Introdução
A telemedicina integra o conceito de teleconsulta, que consiste num tipo de consulta que pode recorrer a diferentes tecnologias (e.g., telefone, videochamada, plataformas informáticas e/ou correio eletrónico),1 válidas para pesquisa, diagnóstico, tratamento, avaliação e prevenção de doenças, com o objetivo de promover a saúde dos indivíduos e da comunidade.2
A nível mundial, dados de 2010 revelam que as modalidades de teleconsulta mais utilizadas são telerradiografia, teledermatologia, telepsiquiatria e telepatologia.2 O uso da telemedicina para o controlo de patologias crónicas é ainda residual.2 Dos países europeus, 40% refere ter estratégias e políticas para telemedicina; contudo, apenas uma minoria dessas políticas nacionais foi totalmente implementada.2
A nível nacional não existem dados qualitativos referentes ao tipo de teleconsulta mais realizado. Os dados quantitativos referentes ao número de teleconsultas permite constatar que têm aumentado de forma consistente desde 2017, e sobretudo durante o ano de 2020, no qual se observou um aumento mensal entre 30-40%, comparativamente com o ano homólogo de 2019.3 Este aumento do recurso à teleconsulta durante o ano 2020 foi impulsionado pela necessidade de afastamento social no contexto da pandemia por SARS-CoV-2.
A prática clínica tem vindo a ser afetada negativamente pelo aumento da carga de trabalho, tanto quantitativamente, dada a dimensão das listas de utentes por médico, como qualitativamente, uma vez que grande parte dos utentes tem patologias crónicas que requerem monitorização periódica.4 Portugal tem uma população envelhecida e com diversas patologias crónicas. Indicadores de 2019 revelam que Portugal é o terceiro país da União Europeia com a média de idade mais alta da população residente,5 enquanto dados de 2015 demonstram que 57,8% da população tinha pelo menos uma doença crónica.6 Neste contexto, a teleconsulta pode ser uma alternativa para manter a qualidade e frequência da monitorização destes utentes.
O tema da telemedicina é conceptual e teoricamente estudado há vários anos. Contudo, do ponto de vista prático, ainda é um tema pouco explorado. O uso da telemedicina no contexto de monitorização de doenças crónicas segue a mesma tendência. Dada a necessidade de intervenção na prática clínica atual, a aplicação da telemedicina através de teleconsulta pode ser uma alternativa ao acompanhamento habitual ou presencial.
Assim, esta revisão tem como objetivo avaliar se o recurso à teleconsulta nos utentes com uma ou mais doenças crónicas tem impacto positivo na morbilidade e mortalidade.
Métodos
Foi realizada uma pesquisa de revisões sistemáticas (RS), ensaios clínicos (EC) e estudos observacionais (EO), utilizando os termos MeSH chronic disease, telemedicine, remote consultation, primary health care e general practice, nas bases de dados The Cochrane Library, MEDLINE/PubMed, NHS evidence e Turning Research Into Practice. Esta pesquisa foi realizada por três autores e posteriormente revista pelos restantes autores que participaram na realização desta revisão. Foram incluídos artigos publicados entre janeiro de 2000 e agosto de 2020, nas línguas portuguesa e inglesa, que respeitassem os seguintes critérios de elegibilidade:
População: utentes adultos, com uma ou mais doenças crónicas, seguidos nos cuidados de saúde primários ou secundários;
Intervenção: teleconsulta;
Comparação: acompanhamento habitual;
Outcome: morbimortalidade.
Foram excluídos estudos que recorreram a telemonitorização, telerreabilitação ou visitas domiciliárias. Foram também excluídos artigos de opinião.
A escala Strength of Recommendation Taxonomy (SORT), da American Family Physician, foi aplicada para avaliação dos níveis de evidência (NE) e da força de recomendação (FR).
Resultados
Na pesquisa bibliográfica inicial obtiveram-se 260 artigos, dos quais apenas oito cumpriram os critérios de inclusão: uma RS, seis EC e um EO. O processo de seleção dos artigos está descrito no fluxograma da Figura 1 e os resultados encontram-se sumariados nas Tabelas 1, 2 e 3.
