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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar
versão impressa ISSN 2182-5173
Rev Port Med Geral Fam vol.36 no.5 Lisboa out. 2020
https://doi.org/10.32385/rpmgf.v36i5.12686
ESTUDOS ORIGINAIS
Investigação em medicina geral e familiar: tendências e vazios
Research on the field of family medicine in portugal: preferred areas of investigation and gaps
Joana Abreu,1-2
Patrícia Reis,1
Sara Cardoso,3-4
https://orcid.org/0000-0003-3314-4070
Soraia Reis5
1 Médica de Família. USF das Conchas.
2 Docente Afiliada. Departamento de Medicina Geral e Familiar, NOVA Medical School.
3 Médica de Família. Unidade de Cuidados de Saúde Personalizados dos Olivais.
4 Assistente convidada. Faculdade de Medicina, Universidade de Lisboa.
5 Médica de Família. Unidade de Saúde Familiar do Arco.
Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence
RESUMO
Introdução e objetivo(s): A produção científica de uma especialidade é um sinal de vitalidade e de autorreflexão indispensável à identidade de qualquer disciplina científica. O estudo pretende descrever a investigação original efetuada por especialistas ou internos da especialidade de medicina geral e familiar (MGF) publicada na Acta Médica Portuguesa (AMP), na Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (RPMGF) e nos livros de resumos do Congresso Nacional e Encontro Nacional da APMGF.
Métodos: Foram incluídos todos os trabalhos de investigação original, estudos de avaliação e melhoria da qualidade concluídos por especialistas ou internos de MGF publicados entre janeiro de 2014 e 31 de outubro de 2018 na RPMGF e AMP e todos os abstracts publicados nos livros de resumos do Encontro e Congresso Nacional de MGF, da APMGF, de 2015 a 2018. Foram recolhidos dados relativos aos autores, das unidades de saúde envolvidas e do n total. Os trabalhos foram categorizados em grandes áreas temáticas sobre a qual incidiu a investigação (de acordo com agenda de investigação europeia-EGPRN) e as patologias em estudo (de acordo com a ICPC-2).
Resultados: Foram analisadas 587 referências, das quais 283 foram incluídas por cumprirem os critérios de elegibilidade. Os internos de MGF são autores/coautores dos estudos em 82,6% dos casos e os especialistas em 71,8% dos estudos. Existe um autor pertencente à academia médica em 18,2% dos estudos. Quase a totalidade dos estudos são quantitativos (n=274) e observacionais (n=216). A maioria dos estudos recolheu dados da população de uma ou duas unidades de saúde (n=153), o valor mínimo de participantes foi de 23 numa comunicação oral e o máximo de 12.467.427 num estudo da AMP. As áreas temáticas relacionadas com a gestão de cuidados de saúde primários (n=108) e as competências de resolução de problemas específicos (n=161) são as mais investigadas. Os principais problemas de saúde estudados pertencem aos capítulos A, T, P e K da ICPC-2. Destaca-se o facto de nenhum estudo abordar a «Orientação para a comunidade» ou a «Abordagem holística» da especialidade de MGF.
Discussão: Os resultados encontrados são semelhantes aos descritos em outros estudos portugueses e internacionais. Será importante repensar o papel da vertente biopsicossocial na especialidade de MGF e que caminhos poderão levar a responder a perguntas sobre estas temáticas. O presente artigo poderá facilitar a estruturação de uma agenda de investigação adequada aos cuidados de saúde primários portugueses.
Palavras-chave: Medicina geral e familiar; Investigação.
ABSTRACT
Introduction and objective(s): The scientific production in the medical field is a sign of vitality and self-reflection essential to any scientific discipline. This study aims to describe the original research carried out by family doctors (FD), specialists, or interns, published in the Acta Médica Portuguesa (AMP), Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (RPMGF), and in the APMGF National Congress and National Meeting abstract books.
