Introdução
A zona é uma doença cutâneo-sensorial resultante da reativação do vírus varicela zoster (VZV), devido à sua latência nos gânglios nervosos sensitivos após a infeção primária causadora de varicela.1 A reativação ocorre em aproximadamente 25% dos indivíduos,2 causando uma erupção cutânea dolorosa característica, que geralmente afeta apenas um dermátomo, inicialmente com lesões maculares, progressão para vesículas e pústulas e posterior formação de crostas, seguida de cicatrização.3 Os dermátomos mais frequentemente atingidos são o torácico, trigeminal, lombar e cervical, maioritariamente de forma unilateral e sem cruzamento da linha média, ainda que qualquer área da pele possa ser afetada.1 O quadro cutâneo pode ser precedido de sintomas prodrómicos, como prurido, disestesias e dor local intensa, desde 2 a 18 dias antes do surgimento da erupção cutânea.3
Estima-se que cerca de um em cada três indivíduos terá pelo menos um episódio de zona ao longo da vida,4 com uma incidência anual na Europa a variar entre 2 a 4,6 casos de herpes zoster (HZ) por 1000 pessoas por ano, sem diferenças geográficas significativas.5 Verifica-se um incremento da incidência com a idade em estreita relação com o declínio da imunidade celular, particularmente a partir dos 50 anos, podendo atingir os 50% na faixa etária dos 85 anos.6 Para além da idade como fator de risco para o desenvolvimento de HZ destacam-se ainda a imunossupressão, na qual se inclui a infeção pelo vírus da imunodeficiência humana (VIH), transplantação, neoplasias e outras doenças com necessidade de tratamento imunossupressor, género feminino, raça caucasiana e trauma físico precedente.7
A nevralgia pós-herpética (NPH) constitui a principal complicação do HZ, definindo-se tradicionalmente como uma dor significativa de caráter neuropático no dermátomo afetado, que persiste após 90 dias do início das lesões cutâneas como resultado do dano nervoso induzido pelo vírus.8 A sua incidência é variável entre estudos, num intervalo de 5 a 30%,9 sendo fatores de risco conhecidos para o desenvolvimento de NPH a idade avançada, dor severa na fase aguda, ocorrência de pródromo e a presença de lesões cutâneas graves.10-11 Portadores de doenças crónicas, como é o caso de diabéticos e imunodeprimidos, podem apresentar maior gravidade da doença.12 A dor pode persistir durante meses ou anos e afetar negativamente a qualidade de vida dos doentes,13 existindo vários estudos publicados relativamente ao impacto económico significativo desta condição em diferentes populações.14-16 Pode ser de tal forma incapacitante ao ponto de se associar a depressão, fadiga, insónia, anorexia, inatividade física, diminuição da capacidade de concentração e isolamento social.17
O tratamento da zona tem como objetivos principais diminuir a extensão e duração dos sintomas cutâneos, assim como a gravidade da dor aguda associada e prevenir as complicações da doença.3 Os antivíricos sistémicos constituem a base do tratamento, associando-se o uso de analgésicos para o controlo da nevrite aguda.1 Os antivíricos análogos dos nucleosídeos são a primeira escolha no tratamento da zona, estando recomendado o seu uso preferencialmente nas primeiras 72 horas de aparecimento das lesões cutâneas ou mais tardiamente na presença de situações específicas, entre as quais a imunossupressão, o surgimento de novas vesículas, HZ oftálmico ou HZ ótico e disseminação cutânea, visceral ou neurológica.3,18 Outros agentes podem ser ainda considerados como opções terapêuticas, dependendo da situação clínica, como os glucocorticoides.3 No campo da prevenção existem já duas vacinas efetivas contra o HZ, apenas uma delas disponível em Portugal, estando demonstrado o seu benefício e efetividade na redução da incidência da doença e da morbilidade associada.19 O objetivo desta revisão foi procurar evidência acerca da efetividade dos fármacos utilizados no tratamento da zona na prevenção da NPH, tendo em conta a morbilidade associada a esta condição que afeta muito significativamente a qualidade de vida dos doentes.
