Introdução
Qualquer exame complementar de diagnóstico, mesmo quando usado como método de rastreio oncológico consensualmente recomendado, pode ter associado o risco de iatrogenia. Assim, é fundamental que a sua prescrição seja baseada na melhor evidência científica disponível, assegurando a prevenção secundária mas também a prevenção quaternária. Além disso, é igualmente importante que essa prescrição resulte de uma decisão clínica informada, esclarecida e partilhada, considerando as preferências e o contexto sociocultural da utente.
Este relato de caso pretende realçar a importância das tomadas de decisão esclarecidas e partilhadas com o utente, nomeadamente as relativas ao rastreio do cancro da mama.
Descrição do caso
Mulher de 48 anos, profissional de saúde, estádio I no ciclo de Duvall, Apgar familiar funcional e Graffar classe 3. Sem problemas de saúde conhecidos, nomeadamente hábitos tabágicos ou toxicofílicos, e sem antecedentes familiares relevantes. Dos antecedentes pessoais destacam-se correção cirúrgica de pé boto na infância e cirurgia Lasik por miopia aos 45 anos.
Aos 39 anos iniciou seguimento em consulta privada de ginecologia devido a hemorragia uterina anómala, tendo sido diagnosticada fibromiomatose uterina e foi submetida a histerectomia total com conservação dos anexos. No contexto desse seguimento, aos 40 anos, foi-lhe solicitada mamografia para rastreio do cancro da mama, que aceitou tacitamente, sem esclarecimentos adicionais e cujo resultado foi BI-RADS 4 (Breast Imaging Report and Data System). Nessa altura foi referenciada a consulta hospitalar onde realizou punção-biópsia aspirativa, que não detetou células neoplásicas, pelo que teve alta e manteve seguimento com a médica de família, com indicação para realização anual de mamografia. De acordo com o indicado fez mamografia após um ano e o resultado foi um BI-RADS 2. Após interpretação do resultado, a tomada de decisão com a médico de família consistiu em repetir o rastreio após dois anos. A vigilância realizada no médico de família apresenta-se resumida na Tabela 1.
Face a novo resultado BI-RADS 4, a utente foi referenciada a consulta hospitalar, onde foram ponderadas duas hipóteses: realizar nova punção-biópsia ou proceder-se a excisão cirúrgica da lesão. Face a nova incerteza diagnóstica, que gerou ansiedade e apreensão, a utente optou pela excisão cirúrgica da lesão; caso contrário, saberia que poderia ter de passar por um novo resultado BI-RADS 4 em contexto de vigilância do rastreio do cancro da mama e, consequentemente, uma nova referenciação hospitalar e intervenção invasiva. O exame anatomopatológico da peça cirúrgica revelou: “Tecido mamário benigno com quistos simples ou com metaplasia apócrina e alterações fibroadenomatoides. Ausência de neoplasia intraductal ou invasiva”. O resultado tranquilizou a utente perante o presente e o futuro.
Comentário
O cancro da mama é o cancro mais comum na mulher a nível mundial e é também uma das principais causas de morte.1-2 A partir do momento em que o rastreio do cancro da mama através da realização de mamografia foi introduzido nos países desenvolvidos, a mortalidade por este tipo de cancro diminuiu. Porém, não só se verificou um aumento do diagnóstico de cancro da mama entre os 50-69 anos, como também se verificou um incremento no sobrediagnóstico, sendo este atualmente reconhecido como o principal malefício da mamografia.2
Aproximadamente 41% de todos os cancros da mama e 57% de todas as mortes por cancro da mama ocorrem em mulheres com idade acima dos 65 anos.3 A idade é um dos fatores de risco major para o cancro da mama.3-4 Outros fatores de risco major são a história de hiperplasia atípica ou carcinoma lobular in situ ou a predisposição genética e exposição prévia a radioterapia. O risco de cancro da mama não se encontra normalmente distribuído, sendo que apenas 4% das mulheres apresenta um risco superior a 80%.3 Por outro lado, os fatores que parecem estar associados a uma diminuição do risco do cancro da mama são a prática de atividade física, um nível adequado de folatos, o consumo de dieta mediterrânica, IMC normal (apenas em mulheres pós-menopáusicas) e um consumo de álcool diminuído.4
Recomendações internacionais, como as da U.S. Preventive Service Task Force (USPSTF), consideram benéfico o rastreio populacional do cancro da mama bianual entre os 50 e os 74 anos em mulheres sem risco acrescido (grau de recomendação B), uma vez que é nestas idades, sobretudo em mulheres na década dos 60 anos, que se verifica superioridade dos benefícios. De acordo com a Canadian Task Force on Preventive Health Care, a decisão de rastrear depende do valor relativo que uma mulher atribui aos possíveis benefícios e malefícios associados ao rastreio bianual ou trianual em mulheres entre os 50 e 74 anos.6
