Introdução
A prevenção da doença é uma das pedras basilares do trabalho do médico de família (MF), que o distingue de outras especialidades médicas. A WONCA Europa, com o apoio e colaboração da Organização Mundial da Saúde, em 2002, definiu várias competências nucleares do MF, sendo uma delas a abordagem abrangente, que inclui a “promoção da saúde e do bem-estar através da aplicação adequada de estratégias de promoção da saúde e de prevenção da doença”.1 Mais do que prevenir a doença, o MF deve promover a saúde, incentivando estilos de vida saudáveis, aproveitando todas as oportunidades de contacto, quer em consultas de rotina quer em consultas de seguimento de patologias crónicas.
No contexto comunitário e de proximidade em que trabalha o MF, a promoção da saúde e a prevenção primária da doença são de mais fácil aplicação e um dos trunfos de que dispõe. A prevenção primária consiste em reduzir a incidência de doença na população, diminuindo os fatores de risco que causam doença.2 Entre o trabalho assistencial de resposta às necessidades dos utentes da sua lista, o MF deve despender do seu tempo para pôr em prática aquilo que o define: prevenir! Podem ser realizadas sessões de educação para a saúde em grupos definidos, sempre adaptando os conteúdos e métodos ao público-alvo. E isto é que é ser MF no seu todo, com uma visão holística do utente/família. É certo que este nível de prevenção pode também ser executado em contexto de consulta, com especial destaque na consulta de saúde infantil, saúde da mulher, acompanhamento de diabéticos e hipertensos. A vacinação tem aqui também especial importância, diminuindo a mortalidade infantil e erradicando muitas doenças infeciosas,3 devendo por isso ser incentivado o seu cumprimento. Este é um dos maiores orgulhos da medicina geral e familiar, que enaltece o importante papel do trabalho em equipa que aqui se desenvolve: MF, enfermeiro de família e secretário clínico.
O MF tem ainda um papel fundamental na deteção precoce de doenças, através da realização de rastreios. Os rastreios têm como principal objetivo o diagnóstico de doença em pessoas assintomáticas.2 E aqui surgem muitos debates e controvérsias que dividem a classe médica. A desinformação em saúde e a criação de ideias erradas, fomentando o medo na população, são comuns, fazendo com que procurem cuidados médicos muitas vezes motivados pela realização de check-ups completos, crentes que assim assegurarão a manutenção da sua saúde, simultaneamente tranquilizando-os ou desculpabilizando-os de possíveis erros nos seus estilos de vida. Podemos estar, através da utilização indiscriminada de análises clínicas ou exames de imagem de rotina, a fomentar práticas pouco saudáveis. É certo que os exames complementares de diagnóstico podem estar normais, mesmo na presença de morbilidade, o que pode fazer com que as pessoas ignorem sintomas de alerta, sobrevalorizando a normalidade dos exames. Assim, poderá existir um efeito reverso do desejado com o pedido exaustivo de exames: uma deteção ainda mais tardia de situações que poderiam ser prevenidas.
Numa revisão da Cochrane, publicada em 2019, é afirmada a inexistência de benefício da realização de check-ups gerais à população geral, associadamente a um aumento de intervenções diagnósticas e terapêuticas, por vezes desproporcionais ao risco clínico, em pessoas assintomáticas.4 Existe pouco ou nenhum efeito na mortalidade total, por cancro e, provavelmente, cardiovascular com os check-ups, bem como na diminuição de eventos cardíacos e cerebrais isquémicos fatais e não-fatais. É reforçado o benefício em realizar atividades preventivas e testes clinicamente motivados em situações específicas, nomeadamente no acompanhamento e monitorização de pessoas com elevado risco cardiovascular. O benefício da realização de check-ups universais, muitas vezes fomentado por grupos privados, não é suportado pela melhor evidência científica do momento.
O benefício de testes de rastreio é variável. O rastreio do cancro da próstata não reduz a mortalidade-específica por essa causa, podendo até causar dano ao indivíduo pelo excesso de exames de diagnóstico invasivos e tratamentos desproporcionais ao problema.5 A pesquisa de sangue oculto nas fezes reduz a mortalidade por cancro colorretal, embora aumente consideravelmente o número de exames invasivos em pessoas saudáveis.6 Assim, o MF deve, mediante um acordo com o utente, escolher o que melhor se ajusta em cada caso, evitando a globalização de exames com pouca evidência.
Para além disso, é importante não cair no erro de ceder a tratar fatores de risco, correndo o risco de criar doença. Somos muitas vezes questionados sobre a pressão arterial e pressionados a medicar para obter valores «normais», mesmo quando estamos perante utentes de baixo risco cardiovascular com pressão arterial ligeiramente acima do recomendado. Mesmo as recomendações médicas não são coerentes entre si, o que dificulta ainda mais o trabalho do MF. Uma investigação realizada de 1998 a 2015 em adultos (18-74 anos) com hipertensão ligeira (pressão arterial não tratada de 140-159/90-99mmHg), sem antecedentes de doença cerebrocardiovascular,7 demonstrou que nestes indivíduos a instituição de terapêutica anti-hipertensiva não diminui a mortalidade nem a doença cardiovascular. Ao invés, o tratamento está associado ao aumento de efeitos laterais, nomeadamente hipotensão, síncope, anomalias eletrolíticas e lesão renal aguda. Existe discrepância entre este estudo e as guidelines, uma vez que as últimas se baseiam em grupos de elevado risco cardiovascular, fazendo recomendações generalizadas para os grupos de baixo risco e, por isso, não podendo ser aplicadas de forma global nos cuidados de saúde.
Muitas vezes o MF tende a exercer medicina defensiva, perdendo-se muitas vezes a essência da verdadeira Medicina, baseada na história clínica e exame físico, ao invés dos exames complementares de diagnóstico (complementares e não essenciais ao diagnóstico!); com foco na educação para a saúde e prevenção da doença e tratamento das situações que assim o justifiquem, ao invés da procura incessante de fatores de risco e tratamento dos mesmos, sem benefício na morbilidade e mortalidade. Nisto se baseia o conceito de prevenção quaternária: identificação dos indivíduos em risco de excesso de tratamentos, protegendo-os de intervenções médicas invasivas, diminuindo os danos causados pela medicina.8-9 Deve ser evitada a prática de disease mongering, muitas vezes incentivada pelas agências farmacêuticas e outras instituições privadas. Algumas decisões clínicas são realizadas com alguma incerteza, nomeadamente na prestação de cuidados preventivos e curativos. Enquanto na prestação de cuidados preventivos essa incerteza poderá ser aceitável pelo benefício na saúde do doente, o mesmo não se aplica aos cuidados preventivos, sendo neste último caso imprescindível que os benefícios se sobreponham aos riscos.9
Por tudo o que foi exposto, é fácil perceber a dicotomia vivida diariamente pelo MF. Por um lado, o utente que pretende a realização de estudos exaustivos mesmo que assintomático, achando que isso o beneficia; por outro, o conhecimento da evidência mais recente por parte do MF que coloca de parte essa prática. Assim, é premente o investimento na literacia em saúde da população, dotando-a de conhecimentos e ferramentas sempre com o objetivo e o foco na melhoria da saúde do indivíduo, das famílias e da comunidade.