Introdução
A hipertensão secundária (HS) é a hipertensão devida a uma causa identificável, que pode ser tratada com uma intervenção dirigida à condição subjacente.1
Estima-se que 5 a 10% dos hipertensos apresentem HS; (1)-(3 no entanto, esta prevalência pode variar consoante a faixa etária. (1)-(2 Em crianças com menos de 12 anos de idade, 70 a 85% dos casos de hipertensão são devidos a causas secundárias, diminuindo a sua prevalência a partir desta idade. (1
As etiologias mais frequentes de HS são igualmente variáveis de acordo com os diferentes grupos etários (Tabela 1). (1), (3
É comum a hipertensão primária coexistir com causas secundárias de hipertensão, (2 o que pode explicar o facto de a hipertensão poder não ser completamente revertida após a resolução da condição secundária subjacente. (2), (4)-(5 Por outro lado, a HS de longa duração, ao promover um remodelling vascular irreversível, pode contribuir para a manutenção de hipertensão residual após a remoção da causa. (2), (6 De modo a minimizar este efeito, a deteção e o tratamento precoce são fundamentais.
Em Portugal está recomendada a medição da pressão arterial a partir dos três anos de idade, apesar de a evidência atual ser insuficiente para avaliar os riscos/benefícios deste rastreio. (7)-(8 Um dos objetivos deste início precoce da avaliação é a deteção de casos de HS. (8
Como a maioria dos hipertensos é abordada ao nível dos cuidados de saúde primários (CSP), (6 é importante que os médicos de família estejam familiarizados com a identificação de situações sugestivas de HS, de modo a orientar os utentes adequadamente e reduzir a sua morbimortalidade. Por outro lado, estas causas de HS são frequentemente alvo de atualização nos seus testes de rastreio/diagnóstico, pelo que importa a sua constante revisão.
Deste modo, esta revisão tem como objetivo reunir a evidência mais recente sobre as causas de HS, nomeadamente a sua fisiopatologia, manifestações clínicas e/ou laboratoriais, diagnóstico e tratamento, bem como estabelecer o papel do médico de família na sua abordagem.
Métodos
Numa primeira fase foi realizada a pesquisa de artigos de revisão simples e sistemática em plataformas online de medicina baseada na evidência, nomeadamente na PubMed, The Cochrane Library e UpToDate, utilizando as palavras-chave Secondary Hypertension e Primary Health Care. Numa segunda fase, de forma a obter informação adicional sobre cada uma das causas secundárias identificadas, foi feita uma nova pesquisa de artigos de revisão, ensaios clínicos aleatorizados e normas de orientação clínica através das palavras-chave Obstructive sleep apnea, Renal parenchymal diseases, Renovascular hypertension, Primary hyperaldosteronism, Thyroid dysfunction, Cushing syndrome, Paraganglioma, Pheochromocytoma e Aortic coarctation68.
Ambas as pesquisas foram efetuadas em julho de 2019, tendo as mesmas sido limitadas a artigos publicados a partir do ano de 2000.
Os artigos foram incluídos com base no título, conteúdo do resumo, relevância, idioma de publicação (artigos em língua inglesa e portuguesa) e data de publicação. Por sua vez, foram excluídos artigos cuja evidência não fosse a mais recente à data da pesquisa. A recuperação manual de artigos relevantes da lista de referências bibliográficas dos artigos selecionados foi também realizada.
Esta revisão, pela sua abrangência ao nível das patologias abordadas, poderá apresentar um potencial risco de viés de seleção dos artigos. Procurou-se minimizar este risco com a seleção dos artigos após a concordância de ambos os autores.
Resultados
1. Características sugestivas de hipertensão secundária
Uma vez que não é custo-efetivo avaliar em todos os utentes hipertensos a existência de causas secundárias para a hipertensão, apenas devem ser estudados os utentes com características sugestivas, (1)-(4), (9)-(10 descritas na Tabela 2.
