Introdução
A cefaleia é uma queixa prevalente e constitue uma das dez principais causas de incapacidade a nível mundial. (1 A enxaqueca é o tipo de cefaleia que mais frequentemente leva o utente a procurar assistência médica. (2 Um dos objetivos principais do tratamento adequado de qualquer cefaleia passa pela profilaxia da cefaleia por uso excessivo de medicamentos (CUEM). (1), (3
A enxaqueca é mais frequente nas mulheres e pode ter início em qualquer idade, com pico na adolescência/adulto jovem. (1), (3 Este tipo de cefaleia é precedido por aura num terço dos casos e, habitualmente, ocorre sob a forma de episódios que duram entre quatro a 72 horas. (1), (3 As características típicas da enxaqueca são as seguintes: unilateralidade, pulsatilidade, intensidade moderada ou grave, agravamento pela atividade física, associação com náuseas, fotofobia e fonofobia. (1), (3 Nas crises leves/moderadas, os agentes de primeira linha no tratamento sintomático são os anti-inflamatórios não esteroides (AINE) em associação com um antiemético. (1), (4)-(5 Quando o tratamento com AINE falha estão recomendados os triptanos, que constituem o tratamento de eleição para as crises moderadas/graves. (1), (4)-(5 Há indicação para o tratamento profilático perante crises com impacto na qualidade de vida do doente ou com interferência nas atividades de vida diária. (1), (4)-(5 A profilaxia diminui a frequência da cefaleia em mais de 50% e, para este efeito, medicamentos pertencentes à classe dos bloqueadores beta, bloqueadores dos canais de cálcio, modificadores do eixo renina angiotensina, antidepressivos ou antiepiléticos são opções válidas. (1), (4)-(5
Este artigo relata a abordagem da CUEM numa doente automedicada com analgésicos, cuja intervenção foi dificultada pela má adesão ao acompanhamento médico.
Descrição do caso
Apresenta-se o caso de uma mulher de 41 anos, caucasiana, com quatro anos de escolaridade e cuja profissão é empregada de limpeza. Trata-se de uma utente divorciada, a residir na Maia com o atual companheiro e com os seus dois filhos (sexo feminino, 19 anos, fruto do primeiro relacionamento; sexo masculino, sete anos, fruto do segundo relacionamento). A família da utente é do tipo «reconstruída» e enquadra-se na classe IV da classificação de Graffar.
Em termos de antecedentes pessoais refira-se: apendicectomia aos 11 anos; enxaqueca sem aura desde a menarca (aos 14 anos); tabagismo (12,5 UMA); 2Gesta2Para (eutócicos); varizes dos membros inferiores. A doente não tinha medicação crónica nem alergias medicamentosas conhecidas. Os antecedentes familiares da doente são apresentados na Figura 1.
De acordo com os registos clínicos disponíveis, a utente recorreu aos cuidados de saúde devido à enxaqueca por 27 vezes, entre 2009 e 2018. Em sete dessas ocasiões dirigiu-se à consulta aberta na sua unidade de saúde familiar (USF) e, nas restantes, ao serviço de urgência do hospital da área de influência.
Tipicamente, a utente queixava-se de cefaleia unilateral, pulsátil, muito intensa (intensidade 8-10/10, de acordo com a escala numérica da dor), agravada pela atividade física, associada a náuseas (por vezes com vómitos) e fonofotofobia, referindo necessidade de repousar num lugar sossegado e com pouca luz. Negava outros sintomas visuais ou sensitivos. Referia que estes episódios duravam dois a três dias e que costumava tê-los duas vezes por mês, nos primeiros dias do cataménio e na semana anterior. Em nenhuma das avaliações realizadas apresentou alterações ao exame neurológico. Assim, de acordo com a The International Classification of Headache Disorders, a doente cumpria critérios de diagnóstico de enxaqueca sem aura. (3
Após o nascimento do segundo filho, a utente passou a ter episódios de enxaqueca todas as semanas. Além disso, referia insónia inicial e intermédia, com sono pouco reparador. Nessa altura foi-lhe diagnosticada uma perturbação depressiva, para a qual foi medicada. Contudo, quer nesta altura quer posteriormente, a utente sempre teve um cumprimento errático das terapêuticas que lhe foram propostas de modo a tentar melhorar a sintomatologia depressiva.
Atendendo às queixas de enxaqueca foram prescritos vários analgésicos de forma sequencial, todos eles sem alívio sintomático, nomeadamente: ibuprofeno 600mg; diclofenac 100mg; acetilsalicilato de lisina 1000mg; ácido acetilsalicílico 1000mg; paracetamol 1000mg; paracetamol + cafeína 500mg + 65mg; paracetamol + cafeína + tartarato de ergotamina + alcaloides da beladona 400mg + 100mg + 1mg + 0,1mg; tramadol + paracetamol 37,5mg + 325mg; paracetamol + fosfato de codeína + cloridrato de buclizina 500mg + 8mg + 6,25mg; zolmitriptano 5mg.
