Introdução
O III par craniano, também conhecido como nervo oculomotor, é formado por dois tipos de fibras nervosas:
• Parassimpáticas (externas). Inervam dois músculos intrínsecos do olho: o ciliar e esfíncter da pupila;
• Simpáticas (internas). Inervam músculos extrínsecos do olho, o elevador da pálpebra superior e quatro músculos extraoculares: reto superior, reto interno, reto inferior e pequeno oblíquo).
Juntamente com os nervos troclear (IV par, que inerva o reto lateral) e abducente (VI par, que inerva o oblíquo superior), o III par é responsável pela inervação dos seis músculos extraoculares que permitem os movimentos oculares.1-3
Etiologia
As causas mais frequentes são: isquemia microvascular dos vasa nervosa (25% dos casos; sendo as principais a diabetes e hipertensão), aneurismas (17%), traumatismo crânio-encefálico (13%) e neoplasias (11%). As restantes causas correspondem a 14% dos casos, sendo que a etiologia é desconhecida em 20% dos doentes.2
Epidemiologia
A paresia do III par constitui uma patologia rara (quatro casos por 100.000 pessoas). A incidência é igual nos dois sexos. A faixa etária mais afetada é aquela acima dos 60 anos.
Clínica
• Ptose (86% dos casos): decorrente da paralisia do elevador da pálpebra superior.
• Infraducção e abdução ocular: por ação do reto lateral e do superior oblíquo, que permanecem intactos.
• Diplopia: secundária ao desvio ínfero-externo do olho afetado, levando a que a imagem incida num ponto extrafoveal; contudo, a ptose pode funcionar como uma barreira visual e impedir que o doente se aperceba da visão dupla.
• Pupila fixa e midriática: devido ao atingimento do músculo ciliar e do esfíncter pupilar, respetivamente; ocorre nas paresias completas.
• Dor ocular/palpebral: pode ocorrer nas paresias de causa isquémica, de forma intensa.
As lesões que afetam o nervo oculomotor podem ser uni ou bilaterais (mais raras), isoladas ou complexas (quando envolvem outros nervos cranianos). No caso das lesões isoladas, estas podem ser completas ou incompletas, consoante o tipo de fibras nervosas atingidas, de acordo com a sua localização:
• Paresias totais/completas (43% dos casos): há envolvimento da musculatura intrínseca e extrínseca (ou seja, das fibras parassimpáticas e simpáticas, respetivamente) e o reflexo pupilar não é preservado. Ocorre porque as fibras parassimpáticas, mais periféricas, são logo afetadas quando ocorre uma compressão externa, como nos aneurismas da artéria comunicante posterior, tumores cerebrais ou hérnias cerebrais internas.
• Paresias parciais/incompletas (57% dos casos): com atingimento apenas das fibras simpáticas mais internas, afetando só os músculos extrínsecos do olho, poupando assim a função pupilar e de acomodação. Acontece nas lesões microisquémicas (diabetes, hipertensão, aterosclerose cerebral, arterite temporal e miastenia gravis).1-2,4
Avaliação complementar
• Exames imagiológicos. Perante uma situação aguda de paresia do oculomotor é mandatória a rápida realização de exames de imagem arteriográficos: angiografia por tomografia computadorizada (angioTC), angiografia por ressonância magnética (angioRM) ou angiografia de subtração digital, podendo ser necessária a realização de mais do que um exame nos casos mais complexos.
• Exames laboratoriais. Perante uma suspeita de etiologia vascular deverão ser avaliados os fatores de risco cerebrovasculares, com a medição da tensão arterial e estudo analítico: hemograma, glicemia em jejum, HbA1c e VS. Nos idosos será pertinente excluir arterite de células gigantes, com PCR, VS e biópsia da artéria temporal.
