Introdução
O número total de doenças raras é cada vez maior. No seu conjunto, as doenças raras afetam cerca de 6 a 8% da população, estimando-se que em Portugal existam cerca de seiscentas a oitocentas mil pessoas portadoras.1-2 A verdadeira dimensão do problema não é conhecida. O peso social é significativo e atinge, para além dos doentes, familiares e outros conviventes.1 Conjugam-se, assim, fatores desfavoráveis, como a raridade, a gravidade e a sua variedade, requerendo esforços multidisciplinares, a fim de permitir que os doentes sejam tratados, reabilitados e integrados na sociedade de forma mais eficaz.1
O mesotelioma peritoneal maligno é exemplo de um tumor raro, agressivo e heterogéneo, com uma incidência anual estimada de 2.500 casos em todo o mundo.3 Apresenta clínica inespecífica, incluindo dor abdominal, alterações dos hábitos intestinais, massas palpáveis a nível abdominal ou ascite,3 sendo um desafio diagnóstico e, consequentemente, terapêutico. Dadas as opções terapêuticas limitadas na doença avançada, o prognóstico permanece reservado, com uma média de sobrevida estimada de um ano.3
O caso clínico apresentado seguidamente revela a importância do papel do médico de família como elo de ligação com os cuidados de saúde secundários, partindo da suspeição de uma doença grave e possivelmente rara, no auxílio, na dificuldade diagnóstica e na gestão do problema, através de uma abordagem multidisciplinar, permitindo, assim, a referenciação precoce e especializada. Numa outra dimensão, e através de uma abordagem biopsicossocial, auxilia no acompanhamento ao doente e família, pelas implicações negativas na qualidade de vida e dinâmica familiar. Tem como objetivo também demonstrar a partilha de informação e comunicação entre profissionais de saúde, numa tentativa de contrariar a lacuna da informação perante um diagnóstico raro.
Descrição do caso
Homem de 78 anos, caucasiano, reformado de bombeiro, casado, que pertence a uma família nuclear, no estadio VIII do ciclo de Duvall e classe social média-baixa (Figura 1). Doente totalmente independente (escala de Barthel com 100 pontos), apresenta antecedentes pessoais de hipertensão arterial, excesso de peso (IMC 26,7kg/m2), hiperuricemia, dislipidemia, hiperplasia benigna da próstata e diverticulose, diagnosticada por colonoscopia em 2016, com plano nacional de vacinação atualizado. Sem hábitos alcoólicos e tabágicos e com antecedentes familiares irrelevantes. Doente apenas seguido nas consultas semestrais programadas de hipertensão com o médico de família, considerado pouco utilizador dos cuidados de saúde primários.
[13 junho 2018]
Recorreu à consulta de vigilância de hipertensão no centro de saúde (CS) e referiu queixas persistentes de distensão e dor abdominal nos quadrantes superiores, anorexia, náuseas com vómitos pós-prandiais e astenia com um mês de evolução. Ao exame objetivo apresentava mucosas coradas e hidratadas, normotenso, apirético, sem gânglios linfáticos palpáveis, com auscultação cardiopulmonar sem alterações e sem edemas periféricos. À palpação abdominal objetivou-se abdómen mole e depressível, com desconforto à palpação do flanco direito, sem sinais de irritação peritoneal ou massas ou organomegálias presentes, com ruídos hidroaéreos de timbre e frequência normais. Apresentava hérnia inguinal à direita. O registo biométrico compreendia um peso de 62,5kg, altura 1,56m, correspondente a IMC de 25,7kg/m2. Foi feita investigação laboratorial: hemograma com leucograma, creatinina, transaminases, glicemia em jejum, ionograma, sumária de urina, eletrocardiograma e endoscopia digestiva alta (EDA).
[10 julho 2018]
Dirige-se à consulta aguda do CS por manutenção das queixas de dor abdominal, generalizada, tipo moinha, anorexia, fadiga e perda de peso. Traz carta do serviço de urgência (SU), onde tinha recorrido em 04/07/2018 pelas queixas supracitadas, mas com um pico febril associado. Realizou radiografia torácica e abdominal sem alterações, mas apresentava uma PCR de 18,2mg/dL. Teve alta medicado sintomaticamente. Ao exame objetivo atual apresentava-se hemodinamicamente estável, com uma perda ponderal de aproximadamente 8% em dois meses (IMC 24,6kg/m2). A palpação abdominal era dolorosa nos quadrantes superiores, sem outras alterações. Traz também os resultados do estudo da anemia e apresentava uma ferritina de 620ng/ml. Por suspeita de diverticulite aguda é novamente referenciado ao SU.