A revisão sistemática de Fraser e colaboradores7 comparou a prática de teleconsulta, com recurso a tecnologia informática, com a consulta presencial nos doentes adultos de áreas remotas da Austrália, América do Norte, Nova Zelândia e Ilhas do Pacífico. Estes apresentaram diversas patologias crónicas, nomeadamente cardiorrespiratórias, metabólicas, psiquiátricas e neoplásicas. Os resultados em saúde revelaram que a modalidade de teleconsulta proporcionou redução da morbilidade, melhoria da qualidade de vida, com diminuição de internamentos e redução da mortalidade. Assim, esta revisão revelou que o recurso à teleconsulta nos utentes com patologias crónicas se associa a melhores resultados em saúde.
O ensaio clínico randomizado de Pinnock e colaboradores8 comparou a prática de teleconsulta com a consulta presencial agendada pelo participante. Este estudo incluiu doentes asmáticos adultos, medicados, sem consulta nos onze meses prévios à randomização. Os doentes randomizados pertenciam a quatro centros de general practices em Inglaterra e foram acompanhados durante três meses. A intervenção consistiu na realização de uma teleconsulta no primeiro mês de estudo e os cuidados habituais consistiram numa consulta presencial com a equipa de enfermagem no primeiro mês de estudo. Foi realizada a avaliação de resultados em saúde e satisfação, de todos os participantes, aos três meses de estudo. A teleconsulta, sob a forma de consulta telefónica, foi realizada pela equipa de enfermagem. Este estudo demonstrou que o tempo médio de duração de teleconsulta (11,2 minutos) foi significativamente inferior ao da consulta presencial (21,9 minutos). Acrescentou a inexistência de diferenças significativas entre os dois grupos, relativamente à qualidade de vida, morbilidade associada à asma, número de exacerbações e recurso a serviços de saúde, concluindo que a utilização da teleconsulta diminuiu a carga de trabalho e não aumentou a incidência de desfechos negativos comparativamente com cuidados presenciais.
O ensaio clínico randomizado de Ritchie e colaboradores9 comparou a prática de teleconsulta com os cuidados habituais, nos noventa dias seguintes à alta hospitalar, em doentes com insuficiência cardíaca (IC) ou doença pulmonar obstrutiva crónica (DPOC) de um hospital universitário de Alabama, Estados Unidos da América. Este estudo foi iniciado com uma entrevista motivacional, antes da alta hospitalar, realizada pela equipa de enfermagem. Após a alta, os doentes foram avaliados telefonicamente através de um programa informático automatizado denominado E-Coach. Durante estes contactos foram colhidos dados relativos a sinais de alarme, cuja presença notificava a equipa de enfermagem, que contactava o paciente para suporte adicional. Este estudo concluiu não existirem diferenças significativas entre os dois grupos relativamente ao número de reinternamentos aos 30 dias e duração do reinternamento. Ainda assim, observou-se no grupo da intervenção uma tendência para a diminuição do número e duração dos reinternamentos nos doentes com DPOC (embora sem significado estatístico). Assim, esta revisão revelou que o recurso à teleconsulta informática automatizada permitiu alcançar resultados de reinternamento em 30 dias semelhantes aos cuidados habituais.
O ensaio clínico randomizado de Kroenke e colaboradores10 comparou a prática de teleconsulta com consulta presencial em doentes adultos com dor crónica músculo-esquelética de intensidade moderada a grave, em cinco clínicas de general practice de Indianapolis, Estados Unidos da América. O estudo teve a duração de doze meses e periodicamente foram avaliados todos os participantes. Os participantes do grupo de intervenção dispunham de contacto telefónico, de periodicidade variável ao longo do estudo, realizado por plataforma informática automatizada e subsequente ajuste analgésico, guiada por algoritmo automatizado, bem como chamadas telefónicas realizadas pela equipa de enfermagem para abordagem do plano terapêutico analgésico no primeiro e terceiro mês e sempre que foram identificados sinais de alarme pela plataforma informática automatizada. A periodicidade de avaliação através do sistema informático foi semanal no primeiro mês, quinzenal no segundo e terceiro meses e mensal a partir do quarto mês. Os participantes do grupo controlo, sob cuidados habituais, mantiveram o acompanhamento habitual com o médico assistente, a nível dos cuidados de saúde primários. Relativamente ao controlo sintomático ao fim de doze meses observou-se intensidade de sintomas álgicos, significativamente inferiores no grupo de intervenção em comparação com o grupo de controlo (p<0,01). Para além disso, a probabilidade de melhoria sintomática foi o dobro no grupo de intervenção comparativamente com o grupo controlo. Relativamente ao impacto no quotidiano, apenas a depressão revelou resultados significativamente melhores no grupo de intervenção. Conclui-se que este estudo revelou que o recurso à teleconsulta permitiu melhor controlo da dor e depressão.
