Introdução
A gripe é uma doença aguda viral que afeta predominantemente as vias respiratórias. Em regra, ocorre anualmente, sendo de maior prevalência durante o Inverno. Atinge todas as faixas etárias, incluindo pessoas em idade escolar e produtivas, e ainda condiciona importantes custos económicos e sociais. Nas grandes epidemias, o número de cidadãos atingidos num curto espaço de tempo pode ser elevado, o que coloca em risco o normal funcionamento da sociedade. A gripe tem também outro efeito altamente pernicioso dado influenciar negativamente a evolução e situação clínica de doentes portadores de doenças crónicas, nomeadamente as doenças respiratórias, levando a um considerável aumento da morbilidade e da mortalidade.1-3
As doenças respiratórias são mais frequentes e graves nos períodos de epidemia da gripe, sobretudo em populações vulneráveis como as pessoas em situação de sem-abrigo. A vacinação contra a gripe reduz a morbilidade e mortalidade associadas às infeções respiratórias virais e/ou bacterianas.1-2
A população em situação de sem-abrigo apresenta um maior risco de desenvolvimento de complicações graves secundárias face à infeção pelo vírus influenza do que a população em geral, atendendo à elevada prevalência de doenças crónicas. A acessibilidade aos cuidados de saúde, a monitorização da doença e o índice de literacia em saúde inadequados diminuem o controlo da saúde deste grupo vulnerável, nomeadamente a procura ativa em vacinar-se contra o vírus influenza.3
Estar em situação de sem-abrigo não constitui por si só indicação para se proceder a vacinação para gripe sazonal.1,5 De qualquer modo, grande parte da população em situação de sem-abrigo está incluída em determinado grupo considerado prioritário à vacinação, nomeadamente aquelas com alto risco de desenvolver complicações após infeção gripal. Este grupo inclui os indivíduos com idade igual ou superior a 65 anos, particularmente se residentes em lares, centros de acolhimento ou outras instituições e os portadores de doenças crónicas cardiovasculares, pulmonares, renais, hepáticas, hematológicas, metabólicas, neuromusculares ou imunitárias.5 Também se aconselha a vacinação às pessoas com idade entre os 60 e os 64 anos.5
Constata-se que existem várias barreiras à utilização dos serviços de saúde por parte desta população, desde o estigma e a discriminação decorrentes da situação em que se encontram, às suas comorbilidades, à situação social precária em que vivem até à desconfiança das pessoas nos cuidados de saúde.5-7 O trabalho de rua por equipas profissionais remuneradas e de voluntariado, que privilegiam uma relação de proximidade e de confiança, tem sido importante na redução das desigualdades. Neste sentido, em novembro de 2015 um conjunto de equipas de apoio a pessoas em situação de sem-abrigo participou, em parceria com a Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, numa campanha para administrar a vacina contra a gripe à população em situação de sem-abrigo.
O objetivo principal desta pesquisa foi identificar os critérios de elegibilidade para vacinação da gripe sazonal das pessoas em situação de sem-abrigo de Lisboa durante uma campanha de vacinação. Os objetivos secundários foram avaliar o impacto desta campanha e aferir sobre melhorias na prestação de cuidados a esta população.
Material e métodos
Participantes
Os critérios de inclusão, para selecionar e convidar as pessoas em situação de sem-abrigo a participarem na pesquisa, consideraram a definição das orientações da European Typolog of Homelessess and Housing Exclusion (ETHOS).8-9 Assim, foram considerados dois grupos de estudo, nomeadamente: 1) pessoas sem-teto, a viver no espaço público, alojadas em abrigo de emergência ou em habitação inadequada e insegura, em local precário (local que devido às condições em que se encontra permite uma utilização pública, como: carros abandonados, vãos de escada, entradas de prédios, entre outros); e 2) pessoas sem-casa, encontrando-se em alojamento temporário destinado para o efeito, mais concretamente equipamento que acolha pessoas sem acesso a um alojamento permanente e que promova a sua reinserção.8
Incluídas as pessoas em situação de sem-abrigo de Lisboa vacinadas durante a campanha de vacinação para a gripe sazonal, realizada entre 30 de novembro e 6 de dezembro de 2015. A vigilância foi realizada até final de junho de 2016.
Recrutamento
Encaminhada para esta campanha por sete entidades, uma das quais dedicada ao apoio periódico de saúde de rua formada por elementos na área de medicina, enfermagem, técnica de saúde, entre outros. Após o consentimento informado foram confirmados os dados em processo hospitalar. O acompanhamento da população em situação de sem-abrigo consistiu em saídas de rua periódicas e observações urgentes.
