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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar
versão impressa ISSN 2182-5173
Rev Port Med Geral Fam vol.36 no.4 Lisboa ago. 2020
https://doi.org/10.32385/rpmgf.v36i4.12617
RELATOS DE CASO
Nistagmo infantil: uma condição inócua ou algo mais? A propósito de um caso clínico
Infantile nystagmus: an innocuous condition or something else? based on a case report
Elmano Margato,1
https://orcid.org/0000-0003-2606-1277
Rita Sebastião2
1. Médico Interno de Medicina Geral e Familiar. UCSP de Sete Rios, ACeS Lisboa Norte.
2. Médica Especialista em Medicina Geral e Familiar. UCSP de Sete Rios, ACeS Lisboa Norte.
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RESUMO
Introdução: O nistagmo infantil pode ou não estar associado a alterações visuais e/ou neurológicas e constitui uma entidade incomum e pouco observada na prática clínica em Medicina Geral e Familiar. Procurou-se, assim, perceber como deve o médico de família atuar perante esta condição.
Descrição do caso: Descreve-se o caso de um lactente sem antecedentes pessoais ou familiares de relevo, tendo o médico de família, na consulta de vigilância de saúde infantil e juvenil dos quatro meses, identificado a presença de um nistagmo bilateral, conjugado, simétrico, horizontal e contínuo. Com a rápida orientação para a consulta de oftalmologia e neurologia pediátricas foi possível excluir a existência de patologia neurológica concomitante. A criança manteve seguimento no oftalmologista e no médico de família, com vigilância da sua evolução, de acordo com as recomendações atuais.
Comentário: Este caso clínico demonstra a importância de uma avaliação global e sistematizada das crianças na consulta de saúde infantil e juvenil. Um exame objetivo completo não deve ser descurado, evitando suposições precipitadas. Reforça ainda a necessidade de uma avaliação oftalmológica adequada, particularmente nos primeiros meses de vida - quando a forma infantil do nistagmo habitualmente se manifesta -, bem como a importância de uma investigação adicional perante esta condição. Embora muitos destes casos ocorram de forma isolada, a maioria parece estar associada a defeitos visuais, tendo o médico de família um papel primordial na identificação, encaminhamento e acompanhamento destas crianças, devendo estar atento a eventuais perturbações no seu desenvolvimento e socialização, bem como a consequências na dinâmica e estabilidade familiar.
Palavras-chave: Nistagmo, Congénito; Nistagmo, Patológico; Médico de família.
ABSTRACT
Introduction: Infantile nystagmus may or may not be associated with visual and/or neurological disorders and constitutes an uncommon and rarely observed entity in Family Medicine clinical practice. We sought to find out how the family physician should act before this condition.
Case description: We describe the case of an infant with no relevant personal or family history in whom the family physician, during the preventive care visit at four months of age, identified the presence of a bilateral, conjugate, symmetrical, horizontal and continuous nystagmus. Based on a quick referral to pediatric Ophthalmology and Neurology, the existence of a concomitant neurological condition was excluded. The child was followed up by the ophthalmologist and family physician, monitoring his progress according to current recommendations.
Comment: This case report demonstrates the importance of a systematic and comprehensive assessment of children at preventive care visits. A thorough physical examination should not be neglected, avoiding hasty assumptions. It also reinforces the need for adequate ophthalmic evaluation, particularly in the first months of life - when infantile nystagmus usually manifests -, as well as the importance of further investigation into this condition. Although many of these cases occur in an isolated manner, most seem to be associated with visual defects, with the family physician having a primary role in the identification, referral, and follow-up of these children, being aware of possible disturbances in their development and socialization, as well as consequences on the family dynamics and stability.
Keywords: Nystagmus, Congenital; Nystagmus, Pathologic; Family physician.
