Introdução
O climatério é um estado fisiológico da mulher que resulta de um declínio progressivo da função ovárica e que estabelece a transição de um estado fértil para um não fértil. Neste âmbito, define-se como menopausa a data da última menstruação, diagnosticada após um ano de amenorreia sem outra causa suspeita e demonstrável.1
Nesta fase, a mulher experiencia várias alterações decorrentes do défice hormonal, incluindo sintomas vasomotores, perturbações do humor e a síndroma genito-urinária da menopausa. Esta síndroma abrange um espectro de sinais e sintomas que incluem secura, irritação e prurido vaginal, diminuição da lubrificação com as relações sexuais, dispareunia, hemorragia pós-coital, disúria, urgência miccional e infeções do trato urinário (ITU) recorrentes.1-2
A carência de estrogénios decorrente da menopausa leva a alterações estruturais e químicas no trato urogenital - aparecimento de prolapsos e de incontinência urinária, atrofia vaginal e diminuição do glicogénio, diminuição de lactobacilos na flora vaginal e alcalinização do pH vaginal -, que facilitam a ascensão das bactérias uropatogénicas no trato urinário, facilitando o aparecimento das ITU.3-5 Além disso, a existência de outros fatores concomitantes, como a diabetes mellitus, ou a história pessoal de ITU prévias, também contribuem para a recorrência das ITU.6-7
A ITU recorrente é definida como a existência de três ou mais episódios de ITU nos últimos 12 meses ou dois nos últimos seis meses.5,8-9
A prevalência dos sinais e sintomas associados à síndroma genito-urinária difere consoante a literatura, acreditando-se que esteja subestimada e que os sintomas urinários apresentem uma prevalência que varia entre 6% a 36%.2 Um estudo envolvendo três mil mulheres europeias demonstrou que cerca de 5-15% das mulheres com 60 anos sofre ITU recorrentes.6
A síndroma genito-urinária da menopausa demonstrou ter um impacto físico e psicológico negativo, pelo que um correto diagnóstico e uma adequada abordagem se tornam de elevada importância na manutenção do bem-estar e da qualidade de vida.
No que respeita aos sintomas urinários, nomeadamente às ITU de repetição e pelos efeitos adversos associados ao tratamento antibacteriano das mesmas, importa analisar medidas profiláticas eficazes neste grupo populacional. Pretende-se com esta revisão baseada na evidência (RBE) avaliar qual a eficácia dos estrogénios tópicos na prevenção de ITU recorrentes nas mulheres em pós-menopausa.
Métodos
Procedeu-se a uma pesquisa nas bases de dados MEDLINE, National Guideline Clearinghouse, Guidelines Finder, Canadian Medical Association Practice Guidelines, Cochrane Library, DARE (Database of Abstracts of Reviews of Effects) e Bandolier e referências bibliográficas dos artigos selecionados da pesquisa inicial (pesquisa em cascata), de normas de orientação clínica (NOC), meta-análises (MA), revisões sistemáticas (RS) e ensaios clínicos (EC). Foram incluídas publicações de janeiro de 2008 a abril de 2018, nas línguas inglesa, espanhola e portuguesa. Os termos MeSH utilizados foram Urinary Tract Infections, Postmenopause e Estrogens. A estruturação da pergunta de investigação segundo o modelo PICO foi:
• População: mulheres em pós-menopausa com ITU recorrentes;
• Intervenção: tratamento com estrogénio tópico;
• Controlo: placebo;
• Outcomes (resultados): redução do número de episódios de ITU.
Foram usados, como critérios de exclusão na pesquisa inicial, artigos que não eram MA, RS, NOC ou EC, artigos repetidos ou incluídos nas MA ou RS selecionadas ou artigos que não respondessem à pergunta de investigação estruturada de acordo com o modelo PICO. Para a avaliação dos níveis de evidência e atribuição da força de recomendação foi utilizada a escala Strength Of Recommendation Taxonomy (SORT), da American Family Physician,10 e para a avaliação da qualidade dos EC foi utilizada a escala de Jadad.11
Resultados
Da pesquisa inicial foram obtidos 69 resultados. Destes, foram excluídos 60 artigos após leitura do título e resumo e dois após leitura integral por não cumprirem os critérios de inclusão ou por se incluírem nos critérios de exclusão, conforme descrito na Figura 1. Assim, da pesquisa inicial foram incluídas sete publicações: três NOC e quatro RS. Não foram encontrados EC publicados no período de estudo.
Ademais, incluíram-se duas NOC das referências bibliográficas dos artigos inicialmente selecionados (pesquisa em cascata) que cumpriam os critérios de inclusão - incluindo a data de publicação -, mas que não surgiram nos resultados da pesquisa inicial.