O ensaio clínico randomizado de Bilington e colaboradores11 comparou a prática de teleconsulta com o cuidado habitual em doentes com DPOC de um centro de general practice de Londres. Inicialmente foi realizada consulta presencial a todos os participantes para avaliação clínica, elaboração de programa de tratamento e fornecimento de material informativo. O estudo decorreu durante doze semanas e foram avaliadas variações no COPD Assessment Test (CAT), recurso a serviços de saúde, número de exacerbações e satisfação do acompanhamento. Os contactos estavam protocolados de modo a estimular a autogestão da doença e abordar o modo como o doente lidava com a doença, dificuldades e cumprimento do programa terapêutico. Os participantes do grupo controlo receberam os cuidados habituais, ou seja, plano de tratamento clínico e informação acerca da autogestão da DPOC. Este estudo demonstrou que a intervenção melhorou em dois ou mais pontos o score CAT em 73,5% dos participantes do grupo de intervenção comparativamente com a melhoria de 34,3% no grupo controlo (p<0,01). Os dados do estudo não detetaram alterações significativas na satisfação de atendimento dos doentes entre os dois grupos. Assim, este estudo revelou que no grupo de intervenção o recurso à teleconsulta permitiu significativa melhoria de controlo sintomático da DPOC, entre o momento pré e pós-início da intervenção, bem como tendência para melhor controlo sintomático comparativamente com o grupo controlo.
O ensaio clínico de Valdivieso e colaboradores12 comparou as práticas de telemonitorização, teleconsulta e cuidado habitual em doentes com múltiplas comorbilidades num hospital universitário de Valência ao longo de doze meses. Uma vez que a telemonitorização não faz parte do objeto de estudo desta revisão foi omitida a descrição da metodologia utilizada no grupo de participantes randomizados para esse grupo. A teleconsulta consistiu na realização de contactos telefónicos estruturados quinzenais e os cuidados habituais corresponderam à gestão de saúde através de consulta presencial de enfermagem ou médica, quando necessário. Foram realizadas duas avaliações: uma antes da intervenção e outra aos doze meses, permitindo a comparação entre os grupos de estudo relativamente à qualidade de vida, recurso a serviços de saúde, desempenho de atividades de vida diária, estado cognitivo, hospitalização e mortalidade. Este estudo revelou que os participantes do grupo de teleconsulta tiveram um aumento significativo da qualidade de vida (p<0,01), uma melhoria significativa do estado cognitivo e da autonomia (3,62 pontos adicionais no índice de Barthel) comparativamente ao grupo controlo (p<0,01). Não se evidenciaram diferenças significativas na mortalidade ou recurso geral a cuidados de saúde entre os diferentes grupos de estudo. Assim, este estudo revelou que o recurso à teleconsulta melhorou a qualidade de vida dos participantes sem prejuízo na mortalidade ou aumento de recurso a cuidados de saúde.
O ensaio clínico randomizado de Krum e colaboradores13 comparou a combinação de teleconsulta e cuidados habituais com os cuidados habituais isoladamente, em doentes adultos com IC com fração de ejeção reduzida em doentes de diversas regiões da Austrália. A intervenção consistiu no acesso a plano de ação em caso de agudização, boletins informativos acerca da IC, questionário mensal estruturado acerca da evolução da doença, gestão do plano de tratamento e apoio social. Em caso de gravidade era gerado um alerta para a equipa de enfermagem que avaliava a situação e, consoante as necessidades, ajustava a dose de diurético ou agendava consulta presencial com o médico assistente. Os cuidados habituais correspondem ao agendamento de consulta presencial com o médico assistente, por iniciativa médica ou do doente. Todos os participantes foram contactados telefonicamente no início do estudo, aos seis e aos doze meses, sendo colhidos dados relacionados com a qualidade de vida, escala de NYHA e utilização de serviços de saúde. Este estudo revelou haver diferenças significativas entre os dois grupos na mortalidade e hospitalização por todas as causas, mas não por IC isoladamente. Embora não significativa, observou-se uma redução de 20% do risco de hospitalização por IC, menor progressão da IC e maior capacidade para gestão da IC no grupo de intervenção. Houve também uma redução no recurso à consulta com o médico assistente no grupo de intervenção, justificado pela alta taxa de adesão à plataforma digital (cerca de 65%). Assim, o recurso à teleconsulta como complemento da consulta presencial diminuiu o risco de internamento por IC, embora não de forma estatisticamente significativa, e a necessidade de agendamento de consulta presencial.
