Introdução
Em 11 de março de 2020, a Organização Mundial da Saúde declarou o estado de pandemia associada à infeção pelo novo coronavírus (SARS-CoV-2). O agravamento da situação epidemiológica obrigou a uma adaptação dos cuidados de saúde em resposta à progressão da infeção, com base no distanciamento social.
A 18 de março do mesmo ano foi decretado o estado de emergência em Portugal, tendo sido suspensa a maior parte da atividade clínica presencial, à exceção do atendimento a grupos vulneráveis (crianças, grávidas e situações particulares). Foi necessário reorganizar toda a dinâmica dos serviços, bem como o circuito do utente no interior da instituição. Os profissionais de saúde depararam-se com a necessidade de executar a quase totalidade dos contactos com os utentes de forma não presencial.
No que concerne à oferta assistencial de consulta não programada (consulta do próprio dia, por iniciativa do utente), surgiu a necessidade de criar uma alternativa para o atendimento aos utentes da Unidade de Saúde Familiar (USF). Assim, foi criada a linha de apoio ao utente da USF, segundo um protocolo de organização interna.
A consulta telefónica pode ser redutora em termos de comunicação e observação do utente, mas poderá trazer vantagens, não só pelo contexto epidemiológico, mas também pela simplificação do circuito do utente.
Objetivos
O projeto da USF teve como objetivos: responder às necessidades do contexto pandémico; prevenir o contágio pela COVID-19, minimizando a exposição entre utentes e profissionais; prestar informação relativa às vias de transmissão do vírus na comunidade; garantir a acessibilidade dos utentes aos cuidados de saúde primários; minimizar as consequências do distanciamento social, oferecendo alternativas à consulta presencial; e medir e avaliar a resposta da estratégia de adaptação da USF ao contexto pandémico.
Implementação do projeto
A pandemia COVID-19 trouxe desafios a todos os profissionais de saúde e obrigou a uma rápida adaptação dos serviços para que se pudesse manter a resposta e qualidade dos cuidados.
Na fase inicial da pandemia, toda a atividade clínica que, até à altura, era feita de forma presencial foi perturbada pela restrição da entrada dos utentes na unidade de saúde. Perante a imposição do distanciamento social, a resposta foi estruturada essencialmente em duas vertentes:
• Criação de circuitos internos para atendimento presencial, com fluxograma distinto para grupos vulneráveis e restantes utentes, com triagem de casos suspeitos (através de medição de temperatura e questionário);
• Otimização da rede telefónica para garantir o atendimento das solicitações de consulta não programada, nomeadamente para utentes com necessidades de cuidados médicos urgentes.
Foi necessário reunir esforços e procurar novas ferramentas e estratégias que permitissem manter a ponte com os utentes e garantir a sua acessibilidade. Além disso, sentiu-se a necessidade de assegurar a disponibilidade para o esclarecimento de dúvidas dos utentes sobre um vírus até então desconhecido, prevenir uma potencial exposição da população ao mesmo, mantendo a resposta à restante atividade clínica inerente aos cuidados de saúde primários.
Vários estudos sugerem que, em cenários com exigências semelhantes ao atual, as consultas telefónicas são uma opção custo-efetiva alternativa às consultas presenciais.1 O contacto telefónico demonstrou ser equiparável ao contacto presencial no que se refere à promoção da saúde, triagem e gestão da doença crónica.2
Apesar de contemplado nos procedimentos pré-pandemia, as vantagens de um atendimento telefónico de qualidade e fiável sempre foram limitadas pela inexistência de uma central, de equipamentos profissionais individuais e pela manutenção deficitária dos que existem. Esta limitação de longa data associada à conveniência e preferência pelo contacto presencial, reduziram, até à data, o acesso telefónico a uma via complementar e de uso esporádico. Face à mudança de paradigma, os profissionais da unidade criaram uma alternativa eficaz, segura e fundamental para garantir a resposta aos utentes numa altura tão desafiante.
Neste contexto, a equipa da USF adquiriu, cumulativamente, de forma autónoma e sem qualquer apoio, seis telemóveis com seis linhas diferentes. Inicialmente, foram destinadas três linhas para apoio médico geral, duas das quais para apoio com questões exclusivamente relacionadas com a COVID-19, estabelecendo uma linha direta médico-utente. Os telemóveis eram distribuídos de forma rotativa por todos os médicos do serviço, segundo uma escala, estando operacionais durante o horário de funcionamento da unidade. Os números de telefone foram amplamente difundidos para toda a comunidade através das redes sociais da USF, divulgados pela Junta de Freguesia, pela Câmara Municipal de Vila Franca de Xira e pelas farmácias locais.
De forma a registar os contactos telefónicos médicos foi criada uma base de dados, atualizada diariamente, onde constavam os seguintes dados: data, identificação do utente, profissional responsável pelo utente e pelo seu atendimento, motivo de chamada, estado de resolução e orientação. O objetivo seria avaliar o número e a frequência de chamadas, os profissionais envolvidos e a sua rotatividade, as principais motivações do contacto e a sua evolução e orientação ao longo do tempo. Este processo permitiu partilhar os resultados com a equipa e ajustar periodicamente as linhas de apoio de acordo com as necessidades percebidas. Desde cedo que se subentendeu também que seria uma oportunidade e uma mais-valia partilhar a experiência da unidade.