Introdução
O nistagmo é uma entidade clínica caracterizada por oscilações rítmicas e involuntárias dos olhos. Estes movimentos podem ser sacádicos, com uma fase de desvio lento do olhar sucedida de um movimento rápido de reposicionamento do olho na posição primária; pendulares, nos quais ocorre um desvio do olho e posterior retorno à posição inicial de forma mais lenta; ou uma combinação de ambos.1-3
Existem diferentes nomenclaturas propostas para caracterizar esta condição. Neste artigo optou-se por uma classificação mais simples, dividindo globalmente o nistagmo em três tipos1,4 - fisiológico, ocorrendo em indivíduos saudáveis como resposta a determinados estímulos (e.g., estímulo vestibular, mediante a rotação da cabeça); adquirido, surgindo habitualmente após os 4-6 meses de idade1,5 e tipicamente associado a lesões do sistema vestibular, visual ou lesões neurológicas que afetem a integração sensorial;6 infantil (anteriormente designado «congénito»), surgindo habitualmente até aos seis meses de idade.5,7 Embora este último possa ocorrer de forma isolada (idiopático), é mais frequente a sua associação a um défice visual de base (nistagmo sensorial),8 podendo também surgir associado a outras patologias, como estrabismo, albinismo ocular ou oculocutâneo, doenças neurológicas e/ou metabólicas diversas ou integrando um quadro sindromático de uma entidade benigna designada por spasmus nutans (caracterizada clinicamente por uma tríade de nistagmo, oscilações rítmicas da cabeça e torcicolo).5
O nistagmo infantil, presente desde o nascimento ou, mais comummente, surgindo nos primeiros meses de vida,5,9 constitui uma entidade incomum e pouco observada na prática clínica em Medicina Geral e Familiar.
É difícil estimar a prevalência do nistagmo infantil, tendo sido relatados valores muito díspares - desde um caso por 1.000 até um por 500.000 indivíduos.10 Alguns estudos apontam para uma incidência a rondar os 0,015%.9 Dada a sua raridade, é normal que o médico de família tenha dúvidas perante uma criança com nistagmo, nomeadamente no que respeita à evolução clínica do quadro, medidas a adotar e precauções a tomar na vigilância destes doentes. Relata-se o caso de uma criança de quatro meses que apresentou um nistagmo numa consulta de vigilância de saúde infantil e juvenil (SIJ). Uma vez que esta condição na infância pode estar associado a múltiplas comorbilidades e dada a necessidade de uma abordagem diagnóstica e/ou terapêutica adequada e atempada do mesmo, coloca-se uma questão pertinente: qual o papel do médico de família perante uma criança com nistagmo? Neste sentido, procurou-se expor de forma breve, clara e à luz da evidência atual, como proceder perante esta entidade clínica nos cuidados de saúde primários, orientando a atuação do médico de família.
Descrição do caso
Lactente, sexo masculino, quatro meses, caucasiano.
Primeiro filho de casal não consanguíneo, inserido numa família nuclear, classe média-alta (classe II de Graffar), estadio II do ciclo de vida de Duvall. História de estrabismo no tio-avô e bisavô paternos, sem outros antecedentes familiares de relevo.
Gravidez espontânea, de baixo risco, devidamente vigiada. Mãe sem antecedentes obstétricos. Diagnóstico pré-natal de comunicação interventricular (CIV) às 28 semanas. Parto de termo, por cesariana devido a paragem de progressão de trabalho de parto, sem outras complicações. Somatometria ao nascer adequada e período neonatal sem intercorrências. Realizou rastreio auditivo, de cardiopatias congénitas e de doenças metabólicas, que foram negativos, tendo sido encaminhado ainda na maternidade para consulta de cardiologia pediátrica devido à CIV.
Foi realizada a primeira consulta de SIJ aos 14 dias de vida, tendo o restante plano de seguimento sido cumprido sem intercorrências. Boa evolução estaturo-ponderal e do perímetro cefálico; desenvolvimento psicomotor adequado. Apresentava apenas um sopro holossistólico à auscultação cardíaca, consequente à CIV supracitada.
Na quarta consulta de SIJ, com três meses e 26 dias de vida, objetivou-se um nistagmo bilateral, conjugado, simétrico e horizontal, do tipo sacádico com fase rápida para a direita. Este manifestava-se de forma contínua, embora com variações na sua intensidade. Não foram apuradas alterações da motricidade ocular com a fixação do olhar, nem a existência de uma zona nula, isto é, uma determinada posição do olhar na qual o nistagmo remitisse. A criança não apresentou uma posição anómala da cabeça nem esta foi referida pelos progenitores quando inquiridos. Não foi possível avaliar o efeito da convergência ocular por este reflexo ainda não estar presente. Os progenitores ter-se-ão apercebido destes movimentos oculares anormais entre as seis e oito semanas de vida, não tendo, contudo, questionado relativamente a este assunto por desconhecerem esta entidade clínica, tendo interpretado o nistagmo como «curiosidade» do lactente em relação ao meio envolvente.
