Introdução
Os dispositivos intrauterinos (DIU) são um método contracetivo eficaz,1 de longa duração, amplamente colocados por médicos de família e ginecologistas, e representam o método de eleição de 14% das mulheres a nível mundial.2 Apesar de serem muito seguros, com poucos efeitos secundários, existem algumas possíveis complicações associadas à sua colocação, como perfurações e abcessos.3
Estão descritos na literatura mais de mil casos de DIU que migraram do útero até outras localizações, como o cólon sigmoide ou a cavidade peritoneal,4-5 devido a perfuração uterina aquando da colocação ou por migração espontânea. A migração transuterina transvesical espontânea de um DIU é uma complicação extremamente rara,6-7 estando descrito apenas outro caso em Portugal.8 A remoção endoscópica do corpo estranho é habitualmente a opção terapêutica escolhida.
Este caso tem como objetivo alertar para a possibilidade de migração do DIU e para a importância do seguimento regular das mulheres que escolhem este método contracetivo.
Descrição do caso
Relata-se o caso de uma utente de 54 anos, sexo feminino, natural da Guiné-Bissau e residente em Lisboa desde há 15 anos, casada, com o 6.o ano de escolaridade, pertencente a uma família nuclear na fase VI do ciclo de Duvall.
É observada pela primeira vez em agosto de 2010, na sua unidade de saúde familiar (USF), por algias pélvicas com dois meses de evolução, acompanhadas por dispareunia, irregularidades menstruais e corrimento vaginal acinzentado, homogéneo e com odor, compatível com vaginose bacteriana. Não tinha antecedentes pessoais de relevo, não fazia habitualmente medicação nem utilizava qualquer método contracetivo. Nos antecedentes obstétricos constavam dois partos eutócicos aos 20 e 22 anos e uma interrupção voluntária da gravidez com necessidade de curetagem uterina aos 24 anos.
Nesta primeira consulta é medicada empiricamente com óvulos vaginais de metronidazol 500mg durante cinco dias, assumindo-se o diagnóstico de vaginose e é solicitada uma ecografia ginecológica, que não apresentou alterações à excepção de uma formação anecogénica de contornos definidos, em relação com mioma de 6mm, não havendo menção a DIU.
Em fevereiro de 2011 volta à consulta por persistência das queixas e por apresentar disúria com alguns dias de evolução. A utente, na altura com 44 anos, estava a tentar engravidar há oito meses e trazia consigo análises pré-concecionais, que revelaram uma anemia normocítica e normocrómica (com uma hemoglobina de 10,9g/dL), hematúria microscópica, urocultura negativa e exsudado positivo para Gardnerela vaginallis. Ao exame objetivo apresentava-se com bom estado geral, abdómen sem alterações cutâneas, depressível, sem massas ou organomegalias, com dor à palpação profunda do hipogastro, sem defesa ou reação peritoneal, com Murphy renal negativo bilateralmente. Fez tratamento dirigido à presumível vaginose e repetiu a análise de urina, sendo esta negativa.
Durante o ano de 2012 recorreu em duas ocasiões à USF por dispareunia e, por manter queixas, foi referenciada ao serviço de ginecologia do hospital de referência, onde manteve seguimento durante dois anos e realizou ecografias ginecológicas que não revelaram alterações. Com o diagnóstico presuntivo de síndroma de dor pélvica teve alta hospitalar em fevereiro de 2015.
Em setembro de 2015, após três anos sem consultas na USF, é observada novamente pelo seu médico de família, no seguimento de alta do serviço de urgência por disúria e dispareunia. No serviço de urgência realizou urocultura, com resultado negativo, e urina II com vestígios de sangue. Por manter dispareunia repetiu ecografia ginecológica, que documentou apenas um pequeno mioma de 6mm no fundo uterino.
Entre 2015 e 2019 é consultada em consulta de dia em quatro ocasiões diferentes, sempre por infeções urinárias, com uroculturas positivas que foram medicadas com antibiótico.
Em novembro de 2019 recorre a consulta de planeamento familiar com hematúria, dispareunia, disúria e desconforto pélvico. Nessa consulta reitera as queixas e manifesta o seu desconforto com os sintomas de dispareunia e desconforto pélvico, que interferiam significativamente com a sua qualidade de vida. São solicitados exames complementares de diagnóstico, que traz à consulta em janeiro de 2020. A ecografia renal não revela alterações, mas na ecografia vesical é descrita a presença de formação hiperecogénica linear, compatível com um DIU. Ao questionar a utente descobre-se que tinha colocado um DIU de cobre há mais de 20 anos, na Guiné-Bissau, que nunca tinha sido retirado ou expulso e que a utente acreditava já não ter, devido à realização seriada de ecografias ginecológicas onde não se descrevia o dito dispositivo.