De referir que a presença de fatores de risco vasculares suporta, mas não confirma, uma etiologia isquémica, uma vez que estes são muito frequentes na população geral, mas pode ser outra a causa da paresia do nervo oculomotor.2
Tratamento
• Médico. Indicado nas paresias agudas e nos doentes com mais de 50 anos com antecedentes de diabetes ou hipertensão. Na maioria dos casos opta-se por uma atitude expectante, com tratamento sintomático da dor e diplopia, uma vez que não existe terapêutica médica específica que altere a história natural da doença. Os anti-inflamatórios (ibuprofeno) são os analgésicos de primeira linha. Relativamente à diplopia, quando o ângulo de divergência em relação ao eixo visual é grande poderá ocluir-se temporariamente o olho afetado com um penso ou lente de contacto opaca. Quando o desvio é menor opta-se por aplicar um prisma de Fresnel vertical e/ou horizontal nas lentes dos óculos. Também podem ser administradas injeções de toxina botulínica no reto lateral, prevenindo assim o desvio lateral do olhar.1-2
• Cirúrgico. Aconselha-se nas ptoses ou diplopia que não melhoram em 6-12 meses. O objetivo da cirurgia do estrabismo é permitir o alinhamento do olhar em posição primária, assim como proporcionar uma visão única binocular, o que deverá ocorrer antes da correção da ptose palpebral para prevenir a diplopia. Está também indicado o tratamento neurocirúrgico dos aneurismas saculares.1-2
Prognóstico
A maioria das paresias incompletas melhora parcialmente em quatro semanas e recupera totalmente no intervalo de três meses. Nos casos em que não se verifica uma recuperação total dentro de 12-16 semanas deverá ser colocada outra hipótese diagnóstica.
Nos casos secundários, a outra patologia de base (aneurismas saculares, infiltração meníngea infeciosa ou neoplásica), o prognóstico já se poderá agravar. No caso particular dos aneurismas saculares (a etiologia mais grave), a sua rutura pode levar a uma hemorragia subaracnoideia maciça, com complicações neurológicas severas e até a morte.1-2
Pretende-se com a descrição deste caso alertar para a importância do médico de família na continuidade e articulação de cuidados, atuando como provedor do utente. É primordial o seu papel na gestão da pluripatologia, o que por vezes evidencia a excessiva burocratização e complexidade do sistema de saúde. Este caso clínico é também importante do ponto de vista pedagógico para a prática clínica em cuidados de saúde primários, pois chama a atenção para uma complicação possível da diabetes: a paresia do III par craniano, que exige uma pronta atuação perante a sua suspeita.
Descrição do caso
Senhora de 55 anos, solteira, 12º ano de escolaridade, reformada por invalidez (escriturária de contabilidade), da classe social média de Graffar. Reside com o pai, do qual é vítima de abuso psicológico, pertencendo a uma família com um Apgar de 3 (com disfunção acentuada). Mantém também uma relação conturbada com a mãe. Sem irmãos.
Embora apresente bom estado geral, trata-se de uma diabética tipo 1, de difícil controlo metabólico (HbA1c: 10% a 27/06/2019, com valores 10-12% pelo menos desde 14/02/2013), com diagnóstico desde os sete anos de idade, já com complicações microvasculares (retinopatia com hemorragia vítrea - seguida em consulta de oftalmologia no hospital de referência) e macrovasculares (ateromatose carotídea assintomática); AVC sem sequelas e enfarte agudo do miocárdio com supradesnivelamento ST, condicionando insuficiência cardíaca com FEVE diminuída, com necessidade de implantação de CDI. A utente não possuía previamente uma equipa de saúde familiar atribuída e também havia deixado de ser seguida em consulta de endocrinologia, tendo sido por isso novamente referenciada. De entre a extensa lista de problemas que apresenta destacam-se os seguintes antecedentes patológicos (Tabela 1):
Atualmente encontra-se medicada com insulina glargina 26U id (noite) e insulina lispro 3U 3id (e mais 1U por cada incremento de 50mg/dL de glicemia se esta > 150mg/dL). Apresenta ainda como medicação crónica: ácido acetilsalicílico 100mg id, atorvastatina 40mg id, carvedilol 6,25mg 2id, pantoprazol 20mg id, levotiroxina 0,112mg id, levetiracetam 500mg 2id, diazepam 5mg 2id, quetiapina 100mg id e venlafaxina 150mg id.