Apesar da presença de nistagmo, os reflexos pupilares estavam mantidos bilateralmente, a criança dirigia o olhar e fixava estímulos luminosos, sorria e mantinha um contacto sintónico esperado para a sua idade, não aparentando alterações grosseiras da acuidade visual. Apresentava um bom desenvolvimento psicomotor e estaturo-ponderal, sem outras alterações de destaque no exame objetivo, em particular na anatomia ocular visualizável sem instrumentação própria. Uma vez que o nistagmo não apresentava características preocupantes (Tabela 1),1,4-5,9,11-14 os pais foram tranquilizados, tendo-lhes sido explicado o quadro clínico, mas ressalvando que seria necessária uma avaliação oftalmológica mais especializada para excluir, dentro do possível, eventuais alterações patológicas.
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A criança foi referenciada para a oftalmologia pediátrica, não tendo sido objetivadas alterações dos meios transparentes do globo ocular ou do fundo ocular. Não se apurou qualquer defeito da visão, tendo sido assumido um nistagmo infantil do tipo idiopático. Por sugestão do oftalmologista foi encaminhada para a neuropediatria, tendo realizado uma ressonância magnética crânio-encefálica (RM-CE), que não revelou alterações. Dado o bom desenvolvimento psicomotor e a ausência de defeito neurológico aparente teve alta desta consulta.
Em reavaliação subsequente, aos cinco meses e 10 dias de idade, manteve o quadro clínico anteriormente descrito, apresentando por esta altura reflexo da convergência, cuja estimulação provocava uma diminuição da intensidade do nistagmo.
O nistagmo infantil idiopático (NII) é uma condição benigna, não sendo expectáveis outras doenças de base ou uma diminuição importante da acuidade visual.5 No entanto, atendendo à sua cronicidade, foi sugerido pelo oftalmologista que a criança mantivesse seguimento nessa especialidade. Irá manter igualmente vigilância nas consultas de SIJ do centro de saúde, de acordo com o Programa Nacional de Saúde Infantil e Juvenil (PNSIJ) em vigor.15 Será tida em atenção a evolução do nistagmo e eventuais modificações nas características deste, bem como semiologia que possa sugerir a existência de alterações da acuidade visual ou de comorbilidades potencialmente comprometedoras do normal desenvolvimento da criança.
Comentário
Uma vez que o nistagmo, nomeadamente a forma infantil, é uma condição relativamente incomum, sendo pouco frequente na prática clínica nos cuidados de saúde primários e, geralmente, pouco abordado em termos académicos, a descrição deste caso reveste-se de uma importância considerável.
Dada a facilidade com que esta entidade pode passar despercebida e a frequente ausência de sintomatologia associada percetível para terceiros, é necessário estar desperto para a mesma durante as consultas de SIJ, principalmente nos primeiros meses de vida, quando a forma infantil do nistagmo habitualmente se manifesta. É, por isso, essencial a realização de um exame objetivo completo, que inclua uma correta avaliação oftalmológica de acordo com as indicações constantes no PNSIJ e no manual Boas Práticas em Oftalmologia: elementos clínicos de avaliação e referenciação.16 Uma avaliação adequada, que compreenda uma anamnese cuidada, um exame ocular externo e dos meios transparentes do olho, da capacidade visual e dos movimentos oculares e equilíbrio oculomotor, deve fazer parte do exame oftalmológico de rotina realizado nas consultas de SIJ. Deve ser dado particular enfoque às idades-chave e a recém-nascidos pertencentes a grupos de risco, devidamente identificados nos documentos supracitados (doenças sistémicas ou condições de morbilidade, história familiar de patologia oftalmológica e sinais e/ou sintomas oftalmológicos). Dado o tempo limitado para a realização da consulta e a necessidade de uma abordagem holística da criança, segundo um modelo biopsicossocial, poderá por vezes haver a tendência para recorrer a determinados «atalhos», assumindo-se precipitadamente a ausência de patologia de determinado sistema sem que seja feita uma avaliação dirigida do mesmo. É importante procurar contrariar esta propensão, algo que poderá ser facilitado por uma sistematização da observação a realizar e, previsivelmente, pela experiência e regularidade da prática clínica.
