Introdução
A doença mão-pé-boca (DMPB) é uma infeção aguda autolimitada, de etiologia vírica, causada mais frequentemente por vírus da família coxsackievirus (CV) e enterovírus (EV).1-2 Embora estejam mais frequentemente implicados o CVA16 e o EV71, outros vírus coxsackie A, como CVA6, CVA9 e CVA10, podem também estar associados a esta patologia.1,3
É uma doença exantemática muito frequente na infância, sobretudo nos primeiros cinco anos de vida, podendo, no entanto, atingir também adultos, mais frequentemente imunodeprimidos.1,4-5 Embora cerca de 11% dos adultos expostos fiquem infetados, menos de 1% desenvolve manifestações clínicas da doença.1 Quando ocorre no adulto imunocompetente, deve-se suspeitar do envolvimento de uma estirpe mais virulenta, como o CVA6.1-2
A doença acomete mais frequentemente indivíduos do sexo masculino.1,6 Outros fatores associados são: residência em meio rural ou outros meios de elevada densidade populacional, condições higieno-sanitárias precárias, populações migrantes, manipulação oral de brinquedos e baixo rendimento familiar.4 A atopia é considerada um fator de risco para o aparecimento da doença em adultos.2
A DMPB é altamente contagiosa entre crianças, contrariamente ao que se verifica em idade adulta.2 A transmissão é maior durante a primeira semana da doença pelo contato próximo com o indivíduo doente, com as suas fezes, secreções ou com objetos manipulados pelo mesmo. A fase de contágio dura até ao desaparecimento das lesões vesiculo-bolhosas, pelo que o evitamento ocupacional deve ser mantido até à resolução completa destas.1,7 Sabe-se também que o vírus é excretado nas fezes por várias semanas,1,4 pelo que é muito importante a adoção de medidas que diminuam o risco de contaminação dos conviventes, bem como de pessoas que prestem cuidados ou partilhem espaços com o doente.4,7
O curso da doença é maioritariamente autolimitado, com resolução entre sete a dez dias, pelo que o tratamento de suporte é suficiente.1,8
Estudos sugerem uma forte associação entre o aparecimento desta patologia e as mudanças climáticas, verificando-se uma maior incidência na Primavera e no Verão.1,4 A exceção é a doença causada pelo CVA6 que, por sua vez, parece ocorrer com maior frequência no Inverno.2
O quadro clínico típico caracteriza-se pelo aparecimento de um enantema oral doloroso, seguido de lesões cutâneas nas palmas das mãos e plantas dos pés, de morfologia, tamanho e cor variáveis.2,8Em 75% dos casos o doente apresenta concomitantemente um enantema e exantema e somente 10% apresenta apenas um dos dois.9
Os sintomas prodrómicos geralmente estão ausentes, mas podem incluir febre baixa, sintomas respiratórios altos, dor abdominal, vómitos e diarreia.2 Os casos relacionados com o CVA6 tendem a ter uma apresentação clínica atípica e mais agressiva, com distribuição mais generalizada das lesões, incluindo tronco e nádegas.1,6,10 A apresentação clínica atípica e o facto de a doença ocorrer mais em crianças pode ser um fator determinante no atraso do diagnóstico nos adultos, podendo muitas vezes ser erradamente diagnosticada como outra doença infeciosa exantemática ou reação alérgica.2,5-6,11
O seu diagnóstico é sobretudo clínico, através da observação de sinais como a febre e as lesões características nas mãos, pés e boca.1-2 A confirmação laboratorial do diagnóstico é realizada recorrendo ao isolamento e identificação do vírus, através da reverse transcription polymerase chain reaction ou indirect immunofluorescent assay, com amostra colhida por zaragatoa da orofaringe e de, pelo menos, duas vesículas e/ou por zaragatoa retal, principalmente em utentes que não apresentem vesículas, ou através da identificação de anticorpos neutralizadores do vírus no soro dos pacientes.1-2,5-6,12 No entanto, na maioria dos casos o recurso a estes exames é dispensável, quer pelo custo acrescido quer pela falta de acessibilidade ao exame [sobretudo em cuidados de saúde primários (CSP)] quer pelo prognóstico favorável da doença.5,12
As complicações desta patologia devem ser tidas em conta e poderão apresentar-se desde desidratação ou sobreinfeção bacteriana até meningite, encefalite ou miocardite.6,8 Apesar de raras, em determinadas populações, como em indivíduos imunodeprimidos ou recém-nascidos, as complicações associadas à DMPB podem condicionar risco de vida.7-8 Por se tratar de uma doença tipicamente benigna, de curso autolimitado e sem complicações ou sequelas frequentes, ainda não foi desenvolvida uma vacina.6
O tratamento da DMPB é sintomático e o prognóstico é, na maioria dos casos, favorável, com tendência à cura espontânea, sem sequelas, crosta ou cicatrizes, no período de sete a dez dias.1-2,5 No entanto, pela diversidade de vírus que podem estar na sua génese, a ocorrência de infeção não confere imunidade, pelo que pode haver uma recorrência do quadro ou reinfeção.12
O objetivo deste artigo é relatar um caso de DMPB num indivíduo adulto imunocompetente, alertando para a possibilidade deste diagnóstico numa faixa etária de atingimento menos frequente e contribuir para a celeridade diagnóstica e evicção de sobremedicação desnecessária.2
Descrição do caso
Apresenta-se o caso de um homem de 35 anos de idade, caucasiano. Natural e residente no concelho da Praia da Vitória. Tinha o 12º ano de escolaridade e trabalhava como assistente técnico. Era casado e pertencente a uma família nuclear na fase II do ciclo de Duvall, de classe social média-alta, segundo o Índice de Graffar.