Iniciativa coordenada pela Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo, em parceria com associações, nomeadamente a Associação VOXLisboa, Associação Novos Rostos Novos Desafios, Associação Nacional de Tuberculose e Doenças Respiratórias e Associação de Assistência de São Paulo, para realizar esta campanha. Foram contactados diversos abrigos e instituições que trabalham com a população alvo desta campanha a fim de facilitar e gerir a intervenção.
Realizou-se formação a todos os profissionais envolvidos na campanha de vacinação, destacando-se as seguintes temáticas: vantagens e desvantagens da vacina, como administrar a vacina, contra-indicações, procedimento perante uma possível reação adversa (incluindo o choque anafilático/reações), partilha e esclarecimento de dúvidas. Inicialmente, também foi necessário dar a conhecer as técnicas de abordagem, de recolha de dados e treinar todas as pessoas envolvidas.
Instrumentos de vigilância
Trata-se de um estudo transversal. Recolheram-se dados sobre características demográficas, condições e estado de saúde, hábitos nomeadamente etanólicos, tabágicos e toxicófilos, entre outros. Considerou-se bronquite crónica como a presença de tosse e expectoração durante pelo menos três meses em cada dois anos consecutivos. Para diagnóstico de hipertensão arterial, diabetes mellitus tipo 2 e hiperlipidémia foram incluídas todas as pessoas que apresentavam os critérios clínicos ou sob medicação, conforme definido internacionalmente.10-14
Conforme estudos anteriores, estabeleceu-se como patologia periarticular o conjunto de situações que representaram inflamações ao nível dos tendões e estruturas adjacentes a uma determinada articulação que se podem, direta ou indiretamente, relacionar com a realização de uma determinada atividade. Admitiu-se osteoartrose, ou simplesmente artrose, ao grupo de condições que levaram a sintomas e sinais articulares que estão associados a defeitos da integridade da cartilagem articular, além de modificações no osso subjacente e nas margens articulares, podendo ou não estar associados a inflamação, pelo menos na sua fase inicial.10
Para o diagnóstico de doenças mentais (esquizofrenia e depressão) e quadros infeciosos (tuberculose, vírus da imunodeficiência humana - VIH, vírus da hepatite B - VHB e vírus da hepatite C - VHC) foram considerados os casos em que foi possível confirmar o diagnóstico em avaliações por psiquiatria ou analíticas respetivamente fornecidas ou por consulta de dados de saúde após consentimento das pessoas acompanhadas.10 Considerou-se infeção respiratória em todos os quadros sugestivos diagnosticados por equipa médica e registados no acompanhamento clínico das respetivas entidades nos três anos que antecederam o presente estudo.
As doenças crónicas foram avaliadas conforme as orientações para vacinação definida pela Direção-Geral de Saúde (DGS) (Tabela 1).
Análise dos dados
Avaliaram-se, do ponto de vista demográfico, 382 pessoas em situação de sem-abrigo, das quais 269 se conseguiu proceder a uma avaliação clínica mais completa. Assim, desta análise mais detalhada excluíram-se os doentes que se perderam no acompanhamento. Todas as pessoas em situação de sem-abrigo incluídas neste estudo deram o seu consentimento informado para as avaliações apresentadas.
Recorreu-se a medidas estatísticas descritivas para avaliar todas as variáveis quantitativas. Foram calculadas as médias, desvios-padrão e outros dados conforme apropriados. A análise e avaliação dos dados foi realizada com recurso a programas informáticos de tratamento estatístico, como Microsoft Office Excel® 2007 e Statistical Package for Social Sciences (SPSS) (v. 20 SPSS Inc., USA). Usou-se a avaliação com teste t student, o teste exato de Fisher e Chi-quadrado e regressão logística binária multivariável. Calculou-se o odds ratio (OR) para intervalo de confiança de 95% e significância estatística para valor p inferior a 0,05.
Resultados e discussão
Foram vacinadas 382 pessoas, que correspondem a 47% do total de população em situação de sem-abrigo na região de Lisboa (Figura 1). No entanto, encontram-se nestas condições 818 indivíduos conforme dados da Santa Casa da Misericórdia de Lisboa (SCML), o que constitui um valor significativo para a realidade em causa e parece revelar as idiossincrasias do acompanhamento de pessoas dispersas por toda a cidade e com parca adesão em saúde.15
Conseguiu-se completar o acompanhamento e avaliar 269 pessoas, que correspondem a 70% das pessoas vacinadas (Tabela 2). Importa referir que não foram registadas reações adversas à administração da referida vacina.
Das 269 pessoas vacinadas 68 (25% do total) já tinham contraído infeções respiratórias no passado; dessas, apenas 19 (28%) teriam novamente no Inverno de 2015-2016 e cinco pessoas (3%) das 201 que nunca tinham tido infeções no passado teriam nesta estação (Tabela 3). Esta redução das infeções respiratórias é significativa (valor p<0,01; OR=15,0; IC95%, 5,4-42,3). Dos indivíduos vacinados apenas três (1%) viriam a ser internados por gripe. Nestes três internamentos foi identificada influenza A (H1N1). Não se registaram óbitos.