A descrição deste caso pretende também sensibilizar para a necessidade de investigação adicional sempre que se constate esta condição. Como referido anteriormente, o nistagmo infantil pode ser idiopático, mas outros tipos assumem um caráter mais patológico, associando-se a diferentes comorbilidades.5 Na Tabela 2 encontram-se identificados os vários tipos de nistagmo infantil, bem como algumas das suas principais características.1,4-5,6,8-9,11-13,17-19 De notar que a classificação do nistagmo infantil não é uniforme na bibliografia consultada. Assim, optou-se por uma categorização relativamente simples que evidencia o substrato patológico, isto é, o conjunto de patologias que se associam ao nistagmo, ainda que possam não constituir causa direta do mesmo. É importante ter em atenção que não há padrões de nistagmo patognomónicos.7 Vários tipos de nistagmo podem coexistir no mesmo indivíduo4 e determinadas comorbilidades são comuns a diferentes patologias (e.g., alterações oftalmológicas podem associar-se frequentemente ao albinismo, patologia neurológica ou doenças endócrinas).5,20
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Um diagnóstico de nistagmo infantil de novo durante a consulta implica, primeiro que tudo, uma avaliação mais detalhada dos movimentos oculares - tipo de oscilação predominante (sacádica ou pendular), planos de oscilação, monocular ou binocular, conjugação, simetria, amplitude e frequência destes movimentos, continuidade ou periodicidade do nistagmo, influência da fixação e da convergência ocular na oculomotricidade e posição preferencial da cabeça da criança. Sabe-se que os casos de NII são tipicamente bilaterais, conjugados e horizontais, embora as oscilações possam menos frequentemente ocorrer segundo um plano torsional ou, raramente, vertical.5,21 Classicamente agravam com a fixação do olhar e melhoram com a convergência do mesmo.1 Está também descrita a existência de uma zona nula - determinada posição do olhar segundo a qual a oculomotricidade é reduzida -, o que contribui para que a criança muitas vezes assuma uma posição cefálica atípica, promovendo uma maior estabilidade ocular e consequente melhoria da acuidade visual.5
Igualmente importante é verificar, dentro do possível, eventuais alterações da anatomia externa do olho, dos meios transparentes (importante avaliação do reflexo vermelho do olho), da capacidade visual (nomeadamente recorrendo aos reflexos fotomotores e da fixação e perseguição) e da posição do olhar e equilíbrio oculomotor (teste de Hirschberg e cover test). De notar que até aos seis meses pode não haver ainda uma visão binocular eficaz,15 pelo que estes últimos testes terão as suas limitações.
A colheita de uma anamnese mais detalhada, tentando perceber quando e em que circunstâncias os pais/familiares terão percecionado o aparecimento dos movimentos oculares, bem como de uma história familiar com especial enfoque na patologia oftalmológica, são informações igualmente relevantes perante um caso de nistagmo. Embora as idades referidas na bibliografia não sejam totalmente consensuais, é geralmente aceite que a forma idiopática do nistagmo infantil surge habitualmente nos primeiros meses de vida (geralmente até às 12 semanas), não sendo típica a sua presença logo aquando do nascimento. Por sua vez, um aparecimento tardio, principalmente após os seis meses de idade, está habitualmente associado a uma forma adquirida do nistagmo, normalmente de caráter patológico.1,5,9
Ainda que o NII ocorra frequentemente de forma esporádica, há muitas vezes uma história familiar de nistagmo. Existem diferentes padrões de hereditariedade descritos, sendo o mais comum o ligado ao X.1,5,17
É fundamental ter em conta que qualquer diagnóstico de nistagmo na criança implica sempre referenciação para a oftalmologia para exclusão de um eventual defeito visual.1,21
Diferentes sinais e sintomas podem sugerir uma causa não idiopática para o nistagmo (Tabela 1). Quando presentes, e na suspeita de uma etiologia não estritamente oftalmológica ou na hipótese de doenças metabólicas ou de patologia hereditária, justifica-se uma investigação neurológica mais detalhada, nomeadamente com recurso a RM-CE, e um eventual estudo laboratorial e/ou genético.1,5
No contexto supracitado, é opinião dos autores que a criança deverá ser referenciada à especialidade de neurologia e/ou outras consideradas pertinentes. Esta referenciação não se reveste de um caráter de exclusividade. Por exemplo, no presente caso clínico, a criança foi avaliada pela neuropediatria, ainda que não apresentasse nenhum dos sinais de alarme mencionados. O encaminhamento para outras especialidades que não a oftalmologia deve obviamente ser considerado caso a caso, tendo em conta a história clínica, semiologia, opinião do médico e senso clínico, bem como a vontade dos pais, já que a insegurança associada à incerteza relativamente à eventual coexistência de outras patologias de base pode ter implicações significativas no bem-estar da família.