Perante estes achados, e após exclusão de incumprimento terapêutico, hipertensão de bata branca e pseudo-hipertensão, esta última sobretudo no doente idoso, deve ser realizado um estudo dirigido à causa suspeita. (9), (11 A extensão da avaliação de causas secundárias deve sempre depender do estado geral do utente, probabilidade de diagnóstico e ponderação dos riscos do tratamento/falta de diagnóstico. (4
2. Principais causas de hipertensão secundária
2.1. Síndroma da apneia obstrutiva do sono
A síndroma da apneia obstrutiva do sono (SAOS) é uma condição caracterizada por episódios recorrentes de apneias e hipopneias, causados pelo colapso das vias aéreas superiores durante o sono. (12 A sua prevalência é de cerca de 2-4% nos homens e 1-2% nas mulheres de meia-idade. (13 Estima-se que cerca de 70 a 90% dos utentes com hipertensão resistente (HR) apresentem SAOS. (14)-(15
2.1.1. Fisiopatologia
Na SAOS o colapso das vias aéreas provoca hipóxia e hipercapnia, que são estimuladores da atividade simpática. (15)-(16 A atividade simpática leva a fenómenos de vasoconstrição e à ativação do sistema renina-angiotensina-aldosterona (SRAA), com consequente aumento da pressão arterial. (17 A fragmentação do sono também se associa a aumento da pressão arterial, frequência cardíaca e stress oxidativo. (16
2.1.2. Manifestações clínicas e/ou laboratoriais
A SAOS é mais comum em indivíduos do sexo masculino, com idade superior a 50 anos e que apresentem roncopatia ou aumento da circunferência cervical. (10), (18
Apesar de a SAOS cursar frequentemente com hipersonolência diurna, vários estudos mostraram que apenas uma minoria dos utentes com HR e SAOS apresenta esta manifestação, (15), (18), (19), (20 o que pode estar associado à ativação crónica do sistema nervoso simpático. (18 Desta forma, a hipersonolência diurna não parece ser um fator preditivo para SAOS nos utentes com HR. (18
Outras manifestações incluem cefaleias matinais e alteração das funções cognitivas, como a concentração e memória, irritabilidade, depressão e ansiedade. (2), (16
2.1.3. Diagnóstico
Na abordagem inicial do doente com suspeita de SAOS podem ser aplicados questionários que auxiliam no seu rastreio, como o Questionário de Berlim e a Escala de Sonolência de Epworth. (16), (18 No entanto, o diagnóstico definitivo requer a realização de uma polissonografia, que permite também classificar a SAOS consoante a sua gravidade: ligeira [Índice de apneias-hipopneias (IAH) entre 5 e 15], moderada (IAH entre 16-30) ou grave (IAH superior a 30). (12), (21
É recomendado que utentes com SAOS e hipertensão realizem um ecocardiograma, de forma a avaliar as dimensões e espessura das cavidades, função sistólica ventricular e estimar a pressão da artéria pulmonar. (2
2.1.4. Tratamento
A SAOS foi identificada como a causa secundária de hipertensão mais passível de ser tratada. (15
O tratamento mais consensual é a utilização de CPAP (Continuous Positive Airway Pressure). (14)-(16 O início de prescrição do CPAP deve ser efetuado em centros de referência de medicina do sono, idealmente que integrem pneumologistas, otorrinolaringologistas, neurologistas e internistas. (22 Globalmente, o tratamento com CPAP associa-se a melhor controlo da pressão arterial, qualidade do sono e diminuição da mortalidade. (21
O uso de um antagonista dos recetores dos mineralocorticoides, como a espironolactona, pode reduzir significativamente o IAH, a dessaturação noturna e a pressão arterial, constituindo uma alternativa terapêutica. (14), (23 A adoção de um estilo de vida saudável traz benefícios adicionais no controlo da SAOS e da hipertensão. (6
2.2. Doenças do parênquima renal