Como antecedentes pessoais apresentava obesidade de grau III, rinite alérgica e história de varicela aos cinco anos de idade, sem outros antecedentes médicos ou cirúrgicos. Não tinha necessidade de medicação crónica e negava alergias medicamentosas conhecidas.
Recorreu à sua médica de família, de forma não programada, por quadro de pápulas pruriginosas nas palmas das mãos bilateralmente, com dois dias de evolução, associadas a odinofagia ligeira. Sem febre objetivada, alteração do padrão alimentar ou de produtos de uso diário, sem toma de medicamentos e outros sinais ou sintomas. Referia ter o plano nacional de vacinação atualizado e negava viagens recentes, contacto com doenças potencialmente contagiosas e comportamentos de risco para doenças sexualmente transmissíveis (DST). Referia também ter estado em casa a cuidar do filho de 15 meses, com diagnóstico de DMPB, há cerca de sete dias.
Ao exame físico constatavam-se pápulas circulares, de cerca de cinco milímetros de maior diâmetro, associadas a lesões de coceira nas palmas das mãos (Figura 1). No exame da orofaringe observava-se ligeira hiperemia dos pilares amigdalinos e petéquias do palato mole.
Foi considerado como diagnóstico mais provável o de DMPB, tendo em conta a apresentação clínica e o contexto epidemiológico. Foi aconselhada a evicção laboral e o contacto com os coabitantes, o reforço da higiene oral e das mãos, a desinfeção frequente de objetos utilizados, a alimentação leve e sem comidas ácidas ou salgadas. Foi medicado com bilastina 20mg de 12/12h, paracetamol 1g de 8/8h, se febre ou dor, e adicionalmente ibuprofeno 400mg de 8/8h, caso a sintomatologia persistisse, com paracetamol isoladamente, aconselhado repouso, reforço da hidratação oral e a vigilância de sinais e sintomas de agravamento até à reavaliação clínica três dias depois.1,13-14
Dois dias depois regressou ao centro de saúde por agravamento do exantema nas palmas das mãos (Figura 2) e com extensão às plantas dos pés e à região perioral.
O exame físico mantinha-se sobreponível, à exceção de temperatura subfebril (37,4°C de temperatura auricular) e extensão das lesões às plantas dos pés (Figura 3) e região perioral (Figura 4).
Embora se mantivesse como diagnóstico mais provável a DMPB, solicitaram-se análises laboratoriais para exclusão de diagnósticos alternativos. O doente foi tranquilizado, foram mantidos o tratamento e as recomendações anteriores.
Foi reavaliado uma semana depois, referindo melhoria do prurido e sem queixas de novo. Ao exame físico, o doente encontrava-se apirético e notava-se destacamento da epiderme das palmas das mãos e plantas dos pés (Figura 5) e onicomadese das unhas das mãos e pés, sem surgimento de novas lesões. Os resultados analíticos revelaram leucocitose ligeira, sem alterações nas restantes linhagens, proteína C reativa de 6,8mg/L, velocidade de sedimentação de 26mm, VDRL negativo e serologias virais para o vírus da imunodeficiência humana (VIH) 1 e 2 negativas.
Assumiu-se quadro clínico em resolução e foram mantidas as medidas de suporte e prevenção de contágio e recorrência, como a evicção de contacto com pessoas doentes.