Methods: All original research, quality improvement studies completed by FD specialists or interns published between January 2014 and 31 October 2018 in the RPMGF and AMP, and all abstracts published in the summaries of the APMGF National Congress and Meetings from 2015 to 2018. Researchers' characteristics, the place where the study was conducted, the number of subjects included were identified, the area of research was categorized into major thematic areas (following the European-EGPRN research agenda) and diseases (accordingly to ICPC-2).
Results: 587 references were analyzed, of which 283 were included for meeting the eligibility criteria. FD interns where authors/co-authors in 82.6% of cases and specialists in 71.8% of cases. There is an author in the medical academy in 18.2% of the studies. Almost all studies are quantitative (n=274) and observational (n=216). Most studies collected population data from one or two health facilities (n=153), the minimum number of participants was 23 in one oral communication, and the maximum of 12,467.427 in an AMP study. Thematic areas related to primary care management (n=108) and specific problem-solving skills (n=161) are the most frequent. The main health problems studied belong to ICPC-2 chapters A, T, P, and K. Noteworthy no study addressed the ‘Community orientation’ or ‘Holistic approach’ in MGF specialty.
Discussion: The results found are similar to those described in other Portuguese and international studies. It will be important to rethink the role of the biopsychosocial aspect in the specialty of MGF and what paths may lead us to answer questions on these issues. This article may facilitate the structuring of a research agenda appropriate to the Portuguese PHC.
Keywords: Family practice; Research.
Introdução
A investigação em cuidados de saúde primários (CSP) é essencial, pois retrata uma realidade específica, diferente da hospitalar e laboratorial, com uma visão integral e longitudinal da saúde, da história natural da doença, das características clínicas e terapêuticas dos problemas de saúde mais prevalentes, prestando cuidados preventivos que necessitam ser suportados por uma evidência científica robusta. Concomitantemente, a investigação em CSP permite realçar o papel dos médicos de família nos sistemas de cuidados de saúde, por forma a melhorar o seu funcionamento e a saúde das populações.1-2
O reconhecimento da importância desta área levou à fundação de um grupo de especialistas europeus, a European General Practice Research Network, que criou uma Agenda de Investigação Europeia em Clínica Geral/Medicina Familiar, publicada em 2009, com o objetivo de dar orientações para a investigação futura e para as respetivas políticas de investigação.1
Em Portugal a especialidade tem crescido não só em número de especialistas como no reconhecimento da sua importância como peça fundamental nos cuidados de saúde de qualidade. Atualmente as faculdades de medicina incluem a formação em medicina geral familiar (MGF) como central na formação pré-graduada de qualquer médico e em muitos casos os departamentos de MGF funcionam de forma independente.
Como noutros contextos europeus foram construídas agendas de investigação que sugerem temas/áreas consideradas pertinentes.3-4
Somente através da divulgação científica (seja ela em publicação ou em comunicação oral/póster numa conferência) os resultados da investigação ultrapassam os limites do próprio autor e podem ser partilhados com a comunidade científica. Vários autores têm escrito acerca da necessidade da MGF se afirmar na produção de investigação original. Luís Santiago, num editorial publicado na Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (RPMGF),5 questiona “Quem estudamos e que investigamos? Quem são os autores? Que linhas de investigação estão a prosseguir” e Raquel Braga refere que “É preciso desenvolver uma agenda, que deve ultrapassar a adaptação ou tradução da Agenda Europeia de Investigação, que tem de ser inovadora e adaptada às particularidades da reforma dos CSP em curso no nosso país e ao momento de grandes transformações que vivemos”.6:258 No entanto, para a construção de uma agenda, para a projeção de um futuro, é necessário um ponto de situação prévio. Na MGF portuguesa falta conhecer uma dimensão essencial da sua afirmação, a curiosidade científica sinal de vitalidade, crescimento e de autorreflexão. Neste sentido, as autoras propõem-se descrever a investigação original produzida por especialistas e internos de MGF para que se possa sedimentar uma resposta futura.
