Introdução
A infeção por Chlamydia trachomatis é a infeção sexualmente transmissível bacteriana mais comum no mundo.1-2 É uma patologia silenciosa na maioria das vezes, mas pode cursar com graves consequências a curto e longo prazo, em especial no sexo feminino. Em 2016, a Organização Mundial da Saúde (OMS) estimou que globalmente ocorram cerca de 127 milhões de casos por ano.2 No relatório do European Center for Disease Prevention and Control (ECDC) de 2018 foram reportados 406.406 casos desta infeção nos 26 Estados-membro da União Europeia, tendo-se verificado que 61% destes correspondiam a casos em indivíduos com idade compreendida entre os 15 e 24 anos.3 Nesse relatório foram reportados apenas 530 casos em Portugal, pois, apesar de ser uma doença de notificação obrigatória desde 2014, não existem recomendações formais orientadoras do diagnóstico e tratamento desta infeção.3-5
A OMS estima que a prevalência global seja de 3,8% no sexo feminino e de 2,7% no sexo masculino, com variações regionais entre 1,5% e 7,0% no sexo feminino e 1,2 e 4,0% no sexo masculino. A incidência global é calculada em cerca de 34 casos em cada 1.000 mulheres e de 33 também em cada 1.000 homens.2 Em Portugal, os estudos sobre a prevalência e incidência desta entidade são ainda escassos.6
A medicina geral e familiar tem um papel preponderante na prevenção e atuação nas infeções sexualmente transmissíveis. Este trabalho pretende rever as recomendações internacionais e sublinhar os benefícios do rastreio da infeção por Chlamydia trachomatis.
O rastreio da infeção por chlamydia trachomatis
O que é a infeção por Chlamydia trachomatis?
A infeção por Chlamydia trachomatis pode manifestar-se de três formas: (a) como tracoma, a forma mais comum de cegueira no mundo, particularmente prevalente no continente africano; (b) como linfogranuloma venéreo, mais comum nos países desenvolvidos em homens que têm sexo com homens; (c) e como infeção urogenital, sob a forma de cervicite no sexo feminino e como uretrite ou proctite em ambos os sexos.7 Contudo, é mais frequente a infeção cursar assintomaticamente (cerca de 75% no sexo feminino), pelo que passa frequentemente despercebida.7-8 Os estudos sugerem que uma infeção assintomática persista entre um e dezoito meses, sendo o tempo médio de duração calculado em 1,31 anos.6
A transmissão ocorre por via sexual, com risco de 10 a 20% por cada episódio de contacto sexual. Pode também ocorrer durante o parto, no caso de mães infetadas não tratadas, causando ophthalmia neonatorum e pneumonia no recém-nascido.6
À semelhança do que acontece noutras infeções sexualmente transmissíveis, esta ocorre mais frequentemente nos grupos etários mais jovens. Apesar de todos os indivíduos sexualmente ativos incorrerem em risco de serem infetados, os jovens são particularmente suscetíveis por uma combinação de fatores comportamentais e biológicos, como múltiplos parceiros sexuais, uso inconsistente de preservativo e ectopia cervical.3,8-10
O gold standard para o diagnóstico é a metodologia molecular através de testes de amplificação de ácidos nucleicos.10 São os mais utilizados por serem os mais sensíveis e específicos para a pesquisa de Chlamydia trachomatis e também dada a facilidade de colheita das amostras - urina (técnica do jato inicial) ou exsudado vaginal ou cervical no sexo feminino ou exsudado uretral ou retal em ambos os sexos. Tem a vantagem ter baixo custo e não ser invasivo. É importante ressalvar que os testes serológicos não são recomendados para a pesquisa desta infeção.7,10
Esta infeção é tratável, de forma fácil e eficaz, através de antibioterapia por via oral.7-11
Porque devemos ficar atentos à infeção por Chlamydia trachomatis?
