Introdução
A perturbação depressiva (PD) é uma das patologias mais comuns em todo o mundo,1-2 estando a sua prevalência a aumentar.1 Em Portugal, a PD apresenta uma prevalência anual de 7,9%.3 Esta condição tem um impacto significativo no dia-a-dia dos utentes, pelo que é importante o seu correto tratamento.1
O tratamento farmacológico apresenta um papel bem estabelecido.2 No entanto, o estigma quanto à sua eficácia, custos e efeitos colaterais leva muitos utentes a não aderirem a este tipo de tratamento e a procurar alternativas, como, por exemplo, o hipericão.1,4
O hipericão, também conhecido como erva de São João, é um suplemento nutricional proveniente da planta Hypericum perforatum, habitualmente adjetivado como «natural» e muito utilizado para o alívio da sintomatologia depressiva.5 Em Portugal, este suplemento é comercializado de forma livre em farmácias, ervanárias e lojas de produtos naturais, não sendo objeto de regulamentação pelo INFARMED.6 A sua principal substância ativa, a hipericina, está isoladamente associada a uma baixa incidência de efeitos adversos;7 no entanto, esta apresenta várias interações medicamentosas conhecidas8 pelo que o seu efeito benéfico não é consensual na literatura.
Esta revisão tem por objetivo rever a evidência existente quanto à eficácia, tolerabilidade e segurança do hipericão no tratamento da PD.
Métodos
Foi realizada uma pesquisa de artigos científicos publicados em plataformas online de medicina baseada na evidência. As plataformas utilizadas foram o National Institute of Health and Care Excellence (NICE), Canadian Medical Association Infobase, PubMed - Clinical Queries, The Cochrane Library, The British Medical Journal (BMJ) - Evidence-Based Medicine, Bandolier e DARE - Centre for Reviews and Dissemination.
A pesquisa foi realizada em fevereiro de 2020 com as palavras-chave Hypericum e Depressive Disorder.
Numa primeira fase foram pesquisadas normas de orientação clínica (NOC) e artigos de revisão [revisões sistemáticas (RS) e meta-análises (MA)] publicados a partir de 2010, inclusive. Numa fase posterior foram pesquisados estudos originais (EO) publicados a partir de 2015, inclusive. Os artigos foram incluídos por respeitarem o modelo PICO (Tabela 1) e por estarem redigidos nas línguas Portuguesa e Inglesa. Artigos em duplicado foram excluídos.
Resultados
Na pesquisa efetuada obtiveram-se 13 NOC, 26 revisões e 16 EO. Após aplicação dos critérios de inclusão e exclusão foram incluídos nesta revisão duas NOC, cinco revisões (três MA e duas RS) e um EO. Os fluxogramas de seleção dos artigos podem ser consultados nas Figuras 1 e 2. O resumo dos artigos incluídos encontra-se descrito nas Tabelas 2, 3, 4 e 5.
Normas de orientação clínica
A NOC publicada em 2016 pela Canadian Network for Mood and Anxiety Treatments9 recomenda, na secção Complementary and Alternative Medicine Treatments, o uso do hipericão como primeira linha, em monoterapia, na PD major ligeira a moderada. Esta recomendação é baseada em duas RS que apresentaram resultados consistentes. Recomendam também que o hipericão pode ser usado como tratamento adjuvante de segunda linha na PD major moderada a grave, recomendação baseada em duas RS que apresentavam resultados contraditórios.
A NOC publicada pelo Scottish Intercollegiate Guidelines Network,10 em 2010, afirma não ser possível aconselhar o uso do hipericão na PD, uma vez que não existe uniformização de doses e existe risco de interação com outros fármacos, de que são exemplo os contracetivos orais. Esta recomendação é apoiada por uma RS de elevada qualidade publicada na Cochrane Library.