O diagnóstico de nistagmo numa criança é habitualmente um fator de preocupação e ansiedade para os familiares. É, assim, dever do médico de família saber tranquilizá-los, informando-os de que esta condição raramente se associa a patologias que comportem risco de vida. Ainda assim, deve ser reforçada a necessidade de uma avaliação oftalmológica especializada, dada a possibilidade da existência de défices visuais que facilmente podem passar despercebidos, nomeadamente numa fase mais precoce da vida da criança.
Particularizando em relação ao caso clínico apresentado, o NII é considerado benigno, dado não estar associado a patologia visual ou neurológica de base. A acuidade visual nestes casos é relativamente boa, ainda que possa haver algum défice associado à oscilação ocular que condiciona uma diminuição do período de foveação, isto é, o tempo durante o qual a imagem se encontra estabilizada na retina.7,17 Curiosamente, quando o nistagmo surge na infância precoce, o indivíduo tipicamente não chega a desenvolver oscilópsia (perceção de imagem oscilatória), provavelmente através de mecanismos de adaptação cerebral à oculomotricidade mantida.1,9 Apesar de ser uma condição crónica, existe tendência para que os movimentos oculares anormais diminuam de intensidade com a idade.5,9,21 A acuidade visual da criança vai também aumentando com o seu desenvolvimento, em linha com o que é habitual na população geral, embora cerca de metade das crianças venha a ter uma visão ligeiramente abaixo dos limiares considerados normais.7,18 Na maioria dos casos, a visão binocular (estereopsia) está mantida.5,17
Nos casos de nistagmo infantil associado a patologia oftalmológica, a acuidade visual é normalmente inferior1,7,18 e a evolução clínica pode ser variável, dependendo da condição de base.19 Também no nistagmo associado ao albinismo a acuidade visual é inferior,6-7,18 enquanto nos casos de nistagmo latente/manifesto-latente ou spasmus nutans a acuidade visual está habitualmente mantida.13
O nistagmo infantil não tem cura, sendo que os tratamentos atualmente disponíveis podem reduzir os movimentos oculares anormais e/ou melhorar a acuidade visual, mas não é expectável uma remissão total da sintomatologia. As intervenções terapêuticas devem ser implementadas precocemente, de forma a potenciar o máximo benefício, promovendo o desenvolvimento e maturação adequados do sistema visual.22 A correção dos erros refrativos, frequentemente associados ao nistagmo infantil, é talvez a intervenção mais importante para a melhoria da acuidade visual, potencialmente reduzindo a incidência de ambliopia refrativa.9,18,23 Outras abordagens terapêuticas incluem a correção de um eventual estrabismo (oclusão ocular, lentes prismáticas ou cirurgia, por exemplo), a utilização de prismas divergentes no sentido de forçar uma convergência ocular, que pode nalguns casos reduzir a oculomotricidade, e o recurso à cirurgia para reposicionar a zona nula na posição primária do olhar, reduzindo o nistagmo e promovendo a adoção de uma posição cefálica anatomicamente normal. Alguns fármacos (memantina, gabapentina e baclofeno) podem ter efeito benéfico no nistagmo, embora sejam necessários mais estudos, nomeadamente na população infantil. O uso de toxina botulínica poderá eventualmente ter um papel na redução da oculomotricidade sendo, no entanto, mal tolerado.1,5,9
Verifica-se, assim, que, de entre as várias intervenções terapêuticas disponíveis, ou que têm ainda um estatuto muito experimental, são necessários mais estudos para a sua implementação regular na população pediátrica ou estão fora do âmbito de atuação clínica do médico de família, necessitando de uma abordagem médica e/ou cirúrgica pela especialidade de oftalmologia. No entanto, considera-se que existem determinadas medidas que devem ser adotadas nas consultas de Medicina Geral e Familiar e que se revestem de uma importância fundamental.
Em primeiro lugar, e como referido anteriormente, qualquer caso de nistagmo infantil deverá ser devidamente descrito e referenciado para a especialidade de oftalmologia. Se houver indicação para que a criança mantenha seguimento em consulta/s da/s especialidade/s, é papel do médico de família, enquanto profissional de saúde com um contacto próximo do doente e da sua família, acompanhando-os ao longo de todo o percurso clínico, verificar que a criança tem de facto tido o seguimento recomendado, eventualmente servindo de interface e de «ponto-de-encontro» entre as diferentes especialidades, integrando toda a informação clínica e orientando corretamente a criança e sua família consoante as necessidades.