Apesar de ser frequentemente uma infeção silenciosa, a Chlamydia trachomatis pode resultar em consequências severas a curto e longo prazo, em especial no sexo feminino, como doença inflamatória pélvica, infertilidade por fator tubário, gravidez ectópica e dor pélvica crónica.1,7,9-10 Apesar de esta infeção não ser a única causa das complicações mencionadas, está na origem de um elevado número de casos. Os estudos apontam que 17,1% das infeções evoluem para doença inflamatória pélvica e estima-se que 29% dos casos de infertilidade por fator tubário e 4,9% dos casos de gravidez ectópica estejam associados à infeção por este agente.7 Outras complicações associadas são o aborto espontâneo, corioamnionite, rutura prematura de membranas, parto pré-termo e nados mortos.1,6,10 Devem ainda ser considerados os fardos económicos que estas situações representam para os sistemas de saúde e o impacto psicológico na mulher e no casal. As infeções de repetição são comuns e representam maior risco de complicações reprodutivas. A infeção por Chlamydia trachomatis trata-se de um problema de saúde pública significativo.7,10
A evidência sugere que o rastreio da infeção por Chlamydia trachomatis é custo-efetivo quando a prevalência é superior a 3%.9 Diversos países dispõem de programas de rastreio desta infeção com benefícios comprovados.12-13 No Reino Unido verificou-se uma diminuição da prevalência da infeção por Chlamydia trachomatis, uma redução do tempo médio de duração (reduz o tempo em que os indivíduos são suscetíveis de transmitir a infeção) e um declínio na taxa de doença inflamatória pélvica.12 Na Escandinávia registou-se uma diminuição do risco de infertilidade e de gravidez ectópica.13 Constatou-se que 61% dos casos de doença inflamatória pélvica atribuíveis à infeção por Chlamydia trachomatis e 22% dos casos de doença inflamatória pélvica de todas as causas podem ser diretamente prevenidos através da realização do teste de rastreio anual desta infeção.7
A medicina geral e familiar prima pela promoção da saúde e prevenção da doença, por isso o médico de família tem um papel preponderante na prevenção e atuação na infeção por Chlamydia trachomatis.
Como deve ser feito o rastreio da infeção por Chlamydia trachomatis?
Segundo as recomendações internacionais, o rastreio da infeção por Chlamydia trachomatis deve ser feito em todas as mulheres não-grávidas sexualmente ativas com idade inferior a 25 anos, assim como naquelas com idade igual ou superior a 25 anos e que apresentem fatores de risco para a infeção.10,14 Segundo as guidelines da United States Preventive Services Task Force (USPSTF), o rastreio deve ainda ser realizado em todas as mulheres grávidas, independentemente da idade, que apresentem fatores de risco para a infeção. Os fatores de risco são novo parceiro sexual, múltiplos parceiros sexuais e parceiro sexual com infeção sexualmente transmissível.10-11 De salientar que a evidência atual sobre os benefícios do rastreio no sexo masculino é insuficiente; no entanto, pode ser considerado em grupos de jovens com elevada prevalência da infeção (e.g., homens que têm sexo com homens, instituições correcionais, recruta militar e adolescentes).14-15
À semelhança do explicado anteriormente, o rastreio é feito através de teste de amplificação de ácidos nucleicos, em amostra de urina ou de exsudado uretral, cervical ou vaginal. O teste deve ser realizado com periodicidade anual nas mulheres sexualmente ativas não-grávidas e as mulheres grávidas devem realizar o teste na primeira consulta pré-natal e também no terceiro trimestre de gestação.10,14 Os homens que têm sexo com homens devem realizar o rastreio pelo menos uma vez por ano.15
Os casos de pesquisa de infeção por Chlamydia trachomatis positivos devem ser sempre tratados, independentemente da presença de sintomatologia. A primeira linha de tratamento é azitromicina 1g em dose única ou doxiciclina 100mg de 12 em 12 horas durante 7 dias. Em casos de intolerância ou alergia a estes fármacos, as alternativas são tetraciclina 500mg de 6 em 6 horas durante 7 dias ou ofloxacina 200 a 400mg de 12 em 12 horas durante 7 dias. As grávidas podem ser tratadas com uma dose única de 1g de azitromicina ou, alternativamente, com amoxicilina 500mg de 8 em 8 horas durante 7 dias.11
Os parceiros sexuais das mulheres diagnosticadas no rastreio devem ser referenciados para avaliação médica e devem também ser tratados, caso haja história de contacto sexual vaginal, anal ou oral nos 60 dias anteriores ao diagnóstico. Caso o último contacto sexual tenha acontecido há mais de 60 dias deve ser tratado o parceiro sexual mais recente.13-14 O esquema terapêutico recomendado é idêntico ao das mulheres não-grávidas. Esta atitude permite reduzir os casos de reinfeção.14