Meta-análises
Apaydin e colaboradores1 concluíram que o hipericão em monoterapia tem uma eficácia superior ao placebo na PD major ligeira a moderada. Esta eficácia foi demonstrada, pois os utentes a fazer hipericão foram mais respondedores ao tratamento (diminuição autorreportada dos sintomas depressivos) e apresentavam valores médios inferiores nas escalas de depressão [e.g., Escala de avaliação de depressão de Hamilton (HAM-D)] comparativamente ao placebo. No entanto, o número de utentes em remissão no fim do follow-up dos estudos não foi significativamente diferente (estudos com follow-up de quatro a 12 semanas, mediana de seis semanas). Concluíram também que os efeitos adversos do hipericão são comparáveis aos do placebo (MA de 13 ensaios clínicos aleatorizados (ECA), N=2.600). Como limitações desta MA, de referir que os estudos incluídos apresentavam heterogeneidade, alguns de baixa qualidade, avaliaram um número limitado de potenciais efeitos adversos e não foram desenhados para avaliar efeitos adversos raros. Para além disso, existiam poucos estudos a comparar os diferentes extratos e doses do hipericão.
Linde e colaboradores2 demonstraram que o hipericão tem efeitos benéficos no tratamento da PD, pois na MA em rede de 66 ECA (N=15.161) mostrou ser mais eficaz (reduções ≥ 50% e resultado final inferior a um limite fixo nas escalas de depressão) e sem efeitos adversos diferentes do placebo. As principais limitações da MA são a inclusão de doentes com diferentes tipos de gravidade da PD e com outcomes avaliados em diferentes intervalos temporais (quatro, seis ou oito semanas).
Kasper e colaboradores4 concluíram que o extrato de hipericão WS 5570, na dose diária de 900mg, é superior ao placebo na depressão major ligeira a moderada independentemente da faixa etária. Esta superioridade foi demonstrada pela maior percentagem de utentes que obtiveram boa resposta e que atingiram a remissão em relação ao placebo, diferenças com significância estatística (MA com N=1.328). Esta revisão apresentou como limitação o facto de o número de utentes incluídos no estudo com ≥ 60 anos ser relativamente reduzido (N=132), o que limita a evidência e as recomendações para este grupo etário.
Revisões sistemáticas
Sarris e colaboradores11 concluíram que existe boa evidência para o uso de hipericão na PD major. Esta conclusão baseou-se na maior eficácia demonstrada em duas MA, três RS e três ECA, apesar de outros dois ECA não o terem demonstrado. A nível da tolerabilidade, uma RS (N=35.562) mostrou que o grau de efeitos adversos é comparável ao placebo. Quanto à segurança, uma RS, dois ECA e um estudo in vitro mostraram a existência de interações farmacológicas, como a redução da concentração plasmática de alguns fármacos. Esta revisão apresenta algumas limitações, nomeadamente a inconsistência dos estudos incluídos e o facto de não terem sido comparados os diferentes extratos e doses do hipericão.
Cipriani e colaboradores12 afirmaram que apenas existem benefícios minor do hipericão no tratamento da depressão major e que provavelmente não existe benefício na depressão de longa duração. Afirmaram também que não existe evidência robusta sobre a eficácia na depressão major grave. Os efeitos adversos do hipericão são comparáveis aos do placebo (MA de 14 ECA). Quanto à segurança, os autores encontraram em duas RS evidência de interações farmacológicas, como por exemplo com fármacos antidepressivos. Esta RS incluiu estudos bastante heterogéneos, nomeadamente no que diz respeito às características das populações estudadas, instrumentos de avaliação de sintomas e preparações de hipericão utilizadas.
Estudos originais
Eatemadnia e colaboradores,13 num ECA controlado duplamente-cego (N=70), mostraram que o tratamento com hipericão é eficaz na redução dos sintomas da depressão nas mulheres na pós-menopausa. Este estudo comparou o efeito da suplementação com hipericão na dose de 990mg/dia, durante oito semanas, em relação a um placebo. De facto, o grupo suplementado com hipericão apresentou uma redução estatisticamente significativa na sintomatologia da depressão (avaliada pela HAM-D). O estudo apresenta uma amostra reduzida e um tempo de follow-up inferior à dos outros estudos (< 12 semanas). Por outro lado, não é explicado se a melhoria dos sintomas depressivos ocorre diretamente relacionada com a redução dos sintomas vasomotores ou se é uma melhoria independente.