Objetivos
Descrever a investigação original e estudos de avaliação e melhoria de qualidade efetuada por especialistas ou internos da especialidade de MGF publicada na Acta Médica Portuguesa (AMP), na RPMGF e nos livros de resumos do Congresso Nacional e Encontro Nacional da Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar (APMGF).
Material e métodos
Enquadramento: Estudo observacional retrospetivo, transversal, descritivo.
Critérios de elegibilidade:
• Participantes: autor(es) do estudo detém(detêm) o título de especialista em MGF ou de internos da especialidade de MGF.
• Intervenção: qualquer trabalho de investigação original concluída e estudos de avaliação e melhoria da qualidade concluídos, de iniciativa da indústria ou do autor.
Foram incluídos todos os trabalhos de investigação original e estudos de avaliação e melhoria de qualidade concluídos, publicados entre janeiro de 2014 e 31 de outubro de 2018 na RPMGF e AMP por especialistas ou internos de MGF e todos os resumos de todas as comunicações orais de estudos de investigação original e estudos de avaliação e melhoria da qualidade publicados nos livros de resumos do Encontro e Congresso Nacional de MGF, da APMGF, de 2015 a 2018.
Métodos de pesquisa para a identificação de fontes: As autoras analisaram cada índice da RPMGF, AMP e livros de resumos do Congresso e Encontro Nacional de MGF no período em estudo. Não foi feita nenhuma restrição de linguagem.
Recolha de dados: As autoras criaram uma matriz para colheita das variáveis que foi efetuada por duas autoras (PR e SC). Cada estudo foi registado como único. Se os resultados de um estudo se encontrarem difundidos por várias publicações será registado apenas uma vez, naquela com maior relevância (por ordem crescente Encontro Nacional de MGF < Congresso Nacional de MGF < RPMGF e/ou AMP). Os conflitos de categorização de tema foram resolvidos pelo consenso de três das investigadoras (PR, SC, JA ou PR, SC, SR). As autoras efetuaram um teste piloto da adequação da folha de registo e afinação dos critérios de categorização, utilizando artigos publicados na AMP elaborados por autores de outras especialidades médicas.
Variáveis recolhidas e tratamento de dados: Ano de publicação; local de publicação/divulgação; situação profissional dos autores (internos ou especialistas de MGF, especialistas ou internos de outras áreas de especialidade, membros da academia); campo de estudo; número de unidades de saúde envolvidas e de participantes; desenho do estudo; e tipo de metodologia e área temática sobre a qual incide a investigação. Foi utilizada a estatística descritiva com frequências e medidas de dispersão central.
Definição das grandes áreas temáticas: Para identificar as áreas temáticas da pergunta de investigação as autoras basearam-se no trabalho de Hummers-Pradier et al.,1 e na Classificação Internacional de Cuidados de Saúde Primários (2ª versão). Neste documento são definidas várias áreas temáticas de investigação que se sobrepõem às competências nucleares definidas pela WONCA: gestão dos cuidados primários, cuidados centrados na pessoa, competências de resolução de problemas específicos, abordagem total (estudos que abordem a globalidade de cuidados entre a saúde e a doença), orientação para a comunidade, abordagem holística (estudos que estudam o modelo utilização de um modelo biopsicossocial).
A grande área temática do estudo das competências de resolução de problemas específicos é vasta e abrange a maioria da investigação clínica de diagnóstico ou relacionada com a doença e é subdividida em quatro subtemas: diagnóstico, terapêutica, abordagens específicas à resolução de problemas (no qual as autoras procederam a uma subcategorização das patologias estudadas por capítulo da ICPC-2) e investigação educacional.
