Introdução
O carcinoma do endométrio é a neoplasia maligna ginecológica mais comum na mulher1-11 e representa cerca de 6% dos cancros no sexo feminino,1,7,11 sendo em Portugal o 5º cancro mais comum na mulher.12
Relativamente à etiopatogenia, existem dois tipos distintos de carcinoma do endométrio: tipo I ou endometrioide e tipo II ou não endometrioide. O primeiro surge em 80-90% dos casos, em mulheres mais jovens, habitualmente obesas e com antecedentes de exposição prolongada e isolada a estrogénios. Apresenta baixo risco de metastização e tem bom prognóstico, sendo o subtipo mais comum o adenocarcinoma. Por outro lado, o tipo não endometrioide ocorre em 10-20% dos casos, sobretudo em mulheres pós-menopáusicas, magras, com atrofia endometrial e sem antecedentes de estimulação estrogénica. Apresenta maior potencial de metastização e é considerado de mau prognóstico.2,4-6,13-14
Os fatores de risco para carcinoma do endométrio são: idade avançada,15 raça caucasiana,4-5 elevados níveis de estrogénios2,5 e hereditariedade (5% dos casos).13 Elevados níveis de progesterona diminuem o risco de carcinoma do endométrio.2,4-6
A maioria das mulheres apresenta sintomatologia precoce, pelo que 90% dos carcinomas são diagnosticados através de hemorragias uterinas anormais. Os cancros em estadios avançados podem manifestar-se através de dor pélvica, perda ponderal, distensão abdominal, saciedade precoce e alterações dos hábitos intestinais ou urinários.2-6,13 O exame físico geral, assim como o exame ginecológico são frequentemente normais, exceto nas situações de doença avançada, em que ascite ou massas tumorais abdominais podem estar presentes.2,5
A avaliação inicial é feita por ecografia transvaginal2,13-14 e, se existir um espessamento endometrial superior a 4mm, é necessária a realização de uma biópsia endometrial (atualmente o método de escolha para avaliação histológica do endométrio).3-4,6
O tratamento consiste habitualmente em cirurgia (histerectomia total com salpingo-oforectomia bilateral) com ou sem linfadenectomia, eventualmente seguida de radioterapia e/ou quimioterapia; contudo, o estadiamento é o principal fator que determina o(s) tipo(s) de tratamento.6
A recorrência local ou à distância do cancro do endométrio é um dos principais problemas que ocorre sobretudo nas pacientes com carcinoma de alto risco (tipo II), pelo menos seis meses após o tratamento, sendo mais frequente nos primeiros dois a três anos.7
Neste sentido, os autores apresentam o caso de uma mulher de 74 anos a quem foi diagnosticada doença metastática nove anos após o diagnóstico e tratamento do carcinoma do endométrio, com o intuito de evidenciar o papel do médico de família (MF) no seguimento dos doentes ao longo do tempo.
Descrição do caso
M.M., sexo feminino, 74 anos, natural da Covilhã, residente em Lisboa, raça caucasiana, divorciada, reformada (era proprietária de cafetaria), quatro filhos (um filho faleceu, duas filhas vivem em Inglaterra e outra vive com a utente, mas aparentemente com relação conflituosa). Apresenta como problemas ativos osteoporose, dislipidemia mista e anomalia da glicemia em jejum. Como problemas passivos destaca-se neoplasia maligna do endométrio (adenocarcinoma mucinoso de grau 2 e estadio II), submetida a histerectomia total com anexectomia bilateral e radioterapia em 2010, mantendo vigilância semestral em consulta de ginecologia até 2016, quando teve alta assintomática e sem recidiva, passando o acompanhamento a ser feito no seu MF. Não toma medicação habitual e não possui hábitos tabágicos ou alcoólicos. Relativamente à história ginecológica, a menarca foi aos 13 anos, com ciclos menstruais irregulares, teve quatro gestações e quatro partos (G4P4), a menopausa foi aos 52 anos e não tomou terapêutica hormonal de substituição.
A 07/10/2019 deslocou-se presencialmente à sua unidade de saúde familiar, onde solicitou uma consulta de doença aguda para o seu MF por se encontrar “mais confusa desde há uns tempos” (sic). Apesar de não ser considerado motivo de doença aguda, o MF, por conhecer a doente e saber que esta não recorreria se não fosse nada urgente, aceitou o pedido de consulta. Durante a colheita da anamnese, o MF percebeu que cerca de um mês antes a utente teve quadro de início súbito caracterizado por disartria discreta, alteração da coordenação motora e posterior instalação de hemiparesia direita. Ao exame objetivo apresentou diminuição da força muscular dos membros superior e inferior direitos (grau 3 em 5) comparativamente aos contralaterais (grau 5 em 5), avaliação da sensibilidade inconclusiva e restante exame neurológico sumário sem alterações. Foi admitida como principal hipótese de diagnóstico acidente vascular cerebral isquémico em fase não aguda, pelo que se solicitaram os seguintes meios complementares de diagnóstico (MCDT): tomografia computorizada crânio-encefálica (TC-CE); holter e ecodoppler dos vasos de pescoço. Neste sentido foi iniciada terapêutica com ácido acetilsalicílico 150mg e pedida a colaboração da especialidade de fisiatria para a doente iniciar fisioterapia de reabilitação motora.