As doenças do parênquima renal (DPR) incluem as doenças glomerulares, as doenças tubulo-intersticiais, a doença renal poliquística e a nefropatia diabética. (6 As DPR são a causa mais comum de hipertensão em crianças. (3 Estima-se que a sua prevalência a nível mundial esteja próxima dos 9,6%,24 estando presente em aproximadamente 2 a 10% dos utentes com HR. (2
Com o envelhecimento da população é expectável que o número de utentes com DPR aumente e, consequentemente, o número de casos de HS. (25
2.2.1. Fisiopatologia
A hipertensão surge como consequência da progressão da doença renal, em virtude do menor número de nefrónios disponíveis para filtração de água e sódio. Esta diminuição da função renal também leva a um aumento da atividade do sistema nervoso simpático e à menor eficácia dos fármacos anti-hipertensores. (14
2.2.2. Manifestações clínicas e/ou laboratoriais
As manifestações clínicas das DPR dependem da etiologia subjacente e do grau de atingimento da função renal. Importa salientar que o rim é um órgão capaz de se adaptar à perda progressiva da sua função, pelo que muitas das manifestações clínicas típicas apenas surgem quando a função renal se encontra significativamente deteriorada. (26
A poliúria pode ser uma manifestação precoce de DPR, assim como a elevação da creatinina sérica. Outras manifestações incluem alterações das características macroscópicas da urina (cor e aspeto), proteinúria, edemas, oligoanúria, fadiga, anorexia, náuseas e vómitos. (26 Em crianças, as DPR podem manifestar-se através de um atraso de crescimento. (27
2.2.3. Diagnóstico
As DPR devem ser suspeitadas perante elevação da creatinina e ureia plasmática e/ou evidência de proteinúria, hematúria ou cilindros na urina. (3), (10), (28 A ecografia renal permite avaliar sinais de cronicidade e pode fazer o diagnóstico de algumas etiologias de DPR, sendo o exame de primeira linha para investigação etiológica em crianças. (3
A investigação adicional das DPR deve ser realizada por um nefrologista, pelo que se recomenda a referenciação do utente. (6
2.2.4. Tratamento
A abordagem terapêutica da hipertensão associada às DPR deve ter por objetivo, para além da redução da pressão arterial, reduzir o risco cardiovascular e atrasar a progressão da doença renal. (28 O tratamento pode variar consoante a etiologia específica da DPR. No entanto, para a hipertensão estão recomendadas medidas dietéticas, tratamento farmacológico com um inibidor da enzima conversora da angiotensina (IECA) ou antagonista dos recetores da angiotensina (ARA) e um diurético, ou diálise em casos mais avançados. (14), (28)-(29
Os IECA/ARA estão recomendados particularmente se existir albuminúria, uma vez que reduzem a pressão intraglomerular e abrandam o declínio da função renal. (30 Elevações inferiores a 30% na creatinina plasmática são aceitáveis após a introdução do IECA/ARA. (28
Os diuréticos recomendados são os diuréticos de ansa, devendo ser administrados até ser atingida a pressão arterial alvo ou o «peso seco».29
2.3. Estenose da artéria renal
A hipertensão causada por estenose da artéria renal (EAR), também designada por hipertensão reno-vascular, é uma das causas de HS com maior potencial de reversibilidade. (10 A EAR está presente em cerca 1 a 8% da população hipertensa e em 2,5 a 20% da população com HR. (5
Em adultos jovens, especialmente do sexo feminino, a causa mais comum de EAR é a displasia fibromuscular, ao passo que na população idosa predomina a doença aterosclerótica. (3), (31 A EAR está frequentemente presente em indivíduos com doença arterial aterosclerótica. (32 No entanto, o rastreio da EAR em utentes com doença aterosclerótica que não apresentem HR ou função renal anormal não está recomendado. (2)-(3
2.3.1. Fisiopatologia