Considerações éticas: A investigação não envolve seres humanos diretamente, tendo incidido exclusivamente sobre dados que estão no domínio público. Assim, de acordo com o Tri-Council Policy Statement, na sua publicação Tri-Council Policy Statement: Ethical Conduct for Research Involving Humans - TCPS 2 (2018) (http://www.pre.ethics.gc.ca/eng/policy-politique/initiatives/tcps2-eptc2/Default/), a utilização secundária de dados recolhidos que já são do domínio público (como aqueles que são publicados em revistas) está isenta de reavaliação ética.
Resultados
Foram analisadas 587 referências, das quais 283 (48,21%) foram incluídas por cumprir os critérios de elegibilidade. Na AMP, revista indexada, foram identificados 302 artigos de investigação original e de avaliação e melhoria da qualidade, dos quais 6,95% (n=21) incluíram a participação de um especialista ou interno da especialidade de MGF.
Autores
Das referências incluídas no estudo, pela afiliação descrita, não foi possível esclarecer se existiu concomitantemente a participação de internos de MGF em 41 casos (14,0%) e em 74 casos (26,3%) não foi possível esclarecer se existiu ou não também a participação de um especialista.
A maioria dos estudos apresentavam um interno de MGF como autor (82,6%; n=200), sendo esta participação mais expressiva em comunicações orais nos eventos científicos da APMGF (90,7%; n=166), acontecendo em 25 (64,1%) das publicações da RPMGF e nove (45%) das referências da AMP.
A percentagem de participação de especialistas em MGF foi muito semelhante, cerca de 70% nas três fontes pesquisadas. Aproximadamente 18,2% (n=51) dos trabalhos contaram com membros da academia, isto é, especialistas ou internos de MGF que declararam afiliação a uma unidade/departamento académico. No entanto, embora a academia estivesse presente em 12,3% das comunicações orais, na AMP participou na maioria dos artigos publicados (61,9%; n=13).
A maioria dos estudos publicados na AMP (n=14; 70,0%) trata-se de estudos multidisciplinares, isto é, foram elaborados com internos/especialistas de outras especialidades ou com outros técnicos da área da saúde. Na RPMGF esta colaboração ocorreu em cerca de um terço (n=12; 30%) dos artigos e nos congressos e encontros apenas em 12,3% (n=53) das comunicações orais.
Campo de pesquisa
Quando analisados na sua globalidade, a maioria dos estudos recolheu os dados em unidades de cuidados de saúde primários (80,9%; n=229). Na subanálise de cada uma das fontes verificou-se que a maioria dos estudos realizados em contexto hospitalar encontra-se nas duas revistas, a AMP com 14,3% (n=3) seguida da RPMGF (5%; n=2). Em 42 estudos a informação não foi recolhida em unidades de cuidados de saúde (farmácia comunitária, encontros formativos, faculdades, entre outros).
A maioria dos estudos analisados recolheu dados da população de uma ou duas unidades de saúde (54,1%; n=153), correspondendo a 77% (n=171) das comunicações orais, 40% (n=16) dos artigos publicados na RPMGF e 19% (n=4) dos artigos publicados na AMP. A mediana do número de unidades envolvidas no estudo foi superior nas revistas em comparação com os eventos da APMGF (AMP mediana=3, RPMGF mediana=3,5 e eventos APMGF mediana=1); o número máximo de unidades envolvidas foi identificado numa publicação da RPMGF (31 unidades).
Analisando o número total de participantes no estudo verifica-se que o valor mínimo foi de 23 participantes numa comunicação oral e o máximo de 12.467.427 participantes num estudo da AMP. A mediana do número de participantes foi superior na AMP (mediana=709), seguida dos encontros da APMGF (mediana=255) e da RPMG (mediana=192).
Metodologia
Os estudos que utilizam a metodologia quantitativa são os mais frequentes, totalizando 274 das 283 referências analisadas (96,8%). A investigação qualitativa foi residual, seja qual for a fonte considerada (1,41%; n=4). Foram identificadas três comunicações orais, um artigo publicado na RPMGF e zero (0) artigos publicados na AMP utilizando esta metodologia.