As populações mais vulneráveis, como as pessoas em situação de sem-abrigo, apresentam um risco acrescido de morbilidade e mortalidade secundária face à infeção pelo vírus influenza, predispondo-as a complicações graves associadas à gripe.16
Sabe-se que a ausência de habitação adequada expõe as pessoas a ameaças à sua saúde, nomeadamente na facilitação da disseminação de doenças infeciosas. Para além disso, as elevadas dificuldades no acesso a cuidados de saúde adequados, associadas à desconfiança e aos receios sentidos, tem como consequência a diminuição da taxa de imunização com o vírus influenza.16
Neste sentido, foi feito um esforço para promover o acesso à saúde por parte de uma população em situação de sem-abrigo de Lisboa, através da campanha de vacinação, conseguindo-se vacinar 47% destas pessoas em situação de sem-abrigo. Face às idiossincrasias desta população, como a dispersão pela cidade de Lisboa e a constante recusa a medidas preventivas de doença, é possível considerar a campanha um sucesso. Por outro lado, dadas as inúmeras barreiras no acesso aos cuidados de saúde primários, seriam pessoas que provavelmente não teriam sido vacinadas.
Existem vários obstáculos ao acesso de cuidados de saúde por parte desta população que foram superados: estigma e discriminação decorrentes da situação em que se encontram, ausência de inscrição nos cuidados de saúde primários ou simples desconfiança e perda de laços com os centros de saúde.6-7 O trabalho de equipas dedicadas nas ruas e nos centros de acolhimento foi crucial para reduzir esses constrangimentos, tornando-se determinante para o sucesso desta campanha e para a adesão terapêutica. As relações de confiança desenvolvidas durante a atividade de cada equipa e a importância dada à comunicação terapêutica tornaram a abordagem e a intervenção mais efetivas. Considerou-se que a comunicação/acolhimento poderá ter contribuído para a boa adesão à vacinação.
A atividade gripal em 2015/2016 decorreu entre a 40ª semana de 2015 e a 12ª de 2016 e foi considerada moderada.1 Atendendo à vacinação ter ocorrido no final de novembro (49º semana), admite-se que a campanha poderia ter ocorrido mais cedo. Contudo, das pessoas vacinadas neste estudo apenas três (1%) viriam a ser hospitalizadas com identificação de infeção influenza A. Esta análise mostra um valor baixo de internamentos devido a gripe ou complicações relacionadas com esta. A estirpe mais frequentemente encontrada nesta época gripal foi o vírus A (H1N1), como acontecera nestes três casos registados.
Comparando com os dados recolhidos do Vacinómetro® pela Sociedade Portuguesa de Pneumologia e pela Associação Portuguesa de Medicina Geral e Familiar, com o apoio da Sanofi Pasteur, verificou-se que em Portugal a frequência das pessoas vacinadas acima dos 65 anos se manteve semelhante: entre os 65% na época de 2014/2015 e os 64% em 2015/2016. Em relação à frequência de vacinação para pessoas entre 60 e 64 anos variou de 35% para 34%.1-3 Embora o número de pessoas portadoras de doenças crónicas vacinadas tenha subido de 44% na época de 2013/2014 para 55% em 2014/2015, voltaria a descer para 30% na época de 2015/
2016.1-3 A elevada cobertura vacinal na população com 65 e mais anos de idade encontra-se em linha com o verificado nas épocas transactas e pode estar relacionada com o início da gratuidade da vacina distribuída à população idosa a partir da época de 2012/2013, às campanhas vacinais e à ausência de necessidade de prescrição médica. Embora se esteja acima das metas consideradas desejáveis pela Direção-Geral da Saúde para este grupo de doentes (acima de 60%),5 está a falhar outro conjunto importante de pessoas que é o dos indivíduos com doenças crónicas. Esta população apresenta todos os anos elevadas frequências de internamento e mortalidade por gripe.1-2
Em relação à cobertura vacinal das pessoas em situação de sem-abrigo face à população geral de Portugal Continental, importa aferir sobre um dos quatro grupos considerados prioritários pela Direção-Geral da Saúde. Seguindo os dados do estudo da SCML de 2015, entre os 15 e 65 anos foram vacinadas 63% das pessoas em situação de sem-abrigo (352/555) e 72% acima de 65 anos (26/36).15 Vacinaram-se, em termos relativos, mais pessoas em situação de sem-abrigo acima de 65 anos do que na população em geral.1-2
Perante o exposto, 194 (72% de 269) das pessoas em situação de sem-abrigo de Lisboa acompanhadas durante esta campanha de vacinação para a gripe sazonal tinham indicação para ser vacinadas. Considerando as 818 pessoas identificadas estarem nesta situação em Lisboa poder-se-á extrapolar que 591 seriam elegíveis. Por outras palavras, em princípio induz que faltou vacinar mais de metade das pessoas com indicação para vacinação para a gripe sazonal. Desconhecem-se estudos nacionais e internacionais sobre a cobertura vacinal das pessoas em situação de sem-abrigo com doenças crónicas. Admite-se que não ter havido maior cobertura vacinal seja uma limitação deste estudo.