A EAR pode ser causada por doença aterosclerótica, displasia fibromuscular, arterite ou lesão ocupante de espaço com compressão extrínseca da artéria renal. (6 A diminuição do lúmen vascular condiciona hipoperfusão e isquemia renal, estimulando a libertação de renina pelas células justaglomerulares renais. (33 A libertação de renina ativa o SRAA, elevando a pressão arterial. (33
2.3.2. Manifestações clínicas e/ou laboratoriais
A EAR possui um amplo espetro de manifestações clínicas, que vão desde um achado incidental e assintomático até a um estado de hipertensão acelerada ou insuficiência renal. (14 No entanto, existem algumas manifestações particularmente sugestivas, que incluem:
Aumento agudo de mais de 50% nos níveis de creatinina sérica após introdução de um IECA/ARA; (3), (10
Hipertensão num utente que apresenta uma diferença no tamanho dos rins superior a 1,5cm; (3), (6), (10
Hipertensão grave em mulheres de idade jovem ou em utentes mais velhos com doença aterosclerótica conhecida; (3), (10), (28
Utentes com insuficiência cardíaca com fração de ejeção preservada e congestão pulmonar recorrente; (34
Auscultação de um sopro abdominal (com sensibilidade de 40% e especificidade de 99%).3
2.3.3. Diagnóstico
Perante a suspeita de EAR, o exame de primeira linha é a ecografia com doppler das artérias renais, sendo um exame de rastreio eficaz quando realizado por um operador experiente. (35 A realização de angiografia por TC (tomografia computorizada) ou RM (ressonância magnética), apesar da maior sensibilidade e especificidade, é limitada pelo elevado custo e a possível falta de acessibilidade nos CSP. (36
A angiografia da artéria renal é o gold-standard para diagnóstico de EAR, devendo apenas ser realizada em ambiente hospitalar, caso seja considerada a realização de intervenção cirúrgica ou percutânea pela cirurgia vascular. (3), (5)-(6
2.3.4. Tratamento
O tratamento recomendado para a maioria dos utentes com EAR é o controlo da pressão arterial com IECA/ARA. (37 Estes fármacos são bem tolerados pela maioria dos utentes; no entanto, devem ser iniciados em baixa dose, monitorizando a função renal uma ou duas semanas após início da terapêutica. (14), (37
Utentes que apresentem displasia fibromuscular, deterioração da função renal, hipertensão refratária ou congestão pulmonar de repetição são candidatos a cirurgia ou intervenção percutânea de revascularização da artéria renal. (38)-(39
2.4. Hiperaldosteronismo primário
O hiperaldosteronismo primário (HP) é um grupo de doenças cuja produção de aldosterona é inapropriadamente elevada para o nível de sódio plasmático, autónoma relativamente aos seus mecanismos de regulação e não suprimível pela ingestão de sódio. (40 Nas suas formas mais comuns, o excesso de secreção de aldosterona é devido a um adenoma ou à hiperplasia do córtex das glândulas suprarrenais. (41
O HP tem vindo a ser reconhecido cada vez mais como uma causa corrigível de HR, sendo estimado em 10 a 20% dos utentes com HS. (23
2.4.1. Fisiopatologia
A produção inapropriadamente elevada de aldosterona promove uma absorção excessiva de sódio, causando a expansão do volume intravascular. (42 A aldosterona é também responsável pelo desenvolvimento de rigidez arterial, disfunção endotelial e hipertrofia/fibrose ventricular esquerda, que contribuem para elevar a pressão arterial. (14), (42
2.4.2. Manifestações clínicas e/ou laboratoriais
Dever-se-á suspeitar da existência de HP como causa da hipertensão num utente com hipocalémia inexplicável ou induzida por diuréticos, identificação de um nódulo na glândula suprarrenal ou familiares de 1º grau com HP. (40 É importante referir que, apesar da hipocalémia ser uma manifestação clínica muito sugestiva de HP, esta não está presente no momento do diagnóstico de HP em mais de 50% dos casos. (4), (10), (31 Assim, está recomendado rastrear HP em todos os utentes com suspeita de HS. (40