Após a análise inicial dos motivos de contacto, que não eram apenas do foro clínico, mas também organizacional e relacionados com outros grupos profissionais, foi necessário expandir e reestruturar a resposta. Assim, mantiveram-se quatro linhas médicas - duas linhas para apoio médico geral e duas linhas para assuntos relacionados com a COVID-19 -, criou-se uma linha de apoio de enfermagem e uma linha de apoio do secretariado clínico (que manteve também o atendimento prévio pela única linha geral da USF). Esta redistribuição permitiu orientar os doentes de forma mais direta para as diversas dúvidas e problemas de saúde, levando a uma resposta e resolução mais rápida e eficaz.
Além da resolução da maioria dos problemas e questões apresentados pelos utentes, merece também destaque o protocolo de referenciação à consulta de psicologia do ACeS diretamente através da base de dados criada.
Resultados
Avaliou-se um período de seis meses (entre 16 de março e 16 de setembro de 2020). Foram registadas 7.535 chamadas nas linhas de apoio ao utente: 5.281 nas linhas de apoio médico geral, 230 nas linhas médicas relacionadas com a COVID-19 e 2.024 nas linhas de apoio de enfermagem. Foram feitas 51 referenciações para apoio psicológico.
Através das linhas telefónicas foi possível:
• Esclarecer a população sobre sintomas, contexto epidemiológico, medidas de proteção individual, ausências laborais ou questões burocráticas relacionadas com a pandemia pela COVID-19, com base em fontes de informação atualizada;
• Prestar cuidados a utentes com suspeita ou infeção COVID-19 confirmada, mantendo uma «via verde» para estes casos através da manutenção das linhas de apoio exclusivas para estes doentes;
• Triar os motivos de consulta, selecionando aqueles que justificassem uma observação presencial, de forma a proteger utentes e profissionais de eventuais casos suspeitos;
• Garantir a acessibilidade no que diz respeito ao aconselhamento clínico e orientação nas situações de doença aguda ou exacerbação de doenças crónicas, minimizando as deslocações desnecessárias dos utentes ao centro de saúde;
• Referenciar, quando indicado, utentes para consulta presencial na unidade ou serviços de continuidade (ADC/ADR, AC ou SU), consulta hospitalar e consulta de psicologia, com resposta a curto prazo.
Este projeto apenas foi possível graças ao esforço e adaptação dos profissionais da USF, que se submeteram a várias mudanças de horário. Apesar da inevitável sobreposição de tarefas, conseguiram manter toda a restante atividade clínica redistribuída em teleconsulta e consulta presencial de acordo com as determinações do plano de contingência. A adesão crescente da população às linhas de apoio é uma manifestação de reconhecimento da importância do projeto e tem sido um dos seus grandes motores.
Discussão
O desafio de gerir a acessibilidade a uma unidade de saúde é também o desafio de gerir as expectativas dos utentes e dos profissionais, mas também acompanhar a sua evolução, sendo fundamental a atenção às necessidades de ambos.
As restrições que obrigaram a medidas extraordinárias no contexto da pandemia COVID-19 serão levantadas e a presente experiência pode fornecer bases para o futuro, nomeadamente ao nível da diversificação da acessibilidade a uma unidade de saúde familiar, salientando a necessidade de investimento nesta área.
Existem limitações inerentes à consulta não presencial, nomeadamente os aspetos não verbais da comunicação e a observação física do utente. Esta análise e este relato de prática poderão contribuir para a expansão do conhecimento relativamente aos contactos em que esta tipologia de consulta seria mais pertinente. Poderão também ajudar a compreender em que medida e proporção deverá o horário do médico de família adaptar-se de forma a incluir esta tipologia de consulta na sua atividade, permitindo uma maior eficiência sem prejuízo da qualidade e da satisfação. Por fim, poderão impulsionar a discussão acerca de formas e modelos complementares de consulta que contribuam para a diminuição de limitações percebidas, como a vídeoconsulta, a expansão da utilização do correio electrónico e o uso de serviços de mensagem instantânea.
No contexto atual e como se verificou na prática, a telemedicina tem-se revelado uma alternativa adequada para o atendimento e orientação dos utentes.3 Vários autores consideram haver uma relação custo-benefício favorável à telemedicina, nomeadamente pela diminuição das deslocações desnecessárias aos centros de saúde e pelo aumento da eficiência das consultas, incluindo uma redução do tempo de consulta e uma maior satisfação do utente.4
Contributo dos autores
Luís Paulo Costa: conceptualização, metodologia, redação do manuscrito original, administração do projecto; Luís Terroso Lira: conceptualização, metodologia, redação do manuscrito original; Alice Magalhães: conceptualização, metodologia, redação do manuscrito original; Ina Garuta: conceptualização, metodologia, redação do manuscrito original; Nuno Esperanço: conceptualização, metodologia, redação do manuscrito original; Valeryia Real: conceptualização, metodologia, redação do manuscrito original; Hugo Silva: conceptualização, metodologia, redação, revisão e validação; Sérgio Barros Cardoso: conceptualização, metodologia, redação, revisão e validação; Ana Vicente: conceptualização, metodologia, redação, revisão e validação.