Métodos
Para a elaboração desta revisão procedeu-se a uma pesquisa bibliográfica referente a artigos publicados entre abril de 2010 e março de 2020, utilizando os termos MeSH herpes zoster e neuralgia, postherpetic, nas bases de dados: MEDLINE/PubMed, National Guide Clearinghouse, Canadian Medical Association Practice Guidelines, Bandolier, Evidence-Based Medicine online, DARE, TRIP Database e The Cochrane Library. Foram incluídos artigos em Português, Inglês ou Espanhol, realizados em humanos, do tipo meta-análises, revisões sistemáticas, ensaios clínicos controlados e aleatorizados (ECA) e guidelines. A inclusão dos artigos na revisão baseou-se nos seguintes critérios, de acordo com o modelo PICO:20 População - adultos imunocompetentes com HZ agudo; Intervenção - tratamento com agentes farmacológicos de administração oral ou endovenosa; Comparação - placebo ou não tratamento; Outcome - incidência de NPH. Foram excluídos artigos que não fossem de encontro ao objetivo da revisão ou que não cumprissem estes pressupostos. Estudos referentes a outras modalidades terapêuticas, nomeadamente formulações tópicas no caso do HZ oftálmico e bloqueios nervosos ou estimulação por radiofrequência, foram igualmente excluídos.
Resultados e discussão
Na pesquisa inicial obtiveram-se 333 resultados, dos quais apenas sete cumpriam os critérios de inclusão. A revisão incluiu assim duas meta-análises, uma revisão sistemática e quatro ensaios clínicos controlados e aleatorizados. O processo de seleção dos artigos encontra-se pormenorizado na Figura 1. Os resultados encontram-se sumarizados nas Tabelas 1 a 5, organizados por classe farmacológica e de acordo com o tipo de estudo.
Antivíricos
Os antivíricos constituem o tratamento de primeira linha da infeção por HZ, limitando a gravidade da erupção cutânea e acelerando a resolução da nevrite aguda em comparação com o placebo.21 São ainda essenciais na prevenção de várias complicações da doença, como por exemplo a ocorrência de danos oculares decorrentes do HZ oftálmico.21 O impacto da sua utilização na prevenção da NPH tem vindo a ser estudado por alguns autores, muitas vezes com resultados contraditórios entre os estudos. Na presente revisão foi contemplada uma meta-análise de Chen e colaboradores22 relativa ao uso desta classe de fármacos, sendo que nenhum dos estudos incluídos demonstrou redução estatisticamente significativa na ocorrência de NPH. A publicação incluiu cinco artigos, todos datados anteriormente a 2000, comparando o uso de aciclovir ou famciclovir com placebo, em regimes terapêuticos de duração variável entre 7 a 21 dias. A própria definição de NPH diferiu entre os estudos, no que respeita ao intervalo de tempo decorrido entre o surgimento das lesões cutâneas e a manutenção da dor, variando entre quatro e seis meses. Dado o número reduzido de estudos englobados e das consideráveis diferenças entre os regimes terapêuticos e definição de NPH utilizada, a evidência existente permanece parca para suportar o papel dos antivíricos na redução da incidência desta complicação da doença, apesar dos seus benefícios na fase aguda. No que respeita a outros antivíricos frequentemente utilizados na prática clínica, nomeadamente o valaciclovir e a brivudina, não foram encontrados estudos incluindo a sua utilização.
Glucocorticoides
Os glucocorticoides são uma arma terapêutica muito versátil, sendo também considerados de forma controversa como adjuvantes no tratamento do HZ pelo seu potencial em reduzir a dor aguda, em acelerar a resolução das lesões e a melhorar o retorno às atividades habituais.1,11 Não devem ser utilizados isoladamente dos antivíricos, sendo que em formulações tópicas exibem um papel importante no HZ oftálmico.12 A sua eficácia na prevenção da NPH foi analisada por uma meta-análise de Han e colaboradores,23 que incluiu dois ensaios clínicos prévios a 1990. O uso de glucocorticoides durante 21 dias, com início nos primeiros sete dias das lesões cutâneas, em associação ou não com antivíricos, não se revelou eficaz na prevenção da NPH aos seis meses em comparação com o placebo.
Gabapentinoides
Os gabapentinoides fazem parte das opções terapêuticas para o tratamento da dor neuropática, pelo que a sua aplicação no tratamento da nevrite aguda associada à infeção por HZ pode ser considerada.1,18 Esta classe farmacológica está também recomendada no tratamento específico da NPH.8 Na presente revisão foram incluídos três ensaios clínicos relativos ao uso destes fármacos, sendo que nenhum deles demonstrou impacto estatisticamente significativo na prevenção da NPH. Tanto no estudo multicêntrico de Buililete e colaboradores24 como no estudo não duplamente cego de Lee e colaboradores,25 o recurso à gabapentina durante a fase aguda e nas semanas seguintes não preveniu de forma estatisticamente significativa a ocorrência de NPH em comparação com o placebo ou com a não intervenção. No que concerne à opção por pregabalina foi incluído nesta revisão um estudo de pequena dimensão de Škvarč e colaboradores,26 que comparou a utilização deste fármaco com o placebo na prevenção de NPH aos seis meses e que também não demonstrou benefício. Apesar da ausência de resultados positivos, nos três estudos citados os participantes do estudo receberam, para além da gabapentina, outros analgésicos não explícitos nos artigos, que podem de alguma forma introduzir um viés na atribuição do efeito antiálgico.