Atendendo ao insucesso terapêutico, bem como à frequência e intensidade da enxaqueca, a doente foi referenciada para a consulta de neurologia, na qual foi avaliada em abril de 2015. Nessa consulta constatou-se que a utente apresentava perturbação depressiva e, associadamente, tinha pelo menos três episódios de enxaqueca por mês, duradouros e intensos, com fraca resposta à medicação sintomática. Perante o quadro, o neurologista assistente instituiu profilaxia farmacológica, optando pela amitriptilina 10mg ao deitar (com esquema de aumento progressivo da dose em cada semana, até 25mg). Foi explicado à doente o intuito desta medicação e dada indicação para suspender toda a restante medicação sintomática, tendo sido medicada com naproxeno 500mg em SOS, até ao máximo de duas vezes por dia, em dois dias por semana. Segundo a utente, a amitriptilina surtiu efeito durante as primeiras duas semanas, com posterior perda do efeito, associado a agravamento da insónia. A utente suspendeu a toma quer da amitriptilina quer do naproxeno e faltou à consulta de neurologia subsequente.
Nos três anos seguintes, a utente recorreu à unidade de saúde apenas em situações de doença aguda, nas quais foi atendida por vários médicos, sem seguimento regular pela médica de família.
A utente mantinha crises frequentes de enxaqueca e, em janeiro de 2018, recorreu ao serviço de urgência hospitalar onde realizou tomografia computadorizada crânio-encefálica, que não revelou qualquer alteração. No serviço de urgência foi referenciada novamente à consulta de neurologia, agendada para maio de 2018. Nesta consulta constatou-se que, por iniciativa própria, a utente fazia cerca de vinte supositórios de paracetamol + codeína 1000mg + 60mg durante três dias em cada episódio de enxaqueca. A utente referia que só conseguia controlar a enxaqueca com os supositórios, já que não tolerava a toma da medicação sintomática por via oral devido aos vómitos. No exame neurológico sumário não foram detetadas alterações identificáveis. O neurologista assistente decidiu iniciar profilaxia da enxaqueca com topiramato 25mg (com esquema de aumento progressivo da dose até 100mg) e a doente ficou com consulta de reavaliação agendada para novembro de 2018, com indicação de levar preenchido um calendário de cefaleias. Contudo, a utente faltou à consulta de reavaliação.
Já em 2019, a utente recorreu à consulta aberta da sua médica de família, no dia 22 de janeiro, referindo humor depressivo, cansaço, insónia, aumento dos hábitos tabágicos, obstipação e perda ponderal de 7kg face ao seu peso habitual (objetivamente apresentava 45kg e um índice de massa corporal de 17,6kg/m2). Além disso, mantinha episódios de enxaqueca todas as semanas, durando cerca de três dias, e continuava a usar paracetamol + codeína para alívio sintomático, estando naquela altura a usar cerca de dez supositórios por dia. Tinha suspendido o topiramato por iniciativa própria, por não ter achado que tivesse benefício e porque leu na bula que este fármaco poderia causar perda ponderal.
Nesta consulta pediu-se estudo analítico e endoscópico de modo a despistar, por um lado, uma causa orgânica para o emagrecimento e, por outro, alterações da função hepática. Interpretou-se este quadro como uma cefaleia mista, incluindo enxaqueca e CUEM, associada a uma perturbação depressiva. Explicou-se à utente que o fármaco usado para alívio da cefaleia desde maio de 2018 era, pelo menos em parte, a causa da própria cefaleia e que o único tratamento eficaz seria a suspensão do medicamento que usava excessivamente. Iniciou-se escitalopram 10mg e mirtazapina 15mg. Além disso, deu-se indicação à doente para suspender gradualmente a toma dos supositórios e para fazer naproxeno, associado a metoclopramida se necessário, como tratamento “de ponte”, usado no máximo em dois dias por semana, visando o alívio sintomático durante a retirada da medicação.
A médica de família explicou à utente que, inicialmente, a cefaleia poderia acentuar-se e poderiam surgir náuseas, vómitos, ansiedade e insónia. Para que este período de transição fosse melhor tolerado atribuiu-se à utente um certificado de incapacidade temporária, agendou-se consulta de reavaliação dentro de duas semanas e, até lá, garantiu-se à utente acessibilidade para poder ser consultada em caso de sintomas intoleráveis.
Alertou-se que seria necessário estabelecer uma aliança terapêutica entre a equipa de saúde familiar e a utente, com o compromisso de um seguimento mais regular durante o processo de cessação da medicação que era alvo de abuso. Finalmente, explicou-se que seria importante o preenchimento de um calendário de cefaleias para monitorizar a evolução das queixas. A utente concordou com o plano proposto.
A doente compareceu à consulta agendada no dia 11 de fevereiro. Nessa altura apresentava estabilidade ponderal e estava a fazer três supositórios de paracetamol + codeína 1000mg + 60mg por dia, quando tinha crises. Reforçou-se a importância de continuar a redução do consumo desta medicação e agendou-se nova reavaliação.
A utente foi reavaliada no dia 21 de fevereiro. Nesta altura referiu que já não fazia paracetamol + codeína 1000mg + 60mg desde há três dias. Trazia os resultados das análises e da endoscopia e da colonoscopia realizadas, sendo que nenhum dos exames apresentava alterações de relevo.