Os estudos observacionais são os mais prevalentes, quer se analise a globalidade das fontes (76,33%; n=216) ou cada uma delas de forma individual. Não obstante, nos congressos/encontros identificaram-se 27,03% (n=60) de comunicações orais que descrevem os resultados de uma intervenção, contribuindo para esta percentagem mais elevada o número de ciclos de avaliação e melhoria de qualidade apresentados.
Tema de investigação
Quando analisadas as referências identificadas pelas grandes áreas temáticas da investigação em CSP definidas pela agenda EURACT destaca-se o facto de nenhum estudo abordar a «Orientação para a comunidade» ou a «Abordagem holística» da especialidade de MGF. Um estudo abordou o domínio da «Abordagem total», que inclui estudos sobre promoção da saúde e prevenção, diagnóstico, tratamento e seguimento de todas as doenças. Este domínio necessita que sejam simultaneamente considerados (todos) estes aspetos dos cuidados e carece de uma investigação alheia a doenças específicas, mas relacionada com grupos de pacientes ou temas de saúde em toda a sua aceção.
Identificaram-se 14 referências na área temática de «Cuidados centrados na Pessoa», sendo a maioria (n=10; 71,43%) apresentada como comunicação oral em congressos/encontros.
O domínio «Gestão dos cuidados primários» foi a segunda mais prevalente (n=108; 38,16%), refletindo a sua expressão sobretudo em congressos/encontros (n=91; 84,24% do total da rubrica) sob a forma de comunicações orais de trabalhos de avaliação e melhoria da qualidade. A maioria dos estudos analisados versa as «Competências de resolução de problemas específicos» (56,89%; n=161).
Na subanálise de capítulos da ICPC-2 destacam-se os capítulos A - Geral e Inespecífico (24,84%; n=40), T - Endócrino, Metabólico e Nutricional (19,25%; n=31), P - Psicológico (16,15%; n=26) e K - Aparelho Circulatório (13,66%; n=22). Os restantes 42 estudos distribuem-se pelos vários capítulos, exceto pelos capítulos F - Olho e H - Ouvido, que não foram objeto de nenhum estudo. Esta distribuição é proporcionalmente semelhante em todas as fontes analisadas.
Discussão/conclusão
Poder-se-ia tipificar o trabalho de investigação identificado no período em estudo da seguinte forma: uma comunicação oral, com autoria de um interno da especialidade de MGF, tendo a colheita de dados decorrido no contexto dos CSP, em uma ou duas unidades, incluindo entre 101 e 500 participantes. Será com muita certeza um estudo quantitativo, observacional, abordando as competências de resolução específicas de resolução de problemas de saúde.
A investigação científica parece ter como principal motor a participação dos internos da especialidade de MGF, sendo esta participação mais expressiva nos congressos e encontros APMGF. Estes dados aproximam-se dos publicados acerca da análise das referências bibliográficas da RPMGF entre 2008-2015: “50,8% dos artigos são publicados sem que na autoria haja um especialista em MGF, ou seja, foram os internos pela necessidade de publicar ou então foram especialistas de outras áreas ou de outros contextos nacionais de atuação”;5:383 mas na presente pesquisa, independentemente da origem da referência, cerca de três quartos dos trabalhos contaram com a participação de um especialista em MGF, o que poderá sugerir uma mudança no paradigma. Seria expectável que os internos sejam a principal força motriz da produção científica de uma especialidade? Como poderiam os especialistas participar de uma forma mais representativa? Vários esforços foram já feitos7-8 na tentativa de identificar as barreiras à investigação, que parecem estar consistentemente associadas com a falta de tempo (para o surgimento da pergunta, desenho de protocolo, implementação da investigação) e com a ausência de uma rede de suporte colaborativa.