A 17/10/2019 a doente, acompanhada por uma amiga, regressou para mostrar resultados de TC-CE, que revelou “volumosa lesão nodular expansiva, polilobulada, cortico-subcortical frontal superior esquerda de contornos irregulares e com zona central mais hipodensa, traduzindo necrose. Apresenta ainda outra lesão frontal interna paramediana esquerda de menores dimensões posterior à lesão referida. Existe marcado edema perilesional e efeito de massa sobre as estruturas de linha média, sugerindo provável metástase cerebral vs glioblastoma multiforme”. Perante este resultado e por agravamento do estado neurológico, agora com prostração acentuada, a doente foi referenciada ao serviço de urgência, onde foi observada pela neurocirurgia e realizou ressonância magnética (RNM) cerebral, cujos aspetos foram compatíveis com gliobastoma multifocal frontal esquerdo, tendo sido internada. Neste contexto, a 28/10/2019 foi submetida a uma craniotomia frontal parassagital esquerda, tendo ficado totalmente assintomática, pelo que teve alta a 22/11/2019. O resultado histológico revelou metástase de adenocarcinoma bem diferenciado de provável origem ginecológica, pelo que foi referenciada para consulta de ginecologia.
A 07/01/2020 a doente teria consulta programada no MF mas, devido ao internamento e cirurgia recentes, optou-se pela realização de visita domiciliária para conforto da mesma, onde se constatou a ausência de qualquer sintomatologia neurológica e sistémica e, inclusive, a própria doente referiu ter apresentado recuperação total dos défices neurológicos logo após a cirurgia. No entanto, a sua principal preocupação consistia na falta de apoio e indiferença revelada pela filha que coabita com ela, sobretudo nesta fase de fragilidade da sua vida e do seu estado de saúde. Na tentativa de abordar esta problemática foi proposta uma consulta com a presença de ambas, a qual foi recusada pela utente.
No seguimento hospitalar em consultas de oncologia, ginecologia e neurocirurgia, para estadiamento, realizou TC-toraco-abdomino-pélvica, onde se identificou: “presença de uretero-hidronefrose esquerda moderada a grave com atraso de excreção renal, condicionado pelo envolvimento do ureter proximal por conglomerado adenopático lombo-aórtico com alguma expressão ao território ilíaco primitivo”; tomografia de emissão de positrões (PET), que demonstrou: “envolvimento ganglionar supra-clavicular à esquerda, a nível lombo-aórtico bilateral e a presença de uma metástase hepática única (segmento I)”; renograma com função renal globalmente mantida. Para reavaliação realizou nova RMN cerebral, que demonstrou lesão frontal esquerda expansiva com edema, assumindo-se resíduo/recidiva tumoral. De salientar que a utente, durante este período temporal, manteve-se sempre assintomática.
A 24/02/2020 teve consulta programada no MF para reavaliar o seu problema de saúde, onde mostrou os MCDT realizados a nível hospitalar e a medicação prescrita (dexametasona 0,5mg 3id e megestrol 160mg id), referindo que iria iniciar em breve radioterapia e quimioterapia. A doente encontrava-se assintomática, a tolerar a terapêutica farmacológica, sem grandes efeitos adversos, à exceção de discreto edema da face, decorrente de provável efeito secundário da corticoterapia. Durante a consulta mostrou estar a lidar de forma adequada com todas as informações e alterações recentes do seu estado de saúde; contudo, quando questionada acerca do relacionamento com a filha, embora tenha aparentado alguma labilidade emocional, recusou abordar o assunto, pelo que não se aprofundou o tema nesta consulta.
Comentário
O desenvolvimento de metástases no sistema nervoso central (SNC) a partir de cancros ginecológicos primários é um evento atípico ou raro, ocorrendo em 0,3 a 1,16% dos casos. Pelo facto destas neoplasias malignas serem consideradas “neurofóbicas” e dada a variedade de manifestações clínicas possíveis, o diagnóstico precoce da recidiva a este nível é atualmente um desafio, sendo expectável o mau prognóstico que a metastização cerebral acarreta.8-11,16-17
O adenocarcinoma endometrial, por ser o tipo histológico mais comum, é o tipo de cancro ginecológico que metastiza mais frequentemente para o SNC;8,10-11,16-17 contudo, a maioria destes adenocarcinomas encontra-se num grau e estadio histológicos avançados ao diagnóstico inicial (grau 3 e estadios III e IV, respetivamente).8,10-11,16 A via de disseminação mais frequente é a hematogénea,8,11,16 pelo que muitos doentes podem ter simultaneamente metastização extracerebral como parte de uma doença avançada. O tempo que decorre desde o diagnóstico inicial do carcinoma do endométrio até ao diagnóstico da metastização ao nível do SNC é variável, sendo mais comum nos primeiros três anos8-11,16 e raro depois dos cinco anos.9 Perante o encontrado na literatura, o caso descrito foi considerado um achado pela raridade da situação clínica, mas também pela manifestação tardia da metastização cerebral (nove anos depois do diagnóstico inicial) e ainda pelo grau e estadio histológicos do tumor inicial não serem os mais agressivos (grau 2 e estadio II).