Uma vez que os artigos selecionados apresentavam conclusões díspares, numa segunda fase foram reunidas todas as referências bibliográficas nos quais estes se suportaram (independentemente da data de publicação) e que ainda não tinham sido analisadas individualmente (fontes secundárias). Foram excluídos os EC que não estavam de acordo com o objetivo de investigação definido pelo modelo PICO (e.g., comparação de estrogénios tópicos com antibioterapia ou avaliação de outcomes baseados na doença). A Tabela 1 reúne as sete publicações selecionadas da pesquisa inicial - três NOC e quatro RS -, as publicações selecionadas adicionalmente a partir da pesquisa em cascata - duas NOC - e os respetivos artigos, concordantes com os objetivos deste trabalho, que suportaram as suas conclusões.
TABELA 1 Publicações selecionadas da pesquisa inicial e em cascata, e respetivas referências bibliográficas contidas em cada artigo

Normas de orientação clínica (Tabela 2)
Pesquisa inicial
A NOC da Sociedade de Obstetras e Ginecologistas do Canadá, de 2017, é a mais recente e conclui a favor do uso de estrogénios vaginais nas mulheres em pós-menopausa com ITU recorrentes, com uma força de recomendação A, de acordo com a escala Canadian Task Force on Preventive Health Care. Quando analisadas as fontes bibliográficas nas quais se suportam, verifica-se que inclui dois EC [Raz (1993) e Eriksen (1999)], uma revisão clássica [Raz (2001)] e duas RS [Perrota (2008) e Cardozo (2001)], sendo que estas últimas utilizam os mesmos dois EC para suportar as suas conclusões, conforme reunido na Tabela 1.
A NOC da Sociedade de Endocrinologia Americana, de 2015, estabelece igualmente uma recomendação favorável à utilização de estrogénios tópicos em baixa dose na pós-menopausa, mas após falência do uso de lubrificantes. Contudo, a recomendação é estabelecida para uma síndroma genito-urinária em geral (na qual se incluem as ITU recorrentes), mas sem especificar a possibilidade de existirem diferentes recomendações conforme os sintomas em causa (e.g., secura vaginal vs ITU recorrentes). Não é atribuída força de recomendação. Esta NOC tem como suporte apenas dois EC - os mesmos que a NOC Canadiana, apresentando, contudo, conclusões distintas (Tabela 1).
A NOC do Colégio Mexicano de Especialistas em Ginecologia e Obstetrícia, de 2010, recomenda a aplicação de estrogénios vaginais para a prevenção de ITU recorrentes na pós-menopausa, com uma força de recomendação D de acordo com a escala Centre for Evidence-based Medicine in Oxford, o que corresponde a uma força de recomendação baseada na opinião de peritos. Como referência bibliográfica citam apenas uma RS [Cardozo (2001)] (Tabela 1).
Pesquisa em cascata
As restantes duas NOC obtidas da pesquisa em cascata - da Associação das Sociedades Médicas Científicas na Alemanha, de 2011, e da Sociedade Norte Americana da Menopausa, de 2010 - referem uma metodologia de pesquisa baseada na evidência, mas não descrevem as referências bibliográficas nas quais se basearam para as suas conclusões, pelo que não foi possível avaliar a qualidade das mesmas. A primeira atribui uma força de recomendação B, de acordo com a escala Centre for Evidence-based Medicine in Oxford, a favor da utilização de estrogénios tópicos na prevenção de ITU recorrentes na pós-menopausa e a segunda conclui que os estrogénios vaginais podem ajudar a reduzir o risco de ITU recorrentes, sem atribuir força de recomendação.
Em suma, as cinco NOC analisadas são relativamente consistentes na recomendação a favor do uso de estrogénios na prevenção de ITU recorrentes na pós-menopausa, divergindo, contudo, nas forças de recomendação atribuídas, as quais variam entre D (baseado na opinião de peritos de acordo) a A (existe boa evidência para recomendar a utilização desta ação preventiva).
Revisões sistemáticas (Tabela 3)
Pesquisa inicial
Relativamente às quatro RS selecionadas da pesquisa inicial, Ortmann (2012) e Perrota (2008) - a RS da Cochrane Library - recomendam a utilização de estrogénios vaginais na prevenção de ITU recorrentes na mulher em pós-menopausa, embora a segunda apenas quando associada a sinais ou sintomas de atrofia vaginal e a carência de estrogénios. As outras duas RS - Dueñas-Garcia (2016) e Ewis (2010) - concluem que são necessários mais estudos.
