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Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar

versão impressa ISSN 2182-5173

Rev Port Med Geral Fam vol.38 no.1 Lisboa fev. 2022  Epub 28-Fev-2022

https://doi.org/10.32385/rpmgf.v38i1.12941 

Relatos de caso

A importância da decisão partilhada em consulta: um relato de caso

The importance of sharing decisions: a case report

Ana Catarina Esteves1  , Médica Interna
http://orcid.org/0000-0002-0061-3996

Jorge Ramalho Carteiro1 

1. Médica Interna de Medicina Geral e Familiar. USF Conde de Oeiras. Oeiras, Portugal


Resumo

Introdução:

O rastreio do cancro da mama tem, como propósito, não só o diagnóstico mais precoce como também a possibilidade de uma intervenção menos agressiva e com melhores resultados em saúde. Contudo, apesar de estar preconizada esta recomendação em mulheres a partir dos 50 anos, o mesmo não acontece naquelas com idades inferiores, em que a importância da discussão risco-benefício e a decisão partilhada apresentam ainda maior relevância. Este caso clínico pretende realçar a importância das decisões esclarecidas e partilhadas com o utente sobre saúde.

Descrição do caso:

Mulher de 48 anos, profissional de saúde, sem antecedentes familiares ou pessoais relevantes. Aos 40 anos, numa consulta particular de ginecologia, foi prescrita mamografia, sem esclarecimentos adicionais, cujo resultado foi BI-RADS 4, motivando a sua referenciação a uma consulta hospitalar. Realizou punção-biópsia aspirativa, que não revelou células malignas. Manteve vigilância no médico de família e aos 47 anos obteve novo resultado BI-RADS 4 em mamografia e voltou à consulta hospitalar, onde optou pela excisão cirúrgica da lesão, devido ao impacto psicológico negativo causado pela expectativa e incerteza do resultado.

Comentário:

Neste caso em particular, considerando a ausência de fatores de risco major para cancro da mama e a idade da utente, há que ponderar o risco de sobrediagnóstico e sobretratamento quando se inicia o rastreio do cancro da mama. É, por isso, essencial que a transmissão de informação seja feita de forma clara e que a tomada de decisão final seja partilhada e reflita a vontade da utente.

Palavras-chave: Rastreio; Cancro da mama; Decisão partilhada; Sobrediagnóstico; Sobretratamento.

Abstract

Introduction:

Breast cancer screening aims to provide an earlier diagnosis of this pathology, to allow a less aggressive intervention and better health outcomes. However, despite this recommendation being advocated for women over 50 years old, the same does not happen in younger women in whom the importance of discussing risk-benefit and shared decision are even more relevant. This clinical case aims to highlight the importance of informed and shared decisions with the patient about health.

Case description:

A 48-year-old female health professional, without relevant family or personal history. At the age of 40, she had an appointment with a gynaecologist who prescribed mammography without any further information. The result was a BI-RADS 4 and she was referred to hospital care, where she underwent a needle biopsy which did not identify malignant cells. She kept surveillance with her family doctor and by the age of 47 she receives another BI-RADS 4 result. Once again in-hospital care, she chooses excisional surgical biopsy because of the psychological negative impact caused by the expectation and uncertainty of the result.

Comment:

In this case, considering the absence of major risk factors for breast cancer and the age of the patient, the risk of overdiagnosis and overtreatment must be considered when starting a breast cancer screening programme. Therefore, the disclosure information about health should be clear and decision-making should be shared with the patient to accurately reflect her will and beliefs.

Keywords: Screening; Breast cancer; Shared decision; Overdiagnosis; Overtreatment.

Introdução

Qualquer exame complementar de diagnóstico, mesmo quando usado como método de rastreio oncológico consensualmente recomendado, pode ter associado o risco de iatrogenia. Assim, é fundamental que a sua prescrição seja baseada na melhor evidência científica disponível, assegurando a prevenção secundária mas também a prevenção quaternária. Além disso, é igualmente importante que essa prescrição resulte de uma decisão clínica informada, esclarecida e partilhada, considerando as preferências e o contexto sociocultural da utente.