[11 - 13 julho 2018 (internamento na cirurgia geral)]
O doente fica internado dois dias para estudo da dor abdominal, onde realizou ecografia abdominal sem alterações e TC abdomino-pélvica que revelava heterogeneidade e densificação mesentérica mais evidente no hipocôndrio direito, envolvendo o cólon e íleo, associado a derrame pleural nas goteiras parapielocólicas e apresentava formações ganglionares mesentéricas dispersas sem critérios de adenomegálias e derrame pericárdico. Cumpriu antibioterapia com meropenem e teve alta medicado com cefuroxima 500mg. Foi pedida nova colonoscopia em contexto hospitalar, com marcação de consulta de cirurgia geral para outubro de 2018.
[31 julho 2018]
Por contacto com a esposa apura-se que mantém queixas de mal-estar geral e náuseas, tendo sido novamente medicado sintomaticamente.
[06 setembro 2018]
Volta à consulta aguda, acompanhado pela esposa, por agravamento do mal-estar geral e astenia. A esposa mostra-se muito preocupada com a deterioração clínica e procura esclarecimento do quadro. Ao exame objetivo apresentava-se pálido, com aspeto emagrecido, com uma perda ponderal superior a 10% do peso inicial (IMC 23,4kg/m2) e hipotenso. Apesar do ajuste terapêutico com interrupção dos anti-hipertensores é pedido novo controlo analítico e imagiológico: hemograma com fórmula leucocitária, ferritina, PSA total, TSH, PCR, VS, ecografia abdominal e pélvica e ecocardiograma.
[25 setembro 2018]
O doente traz os exames complementares de diagnóstico realizados: Hb 11,8mg/dL, microcitose e hipocromia; ferritina 379ng/ml; VS 66ng/ml; PCR 91,2mg/dL. TSH e PSA total sem alterações. Ecografia abdominal com fina lâmina de derrame peri-esplénico a valorizar por TC e ecografia pélvica com alterações compatíveis com HBP. O ecocardiograma evidenciava derrame pericárdico mínimo, circunferencial, sem repercussão sobre a dinâmica cardíaca. Vem acompanhado pela esposa e neta, a quem é também realizada uma explicação dos resultados e esclarecimento de dúvidas acerca do quadro clínico. Após ponderação do custo-benefício opta-se pelo pedido de uma RMN abdominal, que aceitam.
[25 outubro 2018]
Consulta de saúde do adulto marcada pelo médico de família, realizada após consulta de cirurgia geral, onde traz a seguinte informação clínica: “Refere queixas esporádicas de dor abdominal sem localização específica. Apetite e peso mantido nos últimos dois meses. Nega náuseas.” É trazido também o resultado da RMN, onde apenas é visível o derrame pericárdico. Foi marcada nova consulta de reavaliação para 29/11/2019 e continua a aguardar a marcação de colonoscopia. A esposa reporta que o doente iniciou queixas de ansiedade e insónia, que o doente confirma, pelo que é medicado com mirtazapina 15mg ao deitar e é feito novo ajuste da medicação de base.
[29 novembro 2018]
O doente vai à consulta de cirurgia geral e o médico de família contacta telefonicamente o médico assistente hospitalar para melhor esclarecimento e discussão do quadro clínico e reportar os exames complementares de diagnóstico realizados no ambulatório. É acordado o cancelamento da colonoscopia e a referenciação à consulta de medicina interna para despiste de doenças autoimunes ou infeciosas.
[06 dezembro 2018]
Pelo agravamento do estado geral do doente recorre novamente ao CS, acompanhado pela esposa, que demonstrava grande ansiedade. Contacta-se telefonicamente o serviço de medicina interna para nova discussão do caso clínico, uma vez que a consulta foi marcada para janeiro 2019. Como combinado faz-se despiste de tuberculose, com referenciação ao Centro de Diagnóstico Pneumológico de Coimbra. Pede-se novo hemograma, PCR, VS, serologias e marcadores tumorais. O doente e a esposa são informados e esclarecidos acerca do novo plano.
[21 dezembro 2018]
Novo contacto da esposa ao médico de família, após o doente ter iniciado queixas de sudorese noturna com uma semana de evolução, associada a um pico febril de 38°C. O doente é chamado ao CS e observado. Ao exame objetivo: hipotenso, apirético, taquicárdico (FC 105bpm), aspeto emagrecido, mas com estabilidade do peso, pálido, sem adenopatias palpáveis, com auscultação cardiopulmonar normal. Na palpação abdominal mantinha o desconforto à palpação profunda, mais localizada à fossa ilíaca direita. Por agravamento do estado geral progressivo e suspeita de possível contexto infecioso ou neoplásico é novamente enviado ao SU ao cuidado da cirurgia geral.