2.4.3. Diagnóstico
De acordo com as guidelines da Endocrine Society, (40 o diagnóstico de HP envolve três etapas sequenciais: rastreio, testes confirmatórios e diferenciação do subtipo. Uma vez que estas duas últimas etapas do diagnóstico são mais complexas, alguns autores defendem que os utentes devem ser referenciados a um endocrinologista após um teste de rastreio positivo.14 Estudos de imagem da suprarrenal devem ser protelados até ser confirmada a produção inadequada de aldosterona. (4
O teste de rastreio do HP mais consensual é a medição da razão entre a concentração plasmática de aldosterona e a atividade da renina plasmática.10,14,40-42 O teste é considerado positivo se essa razão for superior a 30 (ng/dL por ng/mL/h), (40 podendo variar consoante o laboratório. (40), (43
Para o teste de rastreio ter validade é fundamental uma preparação adequada (Tabela 3). Se o teste de rastreio for inconclusivo ou negativo, mas existir uma elevada suspeita clínica, este deve ser repetido. (40
2.4.4. Tratamento
Nos utentes com doença unilateral, quer por adenoma ou hiperplasia, a adrenalectomia laparoscópica unilateral apresenta resultados muito satisfatórios. No entanto, se os utentes não apresentarem critérios para cirurgia ou rejeitarem essa opção, deve ser proposto tratamento médico com um antagonista dos recetores dos mineralocorticoides. (40), (42
Nos utentes com doença bilateral está recomendado o tratamento médico, sendo a espironolactona o fármaco de 1ª linha. (40), (42
3. Causas menos comuns de hipertensão secundária
3.1. Disfunção tiroideia
A disfunção da glândula tiroideia, tanto em estados de hipertiroidismo/tireotoxicose como de hipotiroidismo, tem sido associada a hipertensão. (44 A prevalência estimada de disfunção tiroideia nos utentes hipertensos é de 1 a 2%, sendo 1 a 3% nos utentes com HR. (2
3.1.1. Fisiopatologia
No hipotiroidismo, a diminuição do débito cardíaco causa um aumento compensatório da resistência vascular periférica com o objetivo de manter uma perfusão adequada dos tecidos, o que conduz a hipertensão, sobretudo, diastólica. (45 No hipertiroidismo verifica-se um aumento da frequência, contratilidade e débito cardíaco, aumentando predominantemente a pressão arterial sistólica. (45)-(46
3.1.2. Manifestações clínicas e/ou laboratoriais
As manifestações clínicas associadas ao hipertiroidismo são semelhantes a um estado hiperadrenérgico, podendo surgir palpitações, tremores, insónia, perda de peso, aceleração do trânsito intestinal, intolerância ao calor ou hiperatividade. Ao exame físico são achados sugestivos de hipertiroidismo a presença de exoftalmia, taquicardia e/ou aumento da pressão de pulso. (5
Em contrapartida, sintomas como letargia, obstipação, intolerância ao frio, aumento de peso e mixedema sugerem hipotiroidismo. Bradicardia e estreitamento da pressão de pulso são sinais frequentemente presentes. (44
3.1.3. Diagnóstico
O doseamento da hormona estimulante da tiroide (TSH) é o melhor teste de rastreio da disfunção tiroideia. (2)-(3 Em caso de alterações, deve ser realizada uma nova avaliação com o doseamento da TSH e T4 livre, de modo a caracterizar melhor a disfunção em causa. (45), (47
3.1.4. Tratamento
O tratamento da hipertensão associada às disfunções tiroideias habitualmente só se consegue após ser alcançado o estado de eutiroidismo. (45
O tratamento do hipertiroidismo envolve a diminuição da síntese/libertação das hormonas tiroideias, com recurso a tratamento médico ou cirúrgico, e o controlo de sintomas com bloqueadores β. (44), (47 Os utentes devem ser referenciados a um endocrinologista. (48