Seguidamente, e porque o nistagmo, ainda que idiopático, se pode associar com alguma frequência a défice da acuidade visual, destaque-se a importância de uma avaliação regular da visão nas consultas de SIJ. Os familiares devem igualmente ser questionados relativamente à suspeita de eventuais alterações visuais. É também importante ir avaliando o nistagmo ao longo do tempo, verificando a sua evolução (tendência a diminuir com a idade, caso seja idiopático) e vigiando eventuais alterações nas suas características. O aparecimento de novos padrões na oculomotricidade, especialmente se atípicos (alteração dos planos de oscilação ocular, principalmente se vertical, assimetria entre os olhos, aumento da frequência do nistagmo ou a presença de movimentos oculares caóticos), deve constituir um motivo de preocupação e exige uma avaliação oftalmológica especializada atempada.
Beneficiando de uma posição privilegiada no acompanhamento das crianças ao longo do tempo, dada a regularidade das consultas de SIJ, principalmente nos primeiros anos de vida, o médico de família tem assim um papel primordial na vigilância do seu crescimento. É importante estar atento a eventuais atrasos no desenvolvimento psicomotor ou na evolução estaturo-ponderal, não descurando o uso regular, como é recomendado, da escala de desenvolvimento de Mary Sheridan modificada e das curvas de crescimento da Organização Mundial da Saúde. Alterações significativas no padrão habitual de desenvolvimento da criança ou o aparecimento de semiologia neurológica anormal (e.g., reflexos atípicos, desequilíbrio da marcha, hipotonia) constituem um sinal de preocupação e podem estar inerentes a patologia neurológica, metabólica e/ou genética de base, que não tenha sido previamente identificada e correlacionada com o nistagmo. Ainda assim, e como se verifica, não é de esperar uma abordagem significativamente diferente da restante população pediátrica - uma vigilância regular e uma avaliação global e sistematizada é adequada ao acompanhamento destas crianças pelo médico assistente.
Por último, de destacar a abordagem holística que o médico de família deve ter perante o doente. Assim, numa primeira fase, é preciso estar atento às implicações que o diagnóstico de nistagmo numa criança pode ter na família. Como anteriormente referido, o médico deve certificar-se de que os pais (ou outros familiares cuidadores) compreendem esta entidade, as possíveis causas, consequências e prognóstico. Deve ser avaliado o nível de ansiedade e preocupação dos familiares, sabendo gerir corretamente a situação do ponto de vista científico, clínico e humano.
Posteriormente, em crianças de maior idade, as consequências sociais do nistagmo devem ser tidas em conta. Há evidência de que, para além das implicações na acuidade visual, o nistagmo pode ter repercussões na funcionalidade social dos indivíduos.24 A presença desta condição numa criança pode afetar negativamente o seu bem-estar emocional, nomeadamente pela preocupação com a aparência e autoconfiança e pelo risco de ser gozada pelos colegas ou sofrer bullying.24 Esta é também uma vertente com que o médico de família se deve preocupar, questionando pais e crianças relativamente ao seu estado emocional e relação com os pares, procurando apurar eventuais sinais de alarme e fatores de stresse cuja abordagem é igualmente importante.
Concluindo, o médico de família, dado o contacto próximo e continuado que tem com as crianças da sua lista de utentes, muitas vezes desde o período pré-natal, assume uma função primordial na deteção, avaliação inicial e referenciação adequada dos casos de nistagmo infantil. Embora raramente associado a patologias que comportem risco de vida, o nistagmo pode estar associado a alterações oftalmológicas, neurológicas ou sistémicas, pelo que o seu diagnóstico e investigação etiológica precoces são fundamentais. É, assim, essencial que o médico esteja atento a eventuais anomalias da motricidade ocular objetiváveis durante as consultas de SIJ e saiba encaminhar devidamente o doente para uma investigação atempada, vigiando a evolução clínica do quadro e estando atento a sinais de alarme. Uma vez que esta entidade pode facilmente despoletar ansiedade nos pais ou familiares da criança, é importante esclarecê-los e tranquilizá-los de forma sensata, evitando comunicar prognósticos precoces e precipitados e procurando limitar o surgimento de falsas expectativas ou de eventuais instabilidades na dinâmica familiar.
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Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence
Elmano Margato
E-mail: elmanomargato@campus.ul.pt
Agradecimentos
Os autores agradecem à Dr.ª Margarida Fazio, diretora do internato médico de medicina geral e familiar do ACeS Lisboa Norte, pelos comentários e sugestões gentilmente prestados durante a elaboração do manuscrito.
Conflito de interesses
Os autores declaram não ter quaisquer conflitos de interesse.
Recebido em 27-05-2019. Aceite para publicação em 22-12-2019