Introdução
A vacinação, como se tem vindo a verificar ao longo dos anos, é eficaz e aporta benefícios significativos para a saúde pública.1 No entanto, para além da eficácia da vacina, a sua segurança é uma das principais preocupações dos profissionais de saúde e dos pais.
O episódio hipotónico-hiporresponsivo (EHH) pode surgir em qualquer criança que seja vacinada, sendo uma entidade rara e pouco conhecida. É um diagnóstico de exclusão, pelo que poderá ser difícil o estabelecimento do mesmo. Importa, por isso, sensibilizar os profissionais de saúde para a importância do reconhecimento desta entidade.
O termo EHH foi usado no final dos anos 70 para descrever um quadro de palidez, debilidade, hiporresponsividade, letargia e irritabilidade que ocorria em oito de mais de 1.500 crianças vacinadas com a vacina celular completa da difteria, tétano e tosse convulsa/pertussis (DTPw).2 A incidência reportada deste episódio após a vacinação é maior com a vacina pertussis celular, quando comparada com a vacina DTP acelular (DTPa), variando a incidência na primeira entre 57 a 250 episódios por 100.000 doses e na segunda entre quatro a 140 episódios por 100.000 administrações.2
Caracteriza-se pelo aparecimento súbito da tríade hipotonia, hiporresponsividade e alteração da coloração cutânea (palidez e/ou cianose) até 48 horas pós-imunização e em que não é identificável uma outra causa.
Os estudos de follow up publicados, baseados nos relatos dos pais e na avaliação neurológica e do desenvolvimento, demonstraram que o EHH é autolimitado e sem sequelas a longo prazo.3
Descrição do caso
Descreve-se o caso clínico de uma lactente, com antecedentes de parto eutócico pré-termo (35 semanas e cinco dias), com um peso à nascença de 2740g, perímetro cefálico de 32cm e estatura de 47,5cm. Sem antecedentes familiares de relevo, nomeadamente patologia alérgica. O período neonatal decorreu sem intercorrências, tendo cumprido o Plano Nacional de Vacinação (PNV) em vigor até aos quatro meses: à nascença, vacina contra a tuberculose (BCG) e primeira dose contra o vírus da hepatite B (VHB); aos dois meses, primeira dose da vacina pentavalente Pentavac® (DTPaHibVIP) - vacina contra a difteria, tétano e tosse convulsa/pertussis (DTPa), vacina contra a poliomielite (VIP) e Haemophilus influenzae do serótipo b (Hib) - e a segunda dose da VHB e, extra plano, a primeira dose da vacina contra o rotavírus. Todas as administrações decorreram sem intercorrências.
Aos quatro meses, cerca de seis minutos após a administração da vacina DTPaHibVIP e da vacina Prevenar® (vacina pneumocócica 13-valente), iniciou quadro de palidez cutânea acentuada, interrupção do choro, cianose labial, hipotonia e paragem respiratória. O quadro reverteu em poucos minutos após massagem cardíaca, administração de adrenalina, hidrocortisona e oxigenoterapia, tendo permanecido em vigilância sem aparecimento de novos sintomas. Posteriormente foi observada em consulta de cardiologia, onde fez ecocardiograma, tendo-se excluído patologia cardíaca.
Aos cinco meses de idade foi referenciada à consulta de imunoalergologia do Hospital D. Estefânia, com a hipótese diagnóstica de reação anafilática à vacina DTPaHibVIP e/ou à vacina pneumocócica 13-valente. Atendendo à suspeita de reação de hipersensibilidade às vacinas efetuou testes cutâneos por picada (concentrações de 1/10 e 1/1) e intradérmicos (concentração de 1/100) com as mesmas, que foram negativos.
Foi-lhe administrada a vacina DTPaHibVIP em ambiente hospitalar sem intercorrências, tendo ficado internada para vigilância durante 48 horas, pelo facto de este tipo de reação poder ocorrer até às 48h pós-administração.
Os pais recusaram a administração da vacina pneumocócica 13-valente.
A criança sempre apresentou um desenvolvimento normal, de acordo com a idade, tendo retomado o PNV, nomeadamente a terceira dose da VHB, a primeira dose da VASPR, a vacina da meningite C e a Infanrix Hib® (DPTa, Hib), sem reações adversas. As administrações foram realizadas no local habitual (hospital privado, onde era acompanhada por pediatra), com um período de vigilância de 30 minutos, como está preconizado, e sem necessidade de vigilância adicional.
Comentário
Na literatura existem poucos estudos ou relatos de casos clínicos de EHH, quer devido à sua baixa ocorrência quer pelo facto de provavelmente não serem reportados de forma sistemática.
Os autores basearam o seu diagnóstico na tríade de sinais referida previamente e na exclusão de outras causas. Não foi realizada investigação adicional, nomeadamente laboratorial, pois esta não é habitualmente útil na confirmação do diagnóstico.