No hipotiroidismo, a base do tratamento é a reposição das hormonas tiroideias com levotiroxina. (5), (44
3.2. Síndroma de Cushing
A síndroma de Cushing (SC) resulta do excesso de glicocorticoides no organismo. A principal causa de SC é a administração exógena de glicocorticoides (hipercortisolismo exógeno). (44)-(45
O aumento da produção endógena (hipercortisolismo endógeno) é uma causa rara, com uma prevalência de 1,4 a 10 casos por milhão de habitantes. (5 A maioria destes casos resulta de um adenoma hipofisário produtor de ACTH, sendo esta condição conhecida como doença de Cushing. (49 Outras causas menos comuns incluem a produção ectópica de ACTH e o adenoma/carcinoma/hiperplasia nodular da suprarrenal. (44
A hipertensão pode ser encontrada em até 93% dos casos de SC. (50
3.2.1. Fisiopatologia
O hipercortisolismo pode desencadear hipertensão por vários mecanismos, como o aumento da atividade do sistema nervoso simpático, maior sensibilidade aos agonistas adrenérgicos, menor destruição das células produtoras de catecolaminas e ativação do SRAA e da endotelina-1. (51)-(52
3.2.2. Manifestações clínicas e/ou laboratoriais
Devemos suspeitar da SC como causa de HS perante um utente que apresente um fácies em «lua cheia» (fácies cushingoide), fragilidade cutânea, equimoses fáceis, obesidade abdominal centrípeta, adiposidade dorso-cervical («pescoço de búfalo»), osteoporose inexplicável, atraso no crescimento, fraqueza muscular proximal, estrias roxo-avermelhadas, perfil de pressão arterial não-dipper, perturbação do humor, hirsutismo, acne, alopecia, irregularidades menstruais, suscetibilidade aumentada a infeções ou diminuição da tolerância à glicose. (10), (44)-(45), (51 Note-se que em até 15% dos adultos com SC, as manifestações clínicas podem ocorrer apenas periodicamente. (53
A hipótese de SC também deve ser considerada perante um utente que apresente um incidentaloma na suprarrenal, mesmo na ausência de manifestações clínicas. (54
3.2.3. Diagnóstico
Utentes com suspeita de HS, mas que não apresentem características sugestivas de SC, não necessitam de ser estudados quanto à sua presença. (10 No entanto, o diagnóstico de SC pode ser difícil, mesmo naqueles que apresentam manifestações clínicas, pelo facto de este compartilhar muitas características com a síndroma metabólica. (52
A abordagem diagnóstica nos CSP de um utente com suspeita de SC encontra-se esquematizada na Figura 1. (45), (55), (56), (57
3.2.4. Tratamento
Perante a identificação de uma lesão primária responsável pelo SC, está recomendada a sua resseção cirúrgica, desde que seja exequível e que previsivelmente reduza o excesso de glicocorticoides.57 Em alternativa, poderá ser feita terapêutica com inibidores da esteroidogénese, antagonistas dos recetores dos glicocorticoides ou adrenalectomia bilateral. (57
O tratamento deve ser adjuvado com anti-hipertensores para o controlo da hipertensão, sendo os IECA/ARA a primeira opção. (52), (57)-(58
3.3. Feocromocitoma e paraganglioma
O feocromocitoma e o paraganglioma (FP) são tumores com origem nas células cromafins que, se funcionantes, podem resultar num excesso de libertação de catecolaminas no organismo. (59 A maioria destes tumores são feocromocitomas (80 a 85%), tumores localizados na glândula suprarrenal, ao passo que os paragangliomas são extra-adrenais, com origem nos gânglios do sistema nervoso autónomo. (60
Os FP são encontrados mais comummente na quarta década de vida e manifestam-se frequentemente com hipertensão, (51 estimando-se que sejam responsáveis por 0,2% a 0,6% dos casos de hipertensão44 e por até 1% dos casos de HR. (2
3.3.1. Fisiopatologia