A 12/05/2019, e em contexto de síndroma gripal, refere início súbito de dor ocular e supraciliar à direita, com os seguintes sintomas associados, também a nível do olho direito, visão turva, diplopia e fotofobia. Nesse mesmo dia dirigiu-se a um serviço de urgência convencionado, tendo tido alta medicada apenas para o quadro infecioso com paracetamol 500mg + cafeína 65mg 3id SOS e levocetirizina 5mg 2id, 10 dias. Embora já resolvida a clínica respiratória, por não apresentar melhoria das queixas oculares, a 14/05/2019 recorreu a consulta de intersubstituição na sua UCSP e teve alta com a recomendação de aplicar dexametasona 1mg/mL + neomicina 5mg/dL colírio 2 gotas 3id e tomar paracetamol 1000mg 2id SOS. Por manutenção das queixas oftalmológicas, a 16/05/2019 (ou seja, quatro dias após o seu início) foi atendida em consulta aberta pela sua médica de família. Nesse dia, ao exame objetivo evidenciava ptose (bordo palpebral superior sobre o eixo visual) e exotropia do olho direito de novo na posição primária do olhar, com restrição nos movimentos oculares de adução e infraversão/supraversão. À inspeção não evidenciava outras alterações, nomeadamente secreções purulentas nem olho vermelho, e o olho esquerdo apresentava-se normal. Relativamente aos reflexos pupilares apresentava pupilas pouco reativas, em miose fixa bilateralmente, com a pupila direita irregular. Negava traumatismo crânio-encefálico, outros sinais focais de novo ou alteração de consciência. Foi então referenciada ao serviço de urgência, onde foi observada pelas especialidades de oftalmologia e neurologia. Do exame neuroftalmológico aí efetuado há ainda a destacar a ausência de defeitos de campo periférico por ameaça e de inatenção visual; a acuidade visual bilateral sem correção de 8/10, com lente intraocular bilateral na câmara posterior e na fundoscopia marcas de laserterapia no fundo ocular bilateralmente, sem evidência de neovasos ativos, incluindo ausência de rubeose da íris. Ao exame neurológico exibia também prova de Barré com flexão e queda à direita, hemi-hipostesia álgica direita e défice motor distal na mão direita (antigos e já conhecidos), bem como hipostesia flutuante (por vezes à esquerda, por vezes à direita, no mesmo território).
A angioTC-CE efetuada no serviço de urgência revelou: “ausência de lesões endocranianas de natureza expansiva com tradução densitométrica. Identifica-se área de ténue hipodensidade e de Iimites mal definidos paraventricular frontal à direita, junto à transição corticomedular, de significado inespecífico, podendo ser vascular, sugerindo-se avaliação complementar por RM para melhor esclarecimento. Algumas imagens lacunares tálamo-capsulares à direita, vasculares ou espaços perivasculares alargados, igualmente melhor caracterizados por RM. Ateromatose calcificada nos sifões carotídeos, significativa para o grupo etário. Sem desvios da linha média, sem conflito no foramen occipital. Sistema ventricular adequado. Acentuação difusa dos sulcos, sem predomínio focal ou lobar. O estudo angioTC-CE assim efetuado não revelou anomalias vasculares nos planos obtidos, designadamente aneurismáticas ou vasculares malformativas e em particular afetando a porção posterior do polígono de Willis. Emergência fetal da artéria cerebral posterior esquerda, variante anatómica”. A angioRM cerebral não foi realizada.