Este relato de caso pretende realçar a importância das tomadas de decisão esclarecidas e partilhadas com o utente, nomeadamente as relativas ao rastreio do cancro da mama.

Descrição do caso

Mulher de 48 anos, profissional de saúde, estádio I no ciclo de Duvall, Apgar familiar funcional e Graffar classe 3. Sem problemas de saúde conhecidos, nomeadamente hábitos tabágicos ou toxicofílicos, e sem antecedentes familiares relevantes. Dos antecedentes pessoais destacam-se correção cirúrgica de pé boto na infância e cirurgia Lasik por miopia aos 45 anos.

Aos 39 anos iniciou seguimento em consulta privada de ginecologia devido a hemorragia uterina anómala, tendo sido diagnosticada fibromiomatose uterina e foi submetida a histerectomia total com conservação dos anexos. No contexto desse seguimento, aos 40 anos, foi-lhe solicitada mamografia para rastreio do cancro da mama, que aceitou tacitamente, sem esclarecimentos adicionais e cujo resultado foi BI-RADS 4 (Breast Imaging Report and Data System). Nessa altura foi referenciada a consulta hospitalar onde realizou punção-biópsia aspirativa, que não detetou células neoplásicas, pelo que teve alta e manteve seguimento com a médica de família, com indicação para realização anual de mamografia. De acordo com o indicado fez mamografia após um ano e o resultado foi um BI-RADS 2. Após interpretação do resultado, a tomada de decisão com a médico de família consistiu em repetir o rastreio após dois anos. A vigilância realizada no médico de família apresenta-se resumida na Tabela 1.

Tabela 1 Resultados das mamografias realizadas pela utente após alta da consulta hospitalar 

Face a novo resultado BI-RADS 4, a utente foi referenciada a consulta hospitalar, onde foram ponderadas duas hipóteses: realizar nova punção-biópsia ou proceder-se a excisão cirúrgica da lesão. Face a nova incerteza diagnóstica, que gerou ansiedade e apreensão, a utente optou pela excisão cirúrgica da lesão; caso contrário, saberia que poderia ter de passar por um novo resultado BI-RADS 4 em contexto de vigilância do rastreio do cancro da mama e, consequentemente, uma nova referenciação hospitalar e intervenção invasiva. O exame anatomopatológico da peça cirúrgica revelou: “Tecido mamário benigno com quistos simples ou com metaplasia apócrina e alterações fibroadenomatoides. Ausência de neoplasia intraductal ou invasiva”. O resultado tranquilizou a utente perante o presente e o futuro.

Comentário

O cancro da mama é o cancro mais comum na mulher a nível mundial e é também uma das principais causas de morte.1-2 A partir do momento em que o rastreio do cancro da mama através da realização de mamografia foi introduzido nos países desenvolvidos, a mortalidade por este tipo de cancro diminuiu. Porém, não só se verificou um aumento do diagnóstico de cancro da mama entre os 50-69 anos, como também se verificou um incremento no sobrediagnóstico, sendo este atualmente reconhecido como o principal malefício da mamografia.2

Aproximadamente 41% de todos os cancros da mama e 57% de todas as mortes por cancro da mama ocorrem em mulheres com idade acima dos 65 anos.3 A idade é um dos fatores de risco major para o cancro da mama.3-4 Outros fatores de risco major são a história de hiperplasia atípica ou carcinoma lobular in situ ou a predisposição genética e exposição prévia a radioterapia. O risco de cancro da mama não se encontra normalmente distribuído, sendo que apenas 4% das mulheres apresenta um risco superior a 80%.3 Por outro lado, os fatores que parecem estar associados a uma diminuição do risco do cancro da mama são a prática de atividade física, um nível adequado de folatos, o consumo de dieta mediterrânica, IMC normal (apenas em mulheres pós-menopáusicas) e um consumo de álcool diminuído.4

Recomendações internacionais, como as da U.S. Preventive Service Task Force (USPSTF), consideram benéfico o rastreio populacional do cancro da mama bianual entre os 50 e os 74 anos em mulheres sem risco acrescido (grau de recomendação B), uma vez que é nestas idades, sobretudo em mulheres na década dos 60 anos, que se verifica superioridade dos benefícios. De acordo com a Canadian Task Force on Preventive Health Care, a decisão de rastrear depende do valor relativo que uma mulher atribui aos possíveis benefícios e malefícios associados ao rastreio bianual ou trianual em mulheres entre os 50 e 74 anos.6