Existem marcadas diferenças entre o número total de comunicações orais (n=222) e o número de artigos publicados (n=41), possivelmente porque os autores não consideraram que os artigos teriam potencial para publicação, ou as revistas a que submeteram os trabalhos consideraram não haver interesse para publicar, poderão não ter solicitado parecer à comissão de ética para a saúde, inviabilizando a publicação no caso de investigação que procura obter dados primários, ou poderá pura e simplesmente ter-se esgotado o tempo pessoal disponível pelos autores para o longo processo de publicação. O que se pretende com a apresentação de investigação nos congressos APMGF? Poderia ser criada uma consultoria de publicação para os projetos premiados?
A Agenda Europeia de Investigação não ajudou a delimitar caminhos prioritários. À semelhança do que foi descrito para Espanha,2 estuda-se o que ocupa tempo na consulta, nomeadamente problemas prevalentes. Constata-se a pouca dedicação à componente psicossocial da especialidade, determinante no core das competências da MGF. Talvez este vazio de investigação se associe ao baixo número de estudos que utilizem métodos qualitativos, os mais adequados para estudar fenómenos pouco definidos e que não procuram determinar números absolutos. Existem poucos MGF com experiência em estudos qualitativos e a oferta formativa nesta área é escassa dentro da medicina. Reforçam-se as sugestões de Yonah Yaphe9 num editorial sobre a necessidade de investigação qualitativa em CSP em Portugal, sobre a necessidade de oferta do treino em métodos qualitativos durante o internato e a criação de parcerias com investigadores de outras áreas (sociologia, psicologia, antropologia, enfermagem).
As autoras do presente estudo questionam-se se a definição de uma agenda de investigação em Portugal poderia fomentar o interesse pela mesma. Um estudo holandês com a descrição da construção de uma agenda de investigação em cuidados de saúde primários nacional, que identificou áreas de vazio de evidência, permitiu identificar as 10 principais perguntas de investigação que deveriam ser respondidas. A identificação destas questões facilitou a criação de um fundo de financiamento para a investigação nestas áreas.10
A Agenda de Investigação do Alto Comissariado da Saúde3 deu a conhecer a problemática, mas os horários dos médicos de família não incluem tempo para a investigação. Talvez os novos indicadores que constituem o Índice Global de Desempenho, que se propõe serem incluídos nos planos de ação das unidades, levem à necessidade de implementação de uma estratégia de investigação local e essa, por sua vez, conduza à expansão da investigação em CSP.
Como seria de esperar num trabalho exploratório, são identificadas mais perguntas que respostas, mas as autoras esperam que este trabalho possa contribuir para a discussão fundamentada sobre a investigação em CSP em Portugal.
Limitações do estudo
Este estudo não resulta de uma pesquisa bibliográfica sistemática, uma vez que não existem descritores médicos (MeSH, DeCS ou PORBASE) que permitam identificar a especialidade dos autores. As autoras optaram por selecionar as fontes de literatura indexada e a literatura cinzenta mais relevantes para a MGF em Portugal, aproximando-se, mas não permitindo, de uma caracterização com segurança da globalidade da investigação científica na disciplina.
O espaço temporal delimitado prende-se com o volume de trabalho necessário envolvido para a análise dos dados.
Uma das dificuldades do estudo foi determinar se os autores eram internos ou especialistas de MGF, dificuldade mais evidente na análise dos livros e resumos de congressos e encontros, em que os autores identificam a sua afiliação, mas não o tipo de vínculo/relação com a entidade.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Endereço para correspondência | Dirección para correspondencia | Correspondence
Sara Cardoso
E-mail: sarajoaocardoso@gmail.com
Conflitos de interesse
A autora principal, Sara Cardoso, foi editora associada da RPMGF de maio de 2015 a março 2017.
Financiamento do estudo
O trabalho não recebeu qualquer subsídio ou bolsa de investigação.
Recebido em 06-09-2019. Aceite para publicação em 17-06-2020