Das 269 pessoas sem-abrigo acompanhadas, 179 (67%) apresentavam alguma doença crónica e 68 (25% do total) tinham antecedentes clínicos de infeções respiratórias. Constitui um número elevado, que beneficiou não só da vacinação para a gripe sazonal como de acompanhamento em cuidados de saúde primários (Tabela 2). Importa frisar que 148 (83%) das 179 pessoas com doenças crónicas tinham compromisso da função hepática, sugerindo a importância de acompanhamento em consulta de doenças deste foro.
Vários estudos mostram que as pessoas em situação de sem-abrigo apresentam patologias associadas à idade (declínio funcional, compromisso cognitivo, quedas e incontinência urinária) cerca de 10 a 15 anos mais cedo do que a população em geral.17-18 As razões possíveis que podem explicar a aquisição precoce de deficiências funcionais são várias, como o mau controlo de condições crónicas de saúde e o aumento da frequência do consumo de tabaco, álcool e o abuso de substâncias ilícitas.18-19 Da análise das pessoas em situação de sem-abrigo vacinadas de Lisboa que tiveram infeções respiratórias bacterianas e/ou virais verificou-se uma associação positiva e estatisticamente significativa de doentes com bronquite crónica, asma, hepatite viral, esquizofrenia, hipertensão arterial, tabaco e doenças infeciosas, como tuberculose, VIH e VHC. Estes grupos poderão vir a beneficiar de serem imunizados para prevenção de infeções respiratórias virais (Tabela 3).
Estar ou viver em situação de sem-abrigo de forma precária está associado a um acesso mais limitado a cuidados de saúde, a pior estado de saúde física e emocional do que a população em geral.18-20 Nesta população, e em particular nas pessoas em centros de acolhimento, as infeções respiratórias continuam a ser um problema grave.20 Pouco se conhece sobre o efeito da vacinação em pessoas em situação de sem-abrigo. De qualquer modo, num estudo multicêntrico europeu sobre o efeito da vacinação para a influenza no Inverno de 2015/16 entre as pessoas idosas foi possível prevenir aproximadamente apenas metade dos casos a necessitar de hospitalização.20 Estes dados pressupõem que as comorbilidades associadas à população idosa podem ter contribuído por não se ter conseguido uma prevenção mais alargada dos internamentos hospitalares.
Desde o sucesso desta campanha de vacinação em 2015 têm-se conseguido alargar a vacinação para a gripe sazonal às pessoas em situação de sem-abrigo de Lisboa, sobretudo graças à integração das pessoas em centros de acolhimento e ao acompanhamento regular na rua.10,20 Será preciso aumentar o acompanhamento regular das pessoas em situação de sem-abrigo nos cuidados de saúde primários, de modo a identificar mais precocemente as pessoas em risco e trabalhar na adequada gestão das suas situações crónicas. É igualmente importante desenvolver estratégias adequadas às necessidades e especificidades desta população, nomeadamente através da implementação de equipas de profissionais de saúde que permitam a educação para a saúde e referenciação aos centros de saúde ou hospitais.19-20
Ao melhorar os níveis de literacia em saúde desta população, através da implementação de várias iniciativas, contribuir-se-á para a sua capacitação de modo a fazer escolhas informadas sobre como promover e manter a sua saúde, controlar as suas doenças e/ou readquirir qualidade de vida.
Conclusões
Esta é a descrição da primeira campanha para a vacinação da gripe sazonal de pessoas em situação de sem-abrigo de Lisboa. Pela avaliação da elegibilidade deste grupo de pessoas vacinadas demonstrou-se que esta população tem elevada frequência de problemas de saúde crónicos, predispondo-os a complicações graves da gripe. Estima-se que as pessoas vacinadas foram menos de metade das que seriam elegíveis para a vacinação (194 vacinadas de um total estimado de 591 pessoas elegíveis). Seria importante não só reforçar as campanhas anuais de vacinação contra a gripe na população em situação de sem-abrigo, como também aumentar o encaminhamento desta, sobretudo os portadores de doenças crónicas, às respostas formais dos cuidados de saúde primários durante todo o ano.