As manifestações clínicas do atingimento do SNC são diversas; no entanto, as mais frequentemente descritas são cefaleias, ataxia, afasia, fraqueza localizada e convulsões.8,11,16-17 A investigação adicional é habitualmente efetuada através da realização de um exame de imagem cerebral (TC ou RMN)8,11,16que revela uma ou, na maioria dos casos, múltiplas lesões cerebrais geralmente com presença de edema, mais frequentemente localizadas nos lobos frontal, temporal e parietal e no cerebelo.11,16 O caso supracitado vai ao encontro do demonstrado pela literatura, pois nos exames de imagem da paciente foram descritas duas lesões no lobo frontal do cérebro, com edema perilesional, condicionando efeito de massa. Contudo, a doente diferiu na sintomatologia de apresentação, uma vez que não teve cefaleias, afasia e convulsões e, por isso, não foram colocadas as hipóteses de tumor primário ou metastização tumoral no diagnóstico diferencial inicial.
Em termos de prognóstico, a sobrevida média descrita varia de três a seis meses,8,11,17 mas a adoção de um tratamento multimodal (cirurgia e radioterapia e/ou quimioterapia) pode melhorar o desfecho global desta situação.8-11,17 De salientar que a doente já superou o período temporal encontrado na bibliografia, pois já passaram oito meses desde o início do quadro clínico e, neste momento, encontra-se a ser vigiada nas consultas das várias especialidades e a ser submetida a radioterapia e quimioterapia.
Quanto ao seguimento das mulheres após tratamento do cancro do endométrio, estas devem ser acompanhadas semestralmente a nível hospitalar durante os primeiros cinco anos e posteriormente, se estabilizadas clinicamente, mantêm a vigilância anual em consulta com o respetivo MF.18 Tendo por base a literatura consultada, não existe referência ao modo específico de atuação nos cuidados de saúde primários; contudo, existe indicação para pesquisa ativa de sintomatologia local e sistémica, sensibilização e envolvimento das utentes para a deteção precoce de recorrência da doença.18 Neste sentido, estas devem ser alertadas para o aparecimento de sintomatologia associada, nomeadamente: hemorragias (vaginal, urinária ou retal), dor abdominal, pélvica, na coluna ou na bacia, perda ponderal inexplicada, anorexia, tosse, dispneia e edemas dos membros inferiores. Em cada consulta médica, para além da exploração das queixas das doentes, deve ser realizado um exame ginecológico com espéculo, bem como a pesquisa de adenopatias inguinais.6,18 A citologia da cúpula vaginal não deve ser executada devido à baixa probabilidade de deteção de recorrência e os exames complementares imagiológicos devem ser ponderados de acordo com a sintomatologia das pacientes.6,18
Relativamente à deteção precoce, atualmente não existe evidência para o rastreio do carcinoma do endométrio na população em geral, pelo que a vigilância com ecografia ginecológica nas mulheres assintomáticas com fatores de risco não está recomendada.6,19-20
Por fim, as mulheres com carcinoma do endométrio têm um risco acrescido de desenvolver um segundo cancro (mais frequentemente da mama e cólon),2,6 pelo que devem ser submetidas a vigilância anual com mamografia e colonoscopia;2 no entanto, a utente não realizou estes rastreios oncológicos a nível hospitalar nem nos cuidados de saúde primários, de acordo com os registos consultados.
Em suma, o presente caso visa alertar para a ocorrência da recidiva tardia de carcinoma do endométrio, contrariando os dados existentes na literatura atual, reforçando a necessidade do seguimento destas doentes ao longo de toda a sua vida - aqui, o MF tem um papel fundamental, uma vez que presta cuidados de saúde personalizados aos seus doentes ao longo do tempo, conhecendo-os nas várias dimensões. Neste caso em particular destaca-se a importância da aceitação do pedido de consulta de doença aguda pelo MF, que conhecia o perfil não sobre-utilizador de cuidados da utente em questão, o que fez diferença na deteção precoce da recorrência da doença e na brevidade da referenciação para a especialidade adequada, reforçando também o papel importante de gestor e gatekeeper dos cuidados de saúde dos seus pacientes. Ainda no caso descrito, verifica-se que a paciente é capaz de aceitar com tranquilidade o seu problema de saúde físico; no entanto, a sua principal inquietação centra-se na falta de suporte e apoio familiar prestado por uma das filhas, evidenciando-se o conceito de dolência, ou seja, os efeitos psicossociais e o sofrimento provocado pela doença. Assim, a par com a vigilância hospitalar, constata-se que o acompanhamento longitudinal de retaguarda do MF é crucial, pois através da sua visão holística é capaz de detetar, para além dos sintomas físicos causados pelas doenças, as repercussões que as mesmas têm noutras dimensões da vida dos utentes.