O excesso de produção e libertação de catecolaminas é o principal mecanismo responsável pela hipertensão associada aos FP, (44), (59), (61 uma vez que este se associa a vasoconstrição periférica, aumento do débito cardíaco e ativação do SRAA. (61
O padrão, quantidade e tipo de catecolaminas libertadas são variáveis, com consequente variabilidade no perfil tensional dos utentes com FP. (44), (59), (61
3.3.2. Manifestações clínicas e/ou laboratoriais
Os FP manifestam-se classicamente com uma hipertensão paroxística ou sustentada, associada a taquicardia, cefaleias, hipersudorese e palidez. (45
Utentes com história familiar de FP ou de um síndroma genético com possível associação, presença de uma massa na glândula suprarrenal com características sugestivas, crises hipertensivas despoletadas pela mudança de posição, exercício, procedimentos médicos ou toma de determinados fármacos (como antidepressivos, β bloqueadores, analgésicos, metoclopramida, agentes de contraste ou simpaticomiméticos), ou uma diabetes de início recente num jovem magro e hipertenso, devem também levantar a suspeita da existência de FP. (44)-(45), (59
3.3.3. Diagnóstico
De acordo com as guidelines da Endocrine Society, (60 os testes de primeira linha para a pesquisa do FP são as o doseamento de metanefrinas fracionadas no plasma ou na urina de 24 horas, uma vez que apresentam um elevado valor preditivo negativo.
Nos utentes com alto índice de suspeição, nomeadamente os que apresentam história familiar ou pessoal de FP ou de síndromas genéticos predisponentes, ou um incidentaloma com características imagiológicas sugestivas, o doseamento das metanefrinas fracionadas no plasma deve ser preferido. Nos utentes com baixo índice de suspeição, nomeadamente os que apresentam HR, sinais/sintomas de ativação adrenérgica ou incidentaloma com características pouco sugestivas de FP, deve optar-se pelo doseamento das metanefrinas fracionadas na urina de 24 horas, dada a sua maior especificidade neste grupo de utentes. (62
Determinados fármacos, como antidepressivos tricíclicos, simpaticomiméticos ou antipsicóticos, devem ser suspensos por pelo menos duas a três semanas antes da colheita das análises. (45), (60), (62 Fatores como o stress e a colheita na posição vertical também podem contribuir para resultados falsos-positivos. (59), (62
Se for documentada evidência bioquímica de FP devem ser realizados estudos de imagem, sendo a TC abdomino-pélvica com contraste o exame de primeira linha. (60 Alguns autores sugerem que perante evidência bioquímica de FP deve ser feita a referenciação imediata a um endocrinologista, Tabela 4. (45
3.3.4. Tratamento
O tratamento do FP é a exérese cirúrgica do tumor. (59)-(60 Para o controlo da hipertensão, a opção preferencial são os bloqueadores α, como a fenoxibenzamina. Se a pressão arterial não atingir os valores-alvo pode-se acrescentar um bloqueador β ou um bloqueador dos canais de cálcio. (59)-(60 O uso de bloqueador β na ausência de um bloqueador α não é recomendado. (60
3.4. Coartação da aorta
A coartação da aorta (CA) é uma constrição do lúmen da artéria aorta, geralmente distal à emergência da artéria subclávia esquerda. (5 Apesar da sua baixa prevalência, descrita em cerca de 0,06 a 0,08% da população geral, (63 a CA torna-se uma causa comum de HS quando se considera a população de crianças e adolescentes hipertensos, particularmente do sexo masculino. (1), (3
3.4.1. Fisiopatologia
A existência de anormalidades estruturais e funcionais da parede arterial, a hipoperfusão renal com subsequente ativação do SRAA e o reajuste do nível de pressão arterial considerada normal pelos barorecetores são os mecanismos que contribuem para o desenvolvimento de hipertensão nos utentes com CA. (63