Comentário
Neste artigo apresenta-se o caso de um adulto com apresentação clínica típica de DMPB. Tratava-se de um doente do sexo masculino, com um quadro clínico de início na Primavera, que apresentava também história de atopia e contacto com uma criança diagnosticada com DMPB, fatores estes que estão descritos como preditores positivos para o seu diagnóstico, apesar da idade atípica.1,4,6,13 Como previsto na história natural da doença, o doente desenvolveu hiperemia e petéquias no palato e exantema pruriginoso nas mãos nas primeiras 48 horas, após provável contágio a partir do filho diagnosticado com DMPB e com evolução progressiva nos dias seguintes.1,4,14 A fase descamativa e de onicomadese, que surgiram ao sétimo dia no doente apresentado, também foram descritas em relação a infeção por CVA6.1,6 O diagnóstico desta entidade é essencialmente clínico, sendo que este caso reforça a importância da investigação do contexto epidemiológico do indivíduo. Embora seja dispensável, tendo em conta a elevada probabilidade diagnóstica pela apresentação clínica típica e o contexto epidemiológico suspeito, o curso tipicamente autolimitado e sem necessidade de terapêutica dirigida e a falta de acessibilidade aos testes necessários em tempo útil nos CSP, o diagnóstico laboratorial é a confirmação absoluta da doença e da estirpe viral envolvida.1,5,15 Nos casos em que a avaliação analítica se justifica pela evolução desfavorável do caso podem ser incluídos parâmetros para avaliação da gravidade analítica da infeção, de imunodeficiência adquirida e de diagnóstico alternativos com serologias virais e pesquisa de sífilis, como foi o caso.12
O diagnóstico diferencial deve incluir a gengivo-estomatite herpética, varicela, sífilis secundária e outros exantemas virais, sendo a apresentação clínica e o contexto epidemiológico os principais diferenciadores. A gengivo-estomatite herpética, apesar de poder ser considerada pelo enantema, torna-se pouco provável, uma vez que neste caso há envolvimento concomitante das palmas e plantas, o que não acontece nesta patologia. A varicela pode manifestar-se também por um exantema maculopapular; contudo, geralmente as palmas das mãos e plantas dos pés são poupadas e as lesões normalmente apresentam-se em diferentes estadios de evolução simultaneamente. Além disso, o facto de o indivíduo já ter tido varicela em criança torna este diagnóstico ainda menos provável. A sífilis secundária caracteriza-se por um exantema maculopapular disseminado, não pruriginoso, que tende a envolver as palmas da mãos e plantas dos pés. Esta DST é uma das causas mais frequentes de úlceras orais e exantemas palmo-plantares em adultos, pelo que deve ser sempre considerada uma vez que o tratamento específico evita a evolução para outro tipo de complicações associadas à sífilis terciária. Como tal, adultos com lesões aftosas e/ou exantemas palmo-plantares, sem contexto epidemiológico sugestivo de outra etiologia, devem ser questionados quanto à presença de fatores de risco para DST e excluir a possibilidade de infeção sifilítica através do teste de VDRL, facilmente obtido em CSP. O facto de o indivíduo não ter comportamentos sexuais de risco nem aparente clínica de sífilis primária prévia tornam esta hipótese menos provável, o que acaba por ser excluída com um VDRL negativo.1-2,5,16-19
Em CSP, onde não é possível um diagnóstico confirmatório imediato, as hipóteses de diagnóstico são geradas perante a história clínica e o exame físico do doente, obedecendo a uma hierarquia de probabilidades para as mesmas. A continuidade de cuidados e a proximidade dos mesmos, possibilita, na maior parte dos casos, reavaliar o utente e as suas queixas com a brevidade necessária e em diferentes estadios da doença, tranquilizando o clínico e o utente, oferecendo uma maior segurança na abordagem, orientação e tratamento do mesmo perante um diagnóstico não imediato.
Neste caso, as queixas inespecíficas em idade atípica tornaram-se um verdadeiro desafio clínico, que foi minimizado pela existência de um forte contexto epidemiológico e pela relação de proximidade e acessibilidade que permitiu acompanhar de perto a evolução da doença e, por fim, assegurar um curso de doença benigno e compatível com o diagnóstico inicial mais provável. Perante um doente adulto, que apresenta exantema maculopapular de início abrupto das palmas das mãos e plantas dos pés, o diagnóstico de DMPB deve ser considerado.