Introdução
A infeção do trato urinário (ITU) é a segunda infeção mais frequente da comunidade, logo após as infeções respiratórias,1 representando uma causa importante de uso de antibioterapia em medicina geral e familiar. Dados europeus indicam que 70-85% dos antibióticos são prescritos em ambulatório.2-3 As ITU afetam globalmente mais as mulheres que os homens em todas as faixas etárias.
A necessidade de iniciar um antibiótico, muitas vezes em contexto de doença aguda, faz com que a sua escolha seja decidida empiricamente, ou seja, baseia-se em probabilidades resultantes de observações históricas e do contexto epidemiológico.4
A Escherichia coli é o micro-organismo que mais frequentemente causa ITU, sendo responsável por até 68,4% dos casos, seguindo-se a Klebsiella pneumoniae (7,9%) e o Proteus mirabilis (5,2%).5 A nível europeu, 58,3% das estirpes de E. coli isoladas tinham resistência a pelo menos um dos grupos principais de antimicrobianos (e.g., penicilinas, fluoroquinolonas, cefalosporinas de 3ª geração, aminoglicosídeos ou carbapenemos, por ordem decrescente).6 Em Portugal, os estudos sobre ITU da comunidade revelam resistência considerável da E.coli às penicilinas, quinolonas e cotrimoxazol, e baixa resistência à nitrofurantoína e à fosfomicina.7
A norma de orientação clínica (NOC) nº 015/2011, da Direção Geral da Saúde (DGS) - Terapêutica das infecções do aparelho urinário (comunidade)8 - recomenda o tratamento empírico da cistite aguda não complicada com fosfomicina, associação de amoxicilina com ácido clavulânico ou nitrofurantoína (com precaução nos idosos) e desaconselha o uso de quinolonas (por apresentarem uma eficácia menor, elevadas taxas de resistência em Portugal e promoverem a seleção de bactérias multirresistentes). A referida norma recomenda a realização de urocultura prévia ao tratamento de infeção urinária na grávida, na idade pediátrica, no homem, nas infeções complicadas ou recidivantes da mulher adulta e na pielonefrite.
É essencial conhecer a realidade epidemiológica local e o padrão de suscetibilidade antimicrobiana para instituir uma antibioterapia empírica eficaz e limitar as resistências aos antibióticos. A resistência aos antibióticos é um problema crescente de saúde pública, que tem vindo a aumentar na Europa e que no futuro poderá colocar em causa a eficácia e utilidade dos mesmos.9
Com este estudo pretende-se determinar os micro-organismos responsáveis pelas ITU da comunidade na cidade de Almada e o seu padrão de suscetibilidade aos antibióticos. Pretende-se também avaliar se a abordagem deste problema de saúde está a ser corretamente efetuada nos cuidados de saúde primários (CSP), nomeadamente no que diz respeito à antibioterapia empírica instituída e à realização de urocultura quando indicada, de acordo com a NOC referida.
Considera-se que este é um estudo inovador e de extrema importância dada a prevalência do problema de saúde em questão, não tendo os autores conhecimento de outro semelhante nesta área geográfica.
Métodos
Este é um estudo observacional e retrospetivo, que incluiu quatro Unidades de Saúde Familiar (USF) do concelho de Almada: USF São João do Pragal, USF Cova da Piedade, USF Poente e USF Feijó. Estas unidades foram escolhidas por estarem inseridas em pontos distintos do concelho de Almada. Foram incluídos todos os utentes com idade igual ou superior a 18 anos, a quem foram codificados os diagnósticos do ICPC-2 (U71-Cistite/Infeção Urinária Outra e U70-Pielonefrite/Pielite), em consultas de julho a dezembro de 2019 nas unidades referidas. A informação foi recolhida através do programa informático SClínico e da plataforma MIM@UF. Os dados foram analisados em folha Excel construída pelos autores para este estudo. A análise incluiu a frequência simples das variáveis e o cálculo de prevalências. Foram comparados os resultados com as indicações preconizadas para cada caso na NOC da DGS, nomeadamente quanto à indicação para pedido de urocultura e antibioterapia empírica utilizada. O estudo foi aprovado pelo Núcleo de Formação e Investigação do ACeS Almada-Seixal e recebeu o parecer favorável da Comissão de Ética para a Saúde da Administração Regional de Saúde de Lisboa e Vale do Tejo. As variáveis estudadas estão ilustradas na Tabela 1.
Resultados
Esta amostra inclui 963 casos de ITU, sendo que 88,3% ocorreram em indivíduos do sexo feminino.
A distribuição das ITU por grupo etário revelou uma maior prevalência na faixa etária dos 68 aos 77 anos (18,9%), seguida da faixa etária dos 58 aos 67 anos (15,5%). A distribuição por faixa etária encontra-se ilustrada na Figura 1.
Em relação aos diferentes tipos de ITU verificou-se uma maior prevalência de cistite não complicada na mulher não grávida (56,3%), seguida pela cistite complicada ou recidivante na mulher não grávida (26,1%). Não foi identificado qualquer caso de bacteriúria assintomática em candidatos a RTU-P (Figura 2).
Documentaram-se 405 pedidos de urocultura, 71,6% das quais tinham o resultado registado no processo clínico do utente. Das uroculturas registadas, 90,3% foram positivas e 9,7% negativas. As uroculturas pedidas de acordo com o tipo de ITU estão ilustradas na Figura 3.