Em Portugal, o rastreio populacional bianual para cancro da mama incide em mulheres entre os 50 e os 69 anos, inclusive.7
O rastreio populacional do cancro da mama a partir dos 40 anos, em mulheres sem risco acrescido, é controverso. A Organização Mundial da Saúde defende que nos países desenvolvidos, desde que com condições de monitorização e avaliação adequadas, poder-se-á desenvolver um rastreio populacional para o cancro da mama em mulheres entre os 40 e os 49 anos se for do interesse da mulher.8 A USPSTF refere que, apesar do rastreio poder reduzir o risco do cancro da mama, o número de mortes evitáveis será inferior quando comparado ao rastreio em mulheres mais velhas e o número de falsos positivos e biópsias desnecessárias aumenta. Este balanço entre os benefícios e os malefícios do rastreio parece melhorar à medida que a idade se aproxima dos 50 anos.5 A Canadian Task Force não recomenda, condicionalmente, o rastreio de mulheres entre os 40 e os 49 anos sem risco aumentado de cancro da mama. Acrescenta ainda que se a mulher, considerando os seus valores e preferências, desejar efetuar o rastreio, o médico deverá informar e esclarecer sobre possíveis benefícios e malefícios do exame, chegando-se a uma tomada de decisão partilhada. Estas recomendações informam, através de pictogramas, o número expectável de mulheres que é necessário rastrear para prevenir uma morte por cancro da mama. Assim, é necessário rastrear 1.724 mulheres para prevenir uma morte por cancro da mama e, por cada 1.000 mulheres rastreadas, 294 têm um falso positivo, 43 são submetidas a biópsias desnecessárias e sete são diagnosticadas com cancro da mama, dos quais três não causariam problema. Entre os 70 e os 74 anos é preciso rastrear 645 mulheres para prevenir uma morte por cancro da mama.6 Em Portugal, a mamografia de rastreio não está indicada em mulheres assintomáticas com idades inferiores a 50 anos e sem risco aumentado de cancro da mama. Porém, caso a avaliação clínica justifique o pedido de mamografia, a mulher deve ser informada sobre os seus riscos e benefícios e partilhar a decisão de a realizar.8
Neste caso, a utente tinha 40 anos, sem antecedentes familiares relevantes, quando fez a primeira mamografia e, apesar de tacitamente ter aceite a sua realização, não foram discutidos os benefícios e malefícios da sua realização, nomeadamente o risco de falsos positivos, sobrediagnóstico e sobretratamento. É fundamental que o médico não restrinja a sua decisão clínica, neste caso acerca da implementação de um determinado rastreio, tendo apenas por base a importância da prevenção secundária. Assim, qualquer decisão clínica deve ser pautada pensando também em termos de prevenção quaternária, que no fundo é um termo novo para um conceito antigo, isto é, “em primeiro lugar não fazer mal ao utente”.9 Refere-se, portanto, à abordagem holística, individual e ética que o médico deve ter para com o utente, procurando evitar antes de tudo malefícios, como o excesso de medicalização, potenciais danos de exames e de intervenções médicas invasivas desnecessárias.
Constata-se, portanto, que no momento da prescrição deste rastreio a utente não foi colocada no centro da decisão, ao contrário do preconizado pelo método clínico centrado no utente, que considera as particularidades de cada pessoa, a sua abordagem holística e o processo de raciocínio e tomada de decisão tendo em conta as expectativas, sentimentos e medos do utente.10
Assim, a comunicação sobre tomadas de decisão clínica deve ser esclarecida previamente com o utente e deve considerar as suas preferências e o seu contexto sociocultural. Neste caso, a utente deveria ter sido informada quanto aos malefícios e benefícios do início do rastreio do cancro da mama aos 40 anos, esclarecida relativamente às suas dúvidas e escutada quanto às suas preferências e crenças. Embora a mamografia de rastreio em mulheres entre os 40 e os 49 anos possa reduzir o risco de morte por cancro da mama, o número de mortes evitadas é menor do que em mulheres com idade superior. Em contrapartida, é maior o número de resultados falso-positivos e de biópsias desnecessárias. A comunicação deste risco poderia ter sido feita por palavras, números, gráficos ou pictogramas, como os referidos anteriormente pela Canadian Task Force, uma vez que poderia influenciar a perceção e possível escolha da utente (Figura 1).5,11
Agradecimentos
Os autores agradecem a colaboração da Drª Maria João Martins, especialista em medicina geral e familiar, na revisão do relato de caso.
Contributo dos autores
Conceptualização, A.C.E. e J.C.; metodologia, A.C.E. e J.C.; análise formal, A.C.E. e J.C.; investigação, A.C.E. e J.C.; redação do draft original, A.C.E. e J.C.; redação, revisão e validação do texto final, A.C.E. e J.C.; supervisão A.C.E. e J.C. Todos os autores leram e concordaram com a versão final do manuscrito.