Quando analisadas as fontes bibliográficas que serviram de suporte (Tabela 1) verifica-se que três destas [Dueñas-Garcia (2016), Ewis (2010) e Perrota (2008)] utilizam os dois EC já referidos anteriormente e citados na NOC Canadiana. A RS de Ortmann (2012) suporta-se em duas NOC analisadas anteriormente (da Sociedade Norte Americana da Menopausa e da Associação das Sociedades Médicas Científicas na Alemanha) e uma RS [Perrota (2008)]. De referir que, para além destes, foram também incluídos vários EC que não foram alvo de análise nesta RBE por não estarem de acordo com os critérios de inclusão.
Pesquisa em cascata
A RS de Cardozo (2001) encontrada na pesquisa em cascata incluiu os mesmos EC da RS de Perrota (2008), concluindo que a administração de estrogénios é eficaz na redução de ITU recorrentes, sendo necessário, contudo, a realização de um estudo aleatorizado controlado com suficiente poder estatístico.
Ensaios clínicos
Pesquisa em cascata
Dos dois EC incluídos nas referências bibliográficas da pesquisa inicial e que respondem à nossa pergunta de investigação - Eriksen (1999) e Raz (1993) -, um compara estrogénios tópicos na formulação em anel vaginal e outro em creme, respetivamente. Nestes foi incluído um total de 279 mulheres, conforme descrito na Tabela 3.
Eriksen (1999) comparou um grupo sob terapêutica com anel vaginal com 17B-estradiol (n=53) e outro sob placebo (n=55). Esta intervenção teve a duração de 36 semanas, com um período de seguimento de mais 36 semanas. Verificou-se que 45% das mulheres do grupo de tratamento permaneceram sem ITU recorrentes vs 20% no grupo de controlo (RR=0,64; IC95% 0,47-0,86).
Já no estudo realizado por Raz (1993), com duração de oito meses de tratamento e oito meses de seguimento, comparou-se um grupo sob terapêutica com creme vaginal com estriol 0,5mg (n=50) e um grupo com placebo (n=43), tendo-se observado uma redução na incidência de ITU recorrentes no grupo de tratamento (RR=0,25; IC95% 0,13-0,5). O efeito verificou-se apenas durante o período do tratamento. Foi observada irritação vaginal ligeira e autolimitada (prurido e ardor) em 10 e quatro mulheres nos grupos de tratamento e placebo, respetivamente, sendo que todas abandonaram o estudo.
De salientar que estes dois EC divergem no tipo e dose de estrogénio, na sua formulação (anel vaginal vs creme, respetivamente) e na duração de tratamento (nove e oito meses, respetivamente), assim como na avaliação dos outcomes (reavaliação apenas se sintomática vs reavaliação mensal ou se sintomática, respetivamente). Além disso, apresentam uma definição do outcome «ITU» distinta, no caso de Eriksen (1999) a requerer uma urocultura positiva além de sintomas ou nitritúria, enquanto no caso de Raz (1993) apenas requeria sintomas e piúria. Pela escala de Jadad atribuiu-se a pontuação de 2 (má qualidade) a Eriksen (1999) e 3 (qualidade razoável) a Raz (1993).
Assim, verifica-se que dos EC, nos quais as várias publicações se baseiam, apenas dois respondem à pergunta inicialmente estabelecida segundo o modelo PICO e avaliam resultados orientados para o doente, sendo, contudo, de qualidade razoável ou inferior de acordo com a escala de Jadad. Apresentam ainda discrepância na intervenção, assim como na definição dos resultados; utilizam amostras populacionais relativamente pequenas e tempos de seguimento também relativamente curtos.
Conclusões
Face ao exposto, conclui-se que os EC que se enquadram nos objetivos deste trabalho e sustentam a evidência atual são poucos e de qualidade insuficiente. Apresentam também discrepância não só da intervenção (diferentes estrogénios, assim como diferentes formulações e dosagens), como nos resultados que avaliam, sobretudo em relação à definição de ITU, a qual se baseia num conjunto de critérios clínicos e/ou laboratoriais variável. Ademais, apesar da maioria das RS e NOC se sustentarem nas mesmas fontes bibliográficas, as recomendações e respetivas forças são, ainda assim, divergentes, provavelmente refletindo as limitações da evidência disponível. Assim, atribui-se uma força de recomendação B, de acordo com a escala SORT da American Family Physician, relativamente ao uso de estrogénios tópicos na mulher em pós-menopausa para a prevenção de ITU recorrentes. Desta forma, são necessários mais estudos de elevada qualidade, de metodologia homogénea (tipo de estrogénio, formulação e dosagem, definição de ITU recorrentes na população e de definição de ITU nos outcomes) e com maiores amostras e períodos de seguimento, que suportem a evidência de melhoria de resultados orientados para o doente. Por fim, de referir que este estudo teve como objetivo a comparação da intervenção a placebo, sendo, no entanto, importante comparar com outros tratamentos igualmente considerados na profilaxia de ITU recorrentes (e.g., antibioterapia).