Em consulta, no dia 13 de março, constatou-se estabilidade ponderal e a abstinência de paracetamol + codeína 1000mg + 60mg. A doente referia melhoria importante do humor e da insónia, bem como uma diminuição do número de episódios de cefaleia. Contudo, não tinha, até essa data, preenchido o calendário de cefaleias. Reforçou-se a importância de manter a abstinência e de preencher o calendário.
Atendendo ao facto de ser uma grande frequentadora da consulta dos cuidados de saúde primários por situações agudas, sem seguimento regular em consulta programada, e ao facto de se ter identificado um abuso medicamentoso com consequências importantes para a saúde da própria, realizou-se nesta consulta a avaliação familiar da utente. Parte dos resultados dessa avaliação podem ser consultados nas Figuras 1, 2 e 3.
Por um lado, no genograma (Figura 1) é evidente uma perigosa combinação de antecedentes, nomeadamente o abuso de substâncias (álcool, tabaco e fármacos) na linhagem paterna e a enxaqueca na linhagem materna. Por outro lado, a linha de vida de Medalie (Figura 2) denota uma associação entre vários acontecimentos na vida da utente e o surgimento ou agravamento de patologias. Finalmente, o círculo familiar de Thrower que a utente construiu (Figura 3) representa os conflitos familiares e o isolamento social vividos pela utente, ambos em íntima relação com a perturbação depressiva.
Nas consultas subsequentes da utente, realizadas ao longo do ano de 2019, constatou-se melhoria progressiva do quadro clínico. Na última avaliação da utente, em 21 de fevereiro de 2020, registou-se a manutenção da abstinência, recuperação ponderal (pesava 54kg e tinha um índice de massa corporal de 20,3kg/m2), normalização dos hábitos tabágicos, melhoria do humor e uma menor frequência de episódios de enxaqueca. Segundo o calendário de cefaleias, nesta fase apresentava episódios quinzenais de enxaqueca, com duração inferior a três dias e com pouca interferência no dia-a-dia, pelo que se manteve a terapêutica previamente instituída.
Comentário
A CUEM desenvolve-se devido ao uso excessivo de medicação para a cefaleia, sendo o único tratamento eficaz a suspensão da medicação em causa. (1), (3)-(4 É mais comum em mulheres e tem como fatores de risco as perturbações depressivas e de ansiedade.
Este caso permite refletir sobre as dificuldades que acarreta o seguimento dos utentes que, por um lado, têm uma adesão irregular às consultas programadas, mas que, por outro lado, são hiperfrequentadores das consultas destinadas à resolução de patologia aguda. Perante este tipo de situações reitera-se a importância de aplicar ferramentas de avaliação familiar.
A avaliação poderá ser útil para tentar compreender eventos de vida associados a este tipo de conduta e, se possível, cessar este comportamento, privilegiando um acompanhamento programado e regular pelo médico de família, focado na prevenção.
Por outro lado, as técnicas de comunicação e avaliação familiar ajudam a perceber o padrão expectável de certas doenças numa dada família. (6 Neste caso constata-se uma perigosa combinação de antecedentes, nomeadamente o abuso de substâncias (álcool, tabaco e fármacos) na linhagem paterna e a enxaqueca na linhagem materna, percetível na Figura 1.
Perante os antecedentes familiares apresentados desaconselha-se a prescrição de fármacos com potencial para o desenvolvimento de consumo abusivo e de dependência, como os opioides e os fármacos contendo cafeína.
O abuso medicamentoso também parece ter sido potenciado pela perturbação do humor apresentada pela doente. Esta perturbação foi sucessivamente agravada pelos eventos de vida desestruturantes pelos quais a utente passou desde 2011, como é evidenciado na Figura 2. Atendendo a este facto, a utente poderia beneficiar da avaliação quer por psiquiatria, quer por psicologia, visando a otimização da terapêutica farmacológica e não farmacológica e promovendo o desenvolvimento de mecanismos de coping face a eventos de vida adversos.
A utente apresentada manteve uma situação de abuso medicamentoso durante cerca de oito meses, tendo como consequência uma CUEM e correndo risco de toxicidade hepática. Com este relato de caso pretende-se, por um lado, alertar para a existência de situações semelhantes à apresentada e, por outro, enaltecer o papel da medicina geral e familiar na deteção e abordagem precoce quer das perturbações do humor, quer das situações de abuso medicamentoso.
No caso particular da CUEM existem vários aspetos a ter em conta. Quando o médico prescreve terapêutica de alívio sintomático para a cefaleia deve alertar o utente para a possibilidade de se poder desenvolver uma CUEM e, deste modo, promover a sua profilaxia através da educação para a saúde. Além disso, na abordagem terapêutica da CUEM é importante assegurar a vigilância clínica apertada e o seguimento regular do utente por parte do médico de família, o que neste caso em particular poderá ter contribuído para o sucesso na intervenção. Ainda assim, é importante que, perante o insucesso terapêutico desta estratégia inicial, alguns casos poderão necessitar de referenciação para consulta hospitalar de abordagem de dependências.