Antidepressivos tricíclicos
Tendo por base a utilização dos antidepressivos tricíclicos no tratamento da dor neuropática, a eficácia da inclusão desta classe farmacológica no tratamento da zona e consequente prevenção da NPH apresenta evidência escassa e controversa. Da pesquisa efetuada para efeitos desta revisão apenas foi encontrada uma revisão sistemática de Watson27 com referência ao uso da amitriptilina na fase aguda do HZ. O único estudo incluído nessa revisão de 2010 reporta diferenças estatisticamente significativas entre o grupo tratado com amitriptilina 25mg por dia durante 90 dias vs. placebo no que respeita à ocorrência de NPH aos seis meses. Apesar do resultado positivo estão descritas várias limitações deste estudo, nomeadamente uma significância estatística borderline, blinding questionável e ausência de racional para a prescrição ou não de antivíricos, tendo sido opção individual do médico a sua inclusão ou exclusão do regime terapêutico. A evidência relativa à eficácia dos antidepressivos tricíclicos na prevenção da NPH é, portanto, de baixa qualidade, sendo necessários mais estudos para confirmar este achado. De ressalvar ainda que esta classe farmacológica se associa a um leque de efeitos adversos que pode limitar o seu uso, sobretudo nos mais idosos.12
Vitamina C
Existe evidência de que a vitamina C pode desempenhar um papel importante na prevenção e combate a determinadas infeções, desde a constipação comum até à pneumonia.28 Inclusivamente vários estudos reportam o seu potencial papel analgésico adjuvante no tratamento da dor em várias condições clínicas, nomeadamente em doentes oncológicos ou cirúrgicos.29 Para efeitos desta revisão foi incluído um ensaio clínico de 2016 levado a cabo por Kim e colaboradores,30 que utilizou o ácido ascórbico endovenoso como parte integrante do tratamento de doentes hospitalizados com HZ, juntamente com antivíricos e analgesia que incluiu a gabapentina. A administração de ácido ascórbico no primeiro, terceiro e quinto dias de tratamento associou-se a menor incidência de NPH às quatro semanas em comparação com o placebo. Apesar de este estudo ter definido NPH recorrendo ao período temporal mais curto de todos os trabalhos incluídos nesta revisão (quatro semanas), o que poderia fazer questionar os potenciais resultados da terapêutica numa fase mais tardia, são também reportados resultados positivos na 8ª e 16ª semanas, com diferenças estatisticamente significativas comparativamente ao grupo controlo.
Embora este estudo não tenha ocorrido de forma duplamente cega, pois os investigadores tinham conhecimento se estavam a administrar placebo ou ácido ascórbico, os resultados parecem promissores e reforçam a necessidade de desenvolver mais estudos neste sentido. A vitamina C é economicamente acessível e facilmente disponível, pelo que o seu potencial impacto positivo na prevenção desta complicação é de considerar.
Conclusão
A NPH constitui a complicação mais comum do HZ, estando associada a um impacto negativo significativo na qualidade de vida dos doentes e a elevados custos em saúde. Apesar das várias classes terapêuticas disponíveis e efetivas no tratamento agudo da zona e da nevrite associada, a evidência existente revela-se insuficiente para sustentar o benefício do seu uso na prevenção da NPH. Os estudos referentes à amitriptilina e à vitamina C foram os únicos com resultados positivos; porém, apresentam limitações evidentes dada a baixa potência estatística e ausência de reprodutibilidade dos resultados. O número de trabalhos incluídos na presente revisão é reduzido, com grande variabilidade nas metodologias utilizadas, tornando necessários mais estudos neste sentido, inclusivamente com recurso a fármacos de utilização comum na prática clínica atual, tendo em conta a morbilidade e custos em saúde subjacentes a esta patologia. A dor da NPH pode ser incapacitante e de muito difícil tratamento, pelo que justificaria um maior investimento na procura de um tratamento eficaz que permita prevenir esta complicação debilitante. A sua prevenção parece passar, por enquanto, pela própria prevenção da reativação do vírus com recurso à utilização da vacina contra o HZ, com particular interesse nos doentes em maior risco de desenvolver a doença e suas complicações. Ainda assim, o seu uso permanece limitado na prática clínica, devido ao custo económico associado e à escassa divulgação das suas indicações e benefícios entre a comunidade médica.