Tendo em conta a apresentação clínica, os seus antecedentes de diabetes e os achados da angioTC-CE (que permitiram excluir eventuais causas de compressão extrínseca do nervo oculomotor, como neoplasias, aneurismas ou anomalias vasculares malformativas) foi-lhe diagnosticada paresia do nervo oculomotor de etiologia microvascular, tendo tido alta para o seu médico assistente e ficando com consultas de oftalmologia e neurologia agendadas para cerca de um mês depois (26 e 27/06/2019, respetivamente), onde já era seguida previamente.
Em consulta programada com a médica de família a 21/05/2019 apresentava ainda quadro clínico praticamente sobreponível, como sucedeu nas consultas de reavaliação de oftalmologia e neurologia. Contudo, a 10/07/2019, novamente em consulta com a médica de família, apresentava já alguma melhoria das queixas, especialmente da exotropia e diplopia, sendo que a remissão espontânea se verificou oito semanas após início do quadro.
Após a ocorrência da paresia, e até ida a consulta de endocrinologia, foi intensificado o regime insulínico, com aumento das unidades de insulina glargina de 26U para 30U à noite, e reforçada a necessidade de adesão ao esquema de insulina rápida. Embora a doente não seja hipertensa, foi solicitada também a automedição da pressão arterial, que revelou valores médios normais diurnos: 128/84.
Comentário
A complexidade clínica de alguns doentes, ainda que relativamente jovens, constitui um verdadeiro desafio na prática clínica em medicina geral e familiar, como este caso retrata, pela necessidade de gestão de sérios e inúmeros de problemas de saúde. Revela-se não só um desafio em termos técnicos, bem como exige uma gestão eficiente da nossa agenda e da do utente. Registou-se, por exemplo, a necessidade de ao longo da prestação de cuidados referenciar a utente a diversas consultas hospitalares, algumas das quais onde era previamente seguida, mas por lacunas organizacionais dos diferentes serviços acabou por perder seguimento (como é o caso da sua diabetes), com prejuízo para a utente e contribuindo em muito para a sobrecarga burocrática sentida no dia-a-dia pelo médico de família. Contudo, cabe ao médico de família ser o coordenador dos cuidados a prestar, interagindo com as restantes especialidades, no superior interesse do utente. Além disso, embora a diabetes mellitus tipo 1 seja tradicionalmente de seguimento hospitalar, o médico de família é o médico assistente por excelência do seu utente, devendo conhecê-lo profundamente e acompanhá-lo no seu percurso de vida, vigiando e zelando pelo seu estado de saúde.
Por outro lado, a doente não tem apoios de uma rede familiar de apoio para lidar com os seus graves problemas de saúde, recusando para já uma eventual ajuda institucional.
Este caso evidencia ainda o facto de nem sempre as manifestações clínicas ocorrerem na realidade tal como se encontram descritas na teoria: esta doente não apresentava midríase (embora a pupila afetada se encontrasse irregular), o que indiciaria uma paresia incompleta do nervo oculomotor (de causa isquémica, como foi assumido). Porém, o reflexo pupilar encontrava-se alterado, o que já apontaria para uma eventual paresia total do nervo.
O facto da hipertensão e a diabetes serem as principais etiologias da paresia do III par craniano reforça a tónica da importância do controlo dos fatores de risco cardiovasculares, numa lógica de prevenção primária e secundária − como acontece neste caso. Numa tentativa de melhorar o controlo dos fatores de risco cardiovasculares foi intensificado o regime insulínico e a aumentada a vigilância da tensão arterial.
Por fim, a paresia do nervo oculomotor é uma manifestação pouco frequente de neuropatia diabética, mas com que devemos estar familiarizados, uma vez que os cuidados de saúde primários podem (e devem) ser o primeiro contacto e a entrada no sistema de saúde. Acarreta consigo elevado prejuízo funcional e estético para o doente, mas felizmente é uma condição potencialmente reversível. Contudo, pode ser o indício de situações potencialmente fatais, como seja um aneurisma sacular, o que acentua a importância do elevado grau de suspeição clínica e pronta atuação e orientação na presença de sinais de alarme de novo, como ptose, infraducção e abdução ocular, pupila fixa e midriática, diplopia e dor ocular.