A relação de causalidade entre o aparecimento dos sintomas e a administração da vacina tem por suporte a proximidade temporal entre o início da reação e a administração da mesma, ou seja, o quadro desenvolveu-se imediatamente após a vacina ter sido administrada. Na literatura está descrito que os sintomas ocorrem habitualmente cerca de três a quatro horas após a imunização, podendo, no entanto, ser imediatos, como o que ocorreu no presente caso, ou mais tardios (até um período de 48h pós-vacinação).3-5
Relativamente à persistência dos sintomas, a resolução do quadro ocorreu após alguns minutos, não sendo possível assegurar que a recuperação teria sido espontânea,3-4,6 pois ocorreu intervenção terapêutica com administração de fármacos para o tratamento de uma possível anafilaxia, para além da execução de massagem cardíaca.
A maioria dos casos conhecidos ocorrem até aos dois anos, tal como no presente caso, embora estejam descritas ocorrências em crianças mais velhas.3 O EHH também tem sido associado à febre, sendo esta reportada apenas em cerca de um terço dos casos,3 pelo que a ausência de febre nesta criança não permite excluir o diagnóstico.
De facto, o diagnóstico diferencial com outras entidades é importante, nomeadamente com o episódio sincopal, o estado ictal ou pós-ictal, a patologia cardíaca com débito cardíaco reduzido (arritmia, doença cardíaca congénita), intoxicação, patologia endócrina ou metabólica e a anafilaxia,1,5 em particular nas crianças mais velhas.
O mecanismo fisiopatológico ou a patogénese implicada no EHH permanecem desconhecidos, podendo ter uma etiologia multifatorial com fatores associados à criança, assim como à própria vacina.1-3 Num estudo publicado sobre o risco de EHH após a vacinação por pertússis,7 este último é considerado como um episódio vasomotor, sendo desconhecidos os fatores responsáveis pelo seu desencadear. No mesmo estudo é referido que a vacinação nos membros inferiores pode favorecer o EHH comparativamente com a administração nos membros superiores, uma vez que nos primeiros está implicada uma resposta imune ao nível dos nódulos linfáticos para-aórticos e retro-abdominais, podendo conduzir a uma vasodilatação da circulação abdominal através de mediadores vasoativos.7
Os episódios reportados têm sido associados a diversas vacinas, nomeadamente à vacina da difteria, do tétano, Hib e VHB. No entanto, mais de 90% dos casos reportados foram associados às vacinas que contêm pertussis, em particular, à vacina celular completa.1-3,5 Após 2005, com a introdução da vacina DPTa, que contém menos toxina, a percentagem de reações locais e sistémicas e o número de eventos adversos reportados diminuiu.7-8
No presente caso clínico, o EHH foi associado à administração das vacinas DTPaHibVIP e pneumocócica 13-valente. Apesar de existir na literatura, tanto quanto seja do conhecimento dos autores, apenas um caso clínico associado à vacina pneumocócica 13-valente,5 ambas as vacinas devem ser consideradas como potenciais agentes implicados.
Em relação aos fatores de risco, existe uma tendência para o EHH ocorrer após as primeiras doses,1,3 não parecendo existir associação com a idade gestacional4 ou o sexo.3 Nos Estados Unidos, o Vaccine Adverse Event Reporting System encontrou um discreto predomínio do sexo feminino (53%) associado a EHH. Em contrapartida, na Holanda foi encontrado um predomínio do sexo masculino.3
A American Academy of Pediatrics e o Advisory Committee for Immunization Practices consideravam inicialmente o EHH como uma contraindicação para a administração de futuras vacinas com o antigénio pertussis. Desde 1991, o EHH é considerado uma precaução e não contraindicação para futuras imunizações.4 No presente caso clínico, e em concordância com outros descritos, as subsequentes administrações das vacinas decorreram sem intercorrências.
Apesar da gravidade da reação, o prognóstico é bom, ocorrendo recuperação completa em todos os episódios reportados até ao momento, sem sequelas a longo prazo. Num estudo de caso-controlo na Holanda, que incluiu 101 crianças com EHH, verificou-se uma taxa baixa de recorrência deste após doses subsequentes da vacina pertussis e um crescimento e desenvolvimento normais no período de follow up após o episódio.2,5,9 Um estudo na Suécia obteve resultados semelhantes após 18 meses de avaliação.2,5
O presente caso clínico evidencia conformidade com a literatura publicada relativamente à duração e benignidade dos episódios e ao facto de se retomar o esquema de vacinação sem intercorrências.
Atendendo à escassez de dados publicados, os autores propõem que a vacinação destas crianças, após o EHH, decorra com as seguintes precauções: a administração da dose subsequente da vacina implicada deverá ser feita em ambiente hospitalar, com um período de vigilância sobreponível ao período de tempo que decorreu entre a administração da vacina e a sintomatologia, após o EHH, respeitando um mínimo de 12 horas, pois a maioria destas reações tende a ocorrer neste espaço de tempo;4 a administração de qualquer outra vacina imediatamente após o EHH também deve ser feita em ambiente hospitalar, com um período de vigilância um pouco superior ao habitual, de uma hora. Após a administração, e confirmada a tolerância às vacinas, dever-se-á retoma o esquema de vacinação no local usual e com as medidas de vigilância de 30 minutos.
Em conclusão, é importante que todos os profissionais de saúde estejam atentos para o reconhecimento desta entidade e a reportem, não devendo a mesma ser considerada contraindicação para futuras imunizações, mas conduzir à adoção de uma conduta ponderada que permita prosseguir o esquema de imunização recomendado, com o maior grau de cumprimento e sucesso.