Ainda de forma a evitar situações de reinfeção recomenda-se abstinência sexual durante sete dias após a conclusão do tratamento e até todos os parceiros terem sido tratados.14 Tendo em conta que a abstinência sexual pode não ser uma recomendação realista deve ser encorajado o uso de preservativo.10
Os indivíduos diagnosticados devem realizar um teste de reavaliação três meses após o fim do tratamento. No caso das grávidas é feito após três a quatro semanas, de forma a reduzir o risco de morbilidade materno-fetal.14 O teste de reavaliação não se justifica pela possibilidade de falha da terapêutica - pois a antibioterapia é muito eficaz -, mas pelo facto de a reinfeção ser comum, especialmente se os parceiros não forem tratados.10
O rastreio da infeção por Chlamydia trachomatis é importante e relevante pois estamos perante uma entidade que é prevalente, muitas vezes assintomática e que conduz a consequências graves. O diagnóstico é um teste económico e não invasivo, é facilmente tratável e o rastreio revelou-se custo-efetivo. O diagnóstico precoce em assintomáticos, e consequente tratamento, poderá contribuir para a redução das complicações severas que advêm desta infeção.7,12
A edição de 2018 do estudo Health behaviour in school-aged children - realizado em colaboração com a Organização Mundial da Saúde e que conta com dados de vários países europeus - constatou que 63,2% dos jovens em Portugal afirmam que tiveram a primeira relação sexual aos 14 anos ou mais. Desta forma, é imperativo neste grupo etário a abordagem da temática da vida sexual e a explicação dos riscos, como as infeções sexualmente transmissíveis. O rastreio da Chlamydia trachomatis deve ser ponderado.16
Poderão surgir algumas barreiras ao rastreio. Em estudos realizados sobre a experiência noutros países verificou-se que frequentemente são perdidas oportunidades. Esta falha é atribuída tanto aos profissionais de saúde como aos utentes. A adesão ao rastreio por parte dos utentes é menos provável se não tiverem conhecimento da prevalência desta infeção, da natureza frequentemente assintomática e das consequências. Alguns recusam o rastreio por medo do estigma de realizar o teste de pesquisa de uma infeção sexualmente transmissível ou de ser diagnosticado.10 O diagnóstico pode também causar ansiedade.10,14 É tarefa do médico oferecer oportunisticamente o teste de rastreio, fornecer todas as informações e desmistificar a doença, de maneira a garantir uma decisão informada e consciente.10
Conclusão
A infeção por Chlamydia trachomatis é uma causa importante e significativa de doença inflamatória pélvica, infertilidade por fator tubário, gravidez ectópica e dor pélvica crónica. Estas consequências condicionam a qualidade de vida, causam impacto psicológico e implicam encargos financeiros pesados para os sistemas de saúde, pelo que esta infeção deve ser encarada como um problema de saúde pública. A intervenção nesta questão é essencial para melhorar os cuidados de saúde prestados.
O elevado número de diagnósticos realizados entre jovens indica que são necessários maiores esforços no controlo desta entidade em Portugal. Na estratégia de abordagem à infeção por Chlamydia trachomatis é essencial incluir programas de prevenção primária em indivíduos e grupos de risco, linhas orientadoras para o diagnóstico e tratamento, sistema de vigilância dos casos diagnosticados, que incluam a notificação e tratamento dos parceiros. Estas atitudes poderão resultar num impacto positivo na saúde pública.
O rastreio oportunístico nas mulheres jovens sexualmente ativas e nas mulheres com fatores de risco para a infeção é relevante na medida em que se trata de uma patologia comum, frequentemente assintomática, em que a sua pesquisa consiste num teste simples, não invasivo e de baixo custo, é tratável de forma fácil e eficaz com antibioterapia e os estudos têm vindo a demonstrar a sua custo-efetividade. A realização do rastreio contribui para a redução da prevalência da infeção por Chlamydia trachomatis e, desta forma, para o declínio das suas consequências devastadoras.
O médico de família, através da sua abordagem holística centrada na pessoa e enquadrada no contexto familiar e social, tem definitivamente um papel determinante na prevenção das infeções sexualmente transmissíveis e promoção do seu rastreio, neste caso em particular, do rastreio da infeção por Chlamydia trachomatis. É ainda essencial desmistificar e investir na educação para a saúde, motivando alterações no estilo de vida e evicção de comportamentos de risco.