3.4.2. Manifestações clínicas e/ou laboratoriais
A CA é geralmente assintomática, podendo não ser detetada até à idade adulta. (3), (28), (31 No entanto, existem sinais sugestivos desta causa, nomeadamente a presença de uma diferença superior a 20mmHg na pressão arterial sistólica dos membros superiores comparativamente à dos membros inferiores, pulso femoral atrasado ou ausente, ou um sopro sistólico de ejeção com irradiação dorsal. (5), (10), (28
Sintomas como cefaleias inexplicáveis, pés frios ou claudicação com o exercício podem ocorrer. A radiografia do tórax pode mostrar a presença de entalhes nas costelas devido ao desenvolvimento de circulação colateral. (2)-(3
3.4.3. Diagnóstico
O método de diagnóstico de primeira linha para a CA é o ecocardiograma transtorácico; no entanto, é menos preciso no adulto. Em caso de dúvida deve ser realizada uma TC do tórax. (64
Perante evidência de CA, os utentes devem ser referenciados, consoante a idade, a consulta de cardiologia ou cardiologia pediátrica. (65
3.5. Fármacos e tóxicos
O consumo de determinados fármacos ou tóxicos pode ser responsável pelo aparecimento de HS. Exemplos comuns incluem os contracetivos orais, particularmente aqueles com doses altas de estrogénios, anti-inflamatórios não esteroides de uso crónico, antidepressivos (tricíclicos, inibidores seletivos da recaptação de serotonina e inibidores da monoamina oxidase), antipsicóticos atípicos, corticosteroides, descongestionantes nasais, como a fenilefrina e a pseudoefedrina, alguns fármacos para a perda de peso e antiácidos que contêm sódio. (1), (31 Imunossupressores, como a ciclosporina ou o tacrolimus, e quimioterápicos, como os inibidores da angiogénese ou da tirosina cinase, também podem causar hipertensão. (1), (10), (31
É importante excluir o consumo de álcool, cafeína, anfetaminas, cocaína e esteroides anabolizantes como causas de HS. (31
4. Outras causas de hipertensão secundária
Existem outras causas menos frequentes de HS, como a acromegalia, hiperparatiroidismo primário, tumores da paratiroide, reninoma, síndroma carcinoide, síndroma de Liddle, síndroma de Geller, síndroma de Gordon, síndroma do excesso aparente de mineralocorticoides e síndroma de Guillain-Barré. (5), (44)-(45), (51 Pela sua baixa prevalência como causas de HS não serão exploradas nesta revisão.
Conclusão
A HS é responsável por cerca de 5 a 10% dos casos de hipertensão arterial. Em crianças e adolescentes as principais causas de HS são as DPR e a CA. A partir desta idade, as causas mais comuns incluem a SAOS, as DPR, a EAR e o HP.
Avaliar em todos os utentes hipertensos a existência de causas secundárias não é custo-efetivo, pelo que apenas devem ser estudados os utentes com características sugestivas. Posteriormente, o estudo deverá ser dirigido à causa suspeita, quer pelas manifestações clínicas e/ou laboratoriais do utente quer pela prevalência das causas.
O médico de família assume um papel fundamental no reconhecimento de causas secundárias para a hipertensão, uma vez que é frequentemente o primeiro ponto de contacto do utente com o sistema de saúde. Deste modo, este deve ser capaz de solicitar os exames complementares adequados para posterior tratamento ou referenciação, o que assume particular importância dado que quanto mais precocemente forem detetados estes quadros, menor é a probabilidade de se atingir a irreversibilidade das eventuais complicações.
Este trabalho permitiu uma revisão da abordagem das diferentes causas de HS, de acordo com a evidência mais recente. São temas que, pela sua abrangência de patologias abordadas, necessitam de uma revisão constante para adequar a prática do médico de família às práticas mais atuais.