É encaminhada para o serviço de urgência de urologia, onde se confirma a presença do DIU alojado na parede da bexiga, que foi posteriormente retirado por cistoscopia.
Em outubro de 2020, em consulta presencial na USF, refere a resolução completa das queixas urinárias. A remoção do DIU migrado levou à resolução da dispareunia e das algias pélvicas, com melhoria franca da qualidade de vida e da vida sexual da utente.
Comentário
Na literatura praticamente todos os casos de DIU extrauterinos são descritos como consequência da migração dos mesmos e este caso pode enquadrar-se nessa situação. Como resultado da migração, o DIU pode alcançar a cavidade peritoneal e perfurar órgãos, causar aderências ou inflamação crónica.9
O mecanismo por detrás da migração é desconhecido, mas associa-se, em alguns casos, à presença de fatores de risco para a diminuição da espessura da parede uterina, como anomalias congénitas, infeções ou o pós-parto.10 Em 1973, Esposito e colaboradores11 postularam dois possíveis mecanismos de perfuração uterina. Segundo estes autores, a perfuração pode ser traumática e imediata no momento da colocação ou acontecer por erosão gradual do miométrio. A taxa de perfuração uterina secundária a DIU é de 1/1.000 DIU colocados, mas dado que a perfuração pode permanecer assintomática, a frequência real poderá ser superior à reportada.12
Nos casos dos DIU intravesicais podem encontrar-se livres ou na parede vesical. As mulheres podem apresentar-se com síndroma de dor pélvica, disúria, hematúria, corrimento vaginal ou infeções urinárias de repetição.9,13 Está descrita a formação de cálculos vesicais8 e todos os DIU devem ser removidos no momento do diagnóstico para diminuir as possíveis complicações.8,10,14
Antes de proceder à remoção de um DIU extrauterino, é necessário excluir a possibilidade de gravidez. A radiografia simples do abdómen permite localizar grosseiramente o DIU. Seguidamente, outros exames complementares deverão ser realizados, como TC abdomino-pélvica, para definir de forma precisa a localização e avaliar a presença de possíveis complicações.10,12,14 Os DIU intravesicais podem ser retirados por cistoscopia ou procedimentos suprapúbicos, devendo ser avaliada a necessidade de terapia antibiótica.14
No caso descrito não se conhece a causa da migração ou se houve perfuração no momento da colocação do DIU e não existe referência a sintomas até 10 anos após a colocação. Destaca-se o não pedido de ecografia renal e vesical para o estudo da hematúria, o que teria ajudado a obter um diagnóstico mais precoce, evitando a perda de qualidade de vida da utente e o consumo excessivo de consultas.
O médico de família é treinado para lidar com a incerteza diagnóstica.16 No processo diagnóstico baseia-se na anamnese e na prevalência da entidade na comunidade. Porém, este caso recorda que deve ter-se em atenção causas mais raras de uma situação comum, particularmente perante a persistência das queixas.
A pressão do tempo e da agenda, o contexto da consulta de dia, o desconhecimento da totalidade do processo médico do utente presencial, aliados a possíveis falhas na comunicação médico-utente, coloca os profissionais em risco de erro e de situações como a descrita. Neste caso, o diagnóstico tardio da situação pode dever-se ao facto de a utente ter sido maioritariamente observada em consulta de dia, por diferentes médicos que não o seu médico de família, o que pode ter dificultado a integração dos dados clínicos. Para evitá-lo deve-se recordar o essencial: a realização minuciosa da anamnese e o exame objetivo, a codificação adequada dos problemas abordados em consulta, a atualização constante da lista de problemas do utente e a revisão prévia do processo antes de cada consulta.
Como descrito no Modelo do Queijo Suíço, de Reason (2000),15 num modelo complexo como o Sistema de Saúde existem erros que podem ser prevenidos através da implementação de barreiras ou processos. Porém, cada processo tem falhas e, quando elas coincidem, ocorre o imprevisto ou, neste caso, prejuízo para o utente.
Em resumo, as doentes portadoras de DIU devem ser submetidas a acompanhamento clínico regular.10,14 Ante suspeita de DIU “desaparecido” numa mulher com dor pélvica, disúria, hematúria, corrimento vaginal ou infeções urinárias de repetição deve proceder-se sempre à realização de exames complementares12 para descartar a hipótese rara, mas possível, da sua migração.