upper limbs in individuals over 55 years of age.
Keywords: Cervical spondylosis; Myelopathy; Cervical spondylotic myelopathy.
Introdução
A doença degenerativa cervical é comum em indivíduos de populações industriais, em virtude do estilo de vida e da exposição a fatores ambientais e trabalhos repetitivos;1 no entanto, a sua expressão clínica verifica-se apenas numa minoria dos casos.2
Face ao envelhecimento da população portuguesa, o reconhecimento dos sinais e sintomas da mielopatia espondilótica cervical (MEC) revela-se de enorme importância, visto tratar-se da principal causa de mielopatia adquirida não-traumática em indivíduos adultos, com necessidade de referenciação e avaliação ao nível dos cuidados de saúde secundários.2
Trata-se de uma patologia crónica e progressiva que embora possa cursar com sintomas neurológicos ligeiros e estáveis, a maioria sofre agravamento do quadro clínico com limitação importante nas atividades de vida diárias e impacto significativo na qualidade de vida.
Este relato de caso pretende realçar a importância de o médico de família explorar ativamente as possíveis causas de mielopatia cervical em pacientes que apresentam diminuição progressiva da força muscular nos membros inferiores, mesmo na ausência de cervicalgia, pois esta condição clínica poderá ter consequências irreversíveis se não for identificada e tratada atempadamente.
Descrição do caso
Paciente do sexo masculino, 64 anos, raça caucasiana, reformado da construção civil. Inserido numa família nuclear em fase VIII do ciclo de vida de Duvall e pertencente a uma classe social média-baixa (classe IV), segundo a classificação de Graffar. Sem antecedentes pessoais patológicos e familiares relevantes. Fumador de 20 unidades maço ano e consumo diário de bebidas alcoólicas, inferior à quantidade máxima diária recomendada.
Em abril de 2017 recorreu à sua unidade de saúde familiar, em contexto de consulta programada, por quadro clínico com três anos de evolução caracterizado por alteração do seu padrão habitual da marcha com agravamento recente. Referia sensação de “pernas presas/pesadas e menor agilidade”, com dificuldade para a marcha desde então. À anamnese negava dor, parestesias, disestesias, tonturas, cefaleias, náuseas/vómitos ou alterações esfincterianas. Sem história de traumatismo prévio conhecido. Ao exame objetivo dirigido apresentava exame neurológico com evidência de paraparésia espástica de predomínio direito com hiperreflexia rotuliana e reflexo cutâneo-plantar em extensão bilateralmente. Associava-se uma marcha de base alargada, sem alterações em pontas e calcanhares, com preservação da sensibilidade tátil global e da força muscular (grau 5/5) dos membros superiores. Sem sinais extrapiramidais objetivados.
Imagiologicamente, com recurso à tomografia computorizada da coluna lombar, revelaram-se alterações disco-vertebrais de caráter degenerativo, com provável compromisso radicular a diferentes níveis vertebrais, o que aparentemente não justificava o quadro clínico de mielopatia descrito anteriormente.
Referenciado posteriormente aos cuidados de saúde hospitalares (neurologia) realizou ressonância magnética cervical e dorsal (Figura 1), que revelou: “alterações degenerativas espondilodiscais da coluna cervical, caracterizadas por redução da altura intersomática, osteofitose marginal e protusões discais posteriores, com obliteração do espaço subaracnoideu e compressão da medula, sobretudo em C4-C5 e C5-C6, onde se define hipersinal intramedular sugestivo de gliose/edema”, confirmando o diagnóstico de MEC.
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Após proposta cirúrgica, que o doente aceitou, foi submetido em outubro de 2017 a laminectomia cervical cirúrgica descompressiva. O procedimento e pós-operatório decorreram sem intercorrências. Encontra-se atualmente a cumprir um programa de reabilitação na sua área de residência, apresentando melhoria do seu padrão de marcha e força muscular dos membros inferiores.