Conclusão
O hipericão é uma planta medicinal que contém moléculas farmacologicamente ativas e com potencial terapêutico.14
São vários os possíveis mecanismos de ação, ainda que não completamente esclarecidos. Vários dos estudos incluídos4,11,13 afirmam que um dos mecanismos passa pela inibição não seletiva da recaptação de neurotransmissores (e.g., serotonina, dopamina e noradrenalina).
O presente estudo versou analisar o uso de hipericão como uma alternativa plausível quanto à eficácia, tolerabilidade e segurança nos utentes com PD que rejeitem os antidepressivos convencionais, motivo pelo qual se procedeu à comparação do uso do hipericão com o placebo.
A maioria dos estudos mostrou que existe evidência para a utilização do hipericão no tratamento da PD, ainda que não seja consensual qual a posologia, duração e extrato mais adequado.
Apesar do acima descrito, alguns estudos parecem ser consensuais quanto à eficácia a curto prazo do extrato WS 5570, na dose de 900mg/dia, na depressão major ligeira a moderada (Diagnostic and Statistical Manual of Mental Disorders (DSM)-IV).4
Pese embora a evidência que favorece o potencial terapêutico do hipericão, será também de esperar a coexistência de um potencial para interações medicamentosas e reações adversas.14
Estas formulações de plantas medicinais podem ainda apresentar variabilidade qualitativa e quantitativa das substâncias ativas,14 aspeto que poderá ter relação com o risco de interações medicamentosas referido pela maioria dos estudos incluídos.
Por outro lado, alguns estudos descrevem a possibilidade de efeitos adversos associados ao uso do hipericão, ainda que a maioria não tenha procedido à descrição dos mesmos, uma vez que não foram desenhados com esse objetivo. De notar que os efeitos adversos associados à sua utilização apenas foram mais prevalentes no grupo que utilizou hipericão, quando comparado com o grupo placebo, no estudo de Apaydin e colaboradores1 e apenas nos potenciais efeitos neurológicos resultantes do uso desta substância.
Assim, após análise dos dados verificou-se a falta de evidência consistente acerca do perfil de segurança e ainda a ausência de autorização para o uso desta substância pelas entidades reguladoras.6 Surge então um problema que será tão mais preocupante quanto maior for o consumo destas substâncias de venda livre por parte dos indivíduos com maior risco de interações medicamentosas e/ou reações adversas (doentes crónicos, idosos ou polimedicados).
Relativamente às limitações do presente estudo, importa destacar a falta de consenso científico, algo que transparece pela disparidade entre metodologias adotadas, nomeadamente na ausência de conformidade quanto às doses, tipo de extratos de hipericão, escalas/métodos de avaliação de sintomatologia, classificação da PD (DSM-IV, DSM-5, International Classification of Diseases (ICD)-9 ou ICD-10) e pelos resultados contraditórios obtidos. Além disso, nem todos os estudos incluídos efetuaram avaliação a longo prazo do uso do hipericão, o que limita a sua recomendação nesse contexto.
Assim, torna-se necessária a realização de novos estudos, com maior uniformidade metodológica e que permitam a determinação da posologia adequada, bem como quais os doentes com PD que beneficiarão da integração do hipericão na sua terapêutica.
No futuro seria interessante proceder à comparação da eficácia do hipericão com a psicoterapia, bem como com outras medidas terapêuticas não farmacológicas convencionais no âmbito da PD major.
Concluindo, os dados disponíveis favorecem o uso de hipericão como uma opção terapêutica na PD major ligeira a moderada, ainda que constitua uma opção que carece de regulamentação pelas entidades competentes.