Em Portugal, o rastreio populacional bianual para cancro da mama incide em mulheres entre os 50 e os 69 anos, inclusive.7

O rastreio populacional do cancro da mama a partir dos 40 anos, em mulheres sem risco acrescido, é controverso. A Organização Mundial da Saúde defende que nos países desenvolvidos, desde que com condições de monitorização e avaliação adequadas, poder-se-á desenvolver um rastreio populacional para o cancro da mama em mulheres entre os 40 e os 49 anos se for do interesse da mulher.8 A USPSTF refere que, apesar do rastreio poder reduzir o risco do cancro da mama, o número de mortes evitáveis será inferior quando comparado ao rastreio em mulheres mais velhas e o número de falsos positivos e biópsias desnecessárias aumenta. Este balanço entre os benefícios e os malefícios do rastreio parece melhorar à medida que a idade se aproxima dos 50 anos.5 A Canadian Task Force não recomenda, condicionalmente, o rastreio de mulheres entre os 40 e os 49 anos sem risco aumentado de cancro da mama. Acrescenta ainda que se a mulher, considerando os seus valores e preferências, desejar efetuar o rastreio, o médico deverá informar e esclarecer sobre possíveis benefícios e malefícios do exame, chegando-se a uma tomada de decisão partilhada. Estas recomendações informam, através de pictogramas, o número expectável de mulheres que é necessário rastrear para prevenir uma morte por cancro da mama. Assim, é necessário rastrear 1.724 mulheres para prevenir uma morte por cancro da mama e, por cada 1.000 mulheres rastreadas, 294 têm um falso positivo, 43 são submetidas a biópsias desnecessárias e sete são diagnosticadas com cancro da mama, dos quais três não causariam problema. Entre os 70 e os 74 anos é preciso rastrear 645 mulheres para prevenir uma morte por cancro da mama.6 Em Portugal, a mamografia de rastreio não está indicada em mulheres assintomáticas com idades inferiores a 50 anos e sem risco aumentado de cancro da mama. Porém, caso a avaliação clínica justifique o pedido de mamografia, a mulher deve ser informada sobre os seus riscos e benefícios e partilhar a decisão de a realizar.8

Neste caso, a utente tinha 40 anos, sem antecedentes familiares relevantes, quando fez a primeira mamografia e, apesar de tacitamente ter aceite a sua realização, não foram discutidos os benefícios e malefícios da sua realização, nomeadamente o risco de falsos positivos, sobrediagnóstico e sobretratamento. É fundamental que o médico não restrinja a sua decisão clínica, neste caso acerca da implementação de um determinado rastreio, tendo apenas por base a importância da prevenção secundária. Assim, qualquer decisão clínica deve ser pautada pensando também em termos de prevenção quaternária, que no fundo é um termo novo para um conceito antigo, isto é, “em primeiro lugar não fazer mal ao utente”.9 Refere-se, portanto, à abordagem holística, individual e ética que o médico deve ter para com o utente, procurando evitar antes de tudo malefícios, como o excesso de medicalização, potenciais danos de exames e de intervenções médicas invasivas desnecessárias.

Constata-se, portanto, que no momento da prescrição deste rastreio a utente não foi colocada no centro da decisão, ao contrário do preconizado pelo método clínico centrado no utente, que considera as particularidades de cada pessoa, a sua abordagem holística e o processo de raciocínio e tomada de decisão tendo em conta as expectativas, sentimentos e medos do utente.10