[21 dezembro 2018 a 05 janeiro 2019 (internamento em cirurgia geral)]
Novo internamento para estudo, onde realizou TC abdomino-pélvica com tradução de carcinomatose peritoneal. Realizou biópsias para melhor esclarecimento, tendo sido diagnosticado com mesotelioma peritoneal maligno. Referenciado para o IPO do Porto por sugestão dos colegas de cirurgia.
[26 fevereiro 2019]
Reavaliação no CS em consulta programada. O doente mantinha apetite, negava dor e náuseas. O peso estava estabilizado (IMC 23,4kg/m2). Na Escala de Barthel apresentava atualmente 65 pontos, classificando-se como parcialmente dependente. A esposa tornou-se a sua principal cuidadora. Medicado apenas com analgesia e aumentada a dose de mirtazapina para 30mg por ansiedade e insónia. Aguarda consulta no IPO do Porto.
[05 março 2019 (IPO Porto)]
Realizou PET Scan com apresentação de disseminação peritoneal e adenopática maciça. O caso foi discutido em equipa multidisciplinar e, associado à marcada degradação do seu estado geral nas últimas semanas, foi orientado para tratamento sintomático, não havendo indicação para cirurgia citorredutora com quimioperfusão hipertérmica.
O doente manteve-se assintomático apenas com analgesia em SOS. Foi mantido o acompanhamento em consulta de cirurgia geral e no CS. Foi fundamental o auxílio na integração à sua nova realidade e ao apoio familiar, bem como a escuta ativa do doente. O elo de ligação com os cuidados de saúde secundários foi mantido e ponderava-se contactar a equipa de paliativos hospitalar. O doente faleceu em maio de 2019, ao cuidado da sua esposa. Mantém-se o apoio à família na fase de luto, com avaliação constante de possíveis sinais de alarme ao luto patológico.
Comentário
As doenças raras representam um problema de saúde particular na atualidade,1 estando muitas vezes associadas à dificuldade diagnóstica e, consequentemente, terapêutica. Neste contexto, sintomas relativamente comuns podem esconder doenças raras subjacentes, podendo levar a erros de diagnóstico, sendo desperdiçadas as oportunidades de intervenções atempadas, contribuindo para o atraso na sua abordagem.1
O caso clínico supracitado é considerado um exemplo das consequências nefastas referidas, que muitas vezes podem ter um desfecho potencialmente grave. Assim, pretende-se alertar os profissionais de saúde para a possibilidade de uma entidade rara, onde se reconhece a sua dificuldade diagnóstica, evidenciada tanto pela clínica inespecífica como pela ausência de alterações suspeitas nos exames complementares de diagnóstico.
Este caso clínico realça as consequências da incerteza e atraso diagnóstico associados, tanto a nível pessoal como a nível da dinâmica familiar e social, obrigando a uma reorganização e levando à centralização da doença. Ademais, avalia a importância do apoio familiar, não só no acompanhamento do doente, mas no auxílio diagnóstico, exemplificado pela persistência da esposa no contacto com os cuidados de saúde perante a degradação do estado clínico geral e progressivo do doente. Por outro lado, realça o seu novo papel de cuidador, no auxílio da reabilitação e no acompanhamento na fase final de vida.
Apesar das dificuldades notórias na abordagem e orientação do doente existe evidência de uma boa comunicação entre o doente, a família e os profissionais, uma vez que é essencial para garantir que o plano individual de cuidados seja consensual, que todos possuam a informação correta para a tomada de decisão e que o doente tenha o apoio especializado adequado.
De salientar a importância do médico de família como elo de ligação com os cuidados de saúde secundários, não só na suspeição perante uma doença rara, mas no auxílio diagnóstico e investigação, com pedido de exames complementares de diagnóstico, permitindo o apoio na gestão do problema e na partilha de informação e conhecimento. Sob outra perspetiva, para além do papel clínico, demonstra também o papel no apoio familiar e social, que beneficia pela proximidade ao doente e maior acessibilidade, compatível com as competências nucleares que lhe são atribuídas. Colaborou não só na escuta ativa e apoio psicológico, mas também na participação no processo de reabilitação, integração e educação do doente e da sua família, visando a adaptação à nova realidade. Posteriormente, mantém o acompanhamento familiar, no apoio ao luto, bem como a continuação da promoção da saúde e do bem-estar, ajudando-os a lidar com eventuais incapacidades.
Apesar da dificuldade com que o profissional de saúde se depara na prática clínica na abordagem e suspeição deste tipo de entidades raras, e uma vez que nos cuidados de saúde primários se lida maioritariamente com doenças de maior prevalência, o médico de família pode ser o primeiro a detetar quando algo se afasta da normalidade pelo conhecimento do contexto biopsicossocial do doente.