O micro-organismo mais frequentemente isolado foi a E. coli (em 66,4% dos casos), seguido da K. pneumoniae (14,9%) e do P. mirabilis (7,2%) (Figura 4). Verificou-se que a E. coli continua a ser o mais prevalente em todos os grupos etários e nos diferentes tipos de ITU.
Foi prescrita antibioterapia empírica em 86,7% dos casos, sendo os antibióticos mais utilizados a fosfomicina (58,6%), amoxicilina-ácido clavulânico (15,8%), cefuroxima (7,9%) e nitrofurantoína (6,7%) (Figura 5).
Das uroculturas com resultado registado no processo clínico do utente, apenas 21% tinham registo completo (lista de sensibilidades e resistência aos antibióticos).
O perfil de sensibilidade aos antibióticos foi analisado para os três micro-organismos mais prevalentes (Tabela 2).
Na análise global das diferentes USF verificou-se que a urocultura foi pedida em concordância com a NOC em 70,4% dos casos (Figura 6) e que a antibioterapia empírica esteve de acordo com a NOC em 63% dos casos de ITU. A Figura 7 ilustra a concordância da antibioterapia para cada tipo de ITU.
Analisando individualmente as diferentes unidades verificou-se que na USF Poente a urocultura foi pedida em concordância com a NOC em 79% dos casos, uma taxa superior às restantes unidades (que tiveram taxas equiparáveis entre si). No que diz respeito à antibioterapia empírica destacou-se a USF Cova da Piedade, com uma taxa de concordância com a NOC superior à global (87%) e a USF Feijó com uma taxa inferior (33%).
Discussão
Este estudo confirma o descrito na literatura no que se refere à predominância das ITU no sexo feminino e a uma maior prevalência em pessoas com idade superior a 58 anos (que, no presente estudo, foi de 52,4%). Os estudos analisados relatam 57,7% do total de episódios de ITU em indivíduos com idade igual ou superior a 65 anos.1
A prevalência dos micro-organismos responsáveis pelas ITU foi sobreponível ao descrito em outros estudos,5 sobretudo para os três mais frequentes: E. coli, K. pneumoniae e P. mirabilis. Estes micro-organismos totalizaram 88,9% da amostra.
A escolha da antibioterapia adequada para tratamento da ITU deve basear-se no conhecimento dos principais agentes microbianos envolvidos e no seu perfil de sensibilidade aos antibióticos. Deve considerar-se que o padrão de resistência dos micro-organismos que causam ITU pode variar amplamente entre regiões geográficas, inclusive dentro do mesmo país. Segundo os resultados dos TSA documentados, as estirpes de E. coli foram sensíveis à fosfomicina em 97,3% dos casos, à cefuroxima em 95,2% e à nitrofurantoína em 97,9% (Tabela II). A K. pneumoniae e o P. mirabilis apresentaram uma percentagem significativa de sensibilidade à cefuroxima (96% e 100%, respetivamente). Em relação à resistência aos antibióticos, as estirpes de E. coli foram resistentes à amoxicilina em 41,3% dos casos, à amoxicilina-ácido clavulânico em 28,4%, ao cotrimoxazol em 32,9% e à ciprofloxacina em 21,7%. A K. pneumoniae revelou uma percentagem elevada de resistência à amoxicilina (100%) e o P. mirabilis à nitrofurantoína (100%).
Na análise da concordância dos pedidos de urocultura e antibioterapia empírica nas diferentes unidades com a NOC verificou-se que numa significativa proporção de casos não se atuou de acordo com o recomendado, existindo margem para melhoria futura. Relativamente às orientações para instituição de antibioterapia empírica observou-se uma discrepância importante entre as USF Cova da Piedade e Feijó, que poderá justificar uma intervenção no âmbito da melhoria da qualidade.
É necessário atender às limitações metodológicas do estudo em análise, que se baseou numa pequena amostra da população de Almada, pelo que não permite retirar conclusões definitivas ou extrapoláveis. No futuro seria importante realizar novos estudos em grande escala para confirmar os dados encontrados. Além disso, os registos clínicos insuficientes representaram uma limitação importante deste estudo, enviesando e dificultando a avaliação e os resultados obtidos. Para estudo do perfil de sensibilidade aos antibióticos seria mais adequado um estudo não dependente de registos médicos.
Futuramente pretende-se realizar uma intervenção formativa nas unidades de saúde em questão, com o intuito de melhorar a gestão das ITU à luz das recomendações nacionais e sensibilizar para a importância da qualidade dos registos clínicos eletrónicos.
Conclusão
Pode concluir-se, com este estudo, que as ITU da comunidade são mais frequentes nas mulheres entre os 68 e 77 anos. O micro-organismo mais prevalente é a E.coli, apresentando uma sensibilidade significativa à fosfomicina e à nitrofurantoína, o que confirma que estes são ótimos candidatos a antibioterapia de primeira linha no tratamento empírico das infeções do trato urinário.
Verificou-se uma percentagem considerável de casos de ITU cuja abordagem não está conforme as orientações da DGS, no que diz respeito ao pedido de urocultura e antibioterapia empírica. Assim sendo, no futuro pretende-se realizar um projeto de melhoria da qualidade, de forma a uniformizar cuidados entre as diferentes unidades de saúde e aproximar a prática clínica das recomendações nacionais.