Assim, a comunicação sobre tomadas de decisão clínica deve ser esclarecida previamente com o utente e deve considerar as suas preferências e o seu contexto sociocultural. Neste caso, a utente deveria ter sido informada quanto aos malefícios e benefícios do início do rastreio do cancro da mama aos 40 anos, esclarecida relativamente às suas dúvidas e escutada quanto às suas preferências e crenças. Embora a mamografia de rastreio em mulheres entre os 40 e os 49 anos possa reduzir o risco de morte por cancro da mama, o número de mortes evitadas é menor do que em mulheres com idade superior. Em contrapartida, é maior o número de resultados falso-positivos e de biópsias desnecessárias. A comunicação deste risco poderia ter sido feita por palavras, números, gráficos ou pictogramas, como os referidos anteriormente pela Canadian Task Force, uma vez que poderia influenciar a perceção e possível escolha da utente (Figura 1).5,11

Figura 1 Pictograma da Canadian Task Force on Preventable Health Care 

Agradecimentos

Os autores agradecem a colaboração da Drª Maria João Martins, especialista em medicina geral e familiar, na revisão do relato de caso.

Contributo dos autores

Conceptualização, A.C.E. e J.C.; metodologia, A.C.E. e J.C.; análise formal, A.C.E. e J.C.; investigação, A.C.E. e J.C.; redação do draft original, A.C.E. e J.C.; redação, revisão e validação do texto final, A.C.E. e J.C.; supervisão A.C.E. e J.C. Todos os autores leram e concordaram com a versão final do manuscrito.

Conflito de interesses

Os autores declaram não possuir quaisquer conflitos de interesse.

Referências bibliográficas

1. Schrager S, Ovsepyan V, Burnside E. Breast cancer screening in older women: the importance of shared decision making. J Am Board Fam Med. 2020;33(3):473-80. [ Links ]

2. Jacklyn G, McGeechan K, Houssami N, Bell K, Glasziou PP, Barratt A. Overdiagnosis due to screening mammography for women aged 40 years and over. Cochrane Database Syst Rev. 2018;2018(7):CD013076. [ Links ]

3. Royal Australian College of General Practitioners. Guidelines for preventive activities in general practice [Internet]. 9th ed. East Melbourne: RACGP; 2016. Available from: https://www.racgp.org.au/download/Documents/Guidelines/Redbook9/17048-Red-Book-9th-Edition.pdf [ Links ]

4. U.S. Preventive Service Task Force. Breast cancer: screening [homepage]. Rockville: USPSTF; 2016 [updated 2016 Jan 11; cited 2020 30 Jun]. Available from: https://www.uspreventiveservicestaskforce.org/uspstf/recommendation/breast-cancer-screeningLinks ]

5. Canadian Task Force on Preventive Health Care. Breast cancer screening for women not at increased risk [Internet]. CTFPHC; 2020 [cited 2020 30 Jun]. Available from: https://canadiantaskforce.ca/wp-content/uploads/2020/04/CTFPHC_Breast_Cancer_1000_Person-Final.pdfLinks ]

6. Direção-Geral da Saúde. Programa nacional para as doenças oncológicas: orientações programáticas [homepage]. Lisboa: DGS; 2017. Available from: https://www.dgs.pt/ficheiros-de-upload-3/programas-cancro_old-pdf.aspx [ Links ]

7. World Health Organization. WHO position paper on mammography screening [homepage]. Geneva: WHO; 2014. Available from: https://apps.who.int/iris/handle/10665/137339 [ Links ]

8. Direção-Geral da Saúde. Abordagem imagiológica da mama feminina: norma n.º 051/2011, de 27/12/2011. Lisboa: DGS; 2011. [ Links ]

9. Alber K, Kuehlein T, Schedlbauer A, Schaffer S. Medical overuse and quaternary prevention in primary care: a qualitative study with general practitioners. BMC Fam Pract. 2017;18(1):99. [ Links ]

10. Broeiro P. Método clínico centrado no paciente: a matriz da eficiência e da evidência. Rev Port Med Geral Fam. 2014;30(5):282-4. [ Links ]

11. Rodrigues R, Maria AR, Bragança A, Simões S, Tomé A, Rodrigues A, et al. Comunicação e percepção de risco: diferentes modos de comunicar, diferentes modos de partilhar a decisão clínica. Rev Port Med Geral Fam. 2015;31(2):125-33. [ Links ]

Recebido: 23 de Julho de 2020; Aceito: 15 de Fevereiro de 2022

Endereço para correspondência Ana Catarina Esteves E-mail: anaesteves@campus.ul.pt

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