Comentário
A espondilose cervical, caracterizada por alterações degenerativas da coluna cervical, é um achado comum na população geral, surgindo como parte do processo fisiológico do envelhecimento.2 Quando associada a estreitamento do canal medular em um ou mais níveis com consequente compressão da medula espinal, surge a MEC, condição clínica que representa a principal causa de mielopatia entre os indivíduos adultos.2-3 Mais de 50% dos indivíduos de meia-idade apresentam evidência radiográfica de alterações degenerativas cervicais, ainda que apenas 10% mencionem sintomas de compressão medular ou radiculopatia cervical.3
A apresentação clínica da MEC é bastante variável. O início dos sintomas é geralmente após os 40 anos, sendo habitual entre os 50 e os 70 anos de idade, com predomínio do sexo masculino num rácio de 3:2.2 Um quadro clínico, tipicamente insidioso, deve aumentar o grau de suspeição de MEC na presença concomitante de distúrbio da marcha, frequentemente associado a instabilidade, com sintomas referidos aos membros superiores, como fraqueza ou dificuldade/perda no controlo da motricidade fina (e.g., abotoar uma camisa ou escrever).3 Embora possa estar presente, a maioria dos indivíduos não relata cervicalgia significativa. Ao exame objetivo, a paraparésia espástica com hiperreflexia dos membros inferiores, marcha de caráter espástica ou atáxica e/ou parestesias dos membros são achados comuns. Em casos avançados verifica-se uma perda de controlo esfincteriano, com frequência, urgência e hesitação urinárias.2-5
Os objetivos do tratamento visam a resolução dos sintomas, recorrendo a tratamento farmacológico e fisiátrico, com recuperação e fortalecimento muscular, o que tipicamente pode ser alcançado por métodos conservadores. Em casos de radiculopatia e/ou compressão medular sintomática, refratários ao tratamento conservador, a cirurgia poderá estar indicada.6
O caso clínico descrito vem revelar que a MEC pode representar um desafio diagnóstico, especialmente pela ausência de achados específicos. O médico de família desempenha, assim, um importante papel na suspeita diagnóstica desta entidade patológica, a qual aumenta na presença de alterações progressivas da marcha, principalmente se associadas a queixas sensoriais ou motoras nos membros superiores em indivíduos com mais de 55 anos.
Destaca-se igualmente a importância do médico de família no acompanhamento do doente após a alta hospitalar, uma vez que os sintomas poderão não reverter completamente mesmo após a descompressão cirúrgica bem-sucedida. A reabilitação multidisciplinar pós-operatória com fisioterapia e terapia ocupacional é fundamental para potenciar a obtenção de melhores resultados: a recuperação acontece de forma progressiva! Perante lesões irreversíveis caberá também ao médico de família a gestão destas incapacidades físicas, as quais poderão traduzir impacto psicológico, assim como implicar reorganizações importantes na dinâmica familiar.
Apesar de prevalente, esta condição é ainda negligenciada e muitas vezes confundida com outras lesões supratentoriais como, por exemplo, a esclerose múltipla ou a esclerose lateral amiotrófica.3
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. Meluzzi A, Taricco MA, Brock RS, Dias MR, Nakaguawa G, Guirado VM, et al. Fatores prognósticos associados ao tratamento cirúrgico da mielorradiculopatia espondilótica cervical [Prognostic factors associated with surgical treatment of cervical spondylotic myeloradiculopathy]. Coluna/Columna. 2012;11(1):52-62. Portuguese
2. Tracy JA, Bartleson JD. Cervical spondylotic myelopathy. Neurologist. 2010;16(3):176-87. [ Links ]
3. Vilaça CO, Orsini M, Leite MA, Freitas MR, Davidovich E, Fiorelli R, et al. Cervical spondylotic myelopathy: what the neurologist should know. Neurol Int. 2016;8(4):6330. [ Links ]
4. Klineberg E. Cervical spondylotic myelopathy: a review of the evidence. Orthop Clin North Am. 2010;41(2):193-202. [ Links ]
5. American Academy of Orthopaedic Surgeons. Cervical spondylotic myelopathy: spinal cord compression [homepage]. OrthoInfo; 2015 Aug. Available from: https://orthoinfo.aaos.org/en/diseases-conditions/cervical-spondylotic-myelopathy-spinal-cord-compression [ Links ]
6. Rana SS. Diagnosis and management of cervical spondylosis. Medscape [Internet]; 2017 Dec 6 [updated Nov 9]. Available from: https://emedicine.medscape.com/article/1144952-overview [ Links ]
Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence
Ana Ribeiro da Silva
E-mail: ana.silva.r7@gmail.com
Conflito de interesses
Os autores declaram não ter quaisquer conflitos de interesse.
Financiamento do trabalho
Os autores declaram que o trabalho relatado neste manuscrito não foi objeto de qualquer tipo de financiamento externo.
Recebido em 13-04-2018
Aceite para publicação em 07-04-2019