No estudo observacional de Porath e colaboradores14 realizou-se um programa de teleconsulta com os cuidados habituais, em doentes adultos com três ou mais doenças crónicas (diabetes, hipertensão, demência, IC, DPOC ou acidente vascular cerebral). O programa de teleconsulta foi aplicado pelo Maccabi Telecare Center e os cuidados habituais pelo Maccabi Healthcare Services, em Israel. Este estudo comparou os doentes referenciados para o programa de teleconsulta com aqueles que se mantiveram com cuidados habituais durante o ano de 2015. Foi comparada a taxa de hospitalização, o recurso a serviço de urgência, os custos gerais em saúde e mortalidade entre os doentes teleconsultados e os doentes com cuidados habituais, no momento pré e pós-referenciação para esse programa, bem como entre os doentes teleconsultados. Observou-se que os resultados pré-introdução da teleconsulta nos doentes referenciados eram piores que os doentes que mantiveram cuidados habituais. No grupo que iniciou o programa de teleconsulta observou-se uma redução da taxa de internamento, do recurso ao serviço de urgência e dos custos gerais em saúde, com diminuição de 17% dos custos mensais (p<0,01). Contrariamente, o grupo de doentes que manteve cuidados habituais teve, progressivamente, piores indicadores até ao final do período de estudo. Observou-se ainda existir tendência para diminuição da mortalidade dos doentes após o início de teleconsulta comparativamente ao grupo que manteve cuidados habituais. Assim, este estudo revelou que a teleconsulta diminuiu significativamente a taxa de internamento, o recurso ao serviço de urgência e os custos gerais de saúde.
Discussão/conclusão
Esta revisão demonstrou não existir um claro consenso quanto aos resultados dos indicadores de morbimortalidade em utentes com patologias crónicas acompanhados por teleconsulta. No entanto, a maioria dos estudos demonstrou benefício da sua utilização relativamente aos doentes com acompanhamento habitual. Embora não consonantes, todos os estudos demonstraram resultados, pelo menos sobreponíveis, na utilização da teleconsulta em comparação com o acompanhamento habitual dos utentes. Cinco dos estudos revelaram benefício significativo na morbimortalidade com o recurso a teleconsulta face aos cuidados habituais, nomeadamente: melhoria da qualidade de vida e diminuição de internamento em doentes com múltiplas comorbilidades;7 diminuição da duração do reinternamento em 30 dias por DPOC;9 diminuição de sintomas álgicos e depressão associados a dor músculo-esquelética crónica;10 diminuição de hospitalização e mortalidade por todas as causas13 e diminuição de recurso a cuidados de saúde adicionais na IC.13 Quatro estudos descrevem resultados tendencialmente benéficos na morbimortalidade com recurso à teleconsulta em comparação com os cuidados habituais, particularmente: tendência para diminuição de hospitalizações por DPOC;9 tendência para diminuição da morbilidade dos doentes com dor músculo-esquelética crónica;10 tendência para melhorar controlo sintomatológico da DPOC11 e tendência para diminuição de mortalidade nos doentes com múltiplas comorbilidades.14 Dois estudos demonstraram resultados sobreponíveis entre os doentes teleconsultados e os doentes sob cuidados habituais, relativamente ao número de exacerbações e recurso a cuidados de saúde adicionais em doentes asmáticos8 e na mortalidade e recursos de cuidados de saúde adicionais nos doentes com múltiplas comorbilidades.12 Por fim, a utilização de teleconsulta parece ser custo-eficaz,7 pois segundo um dos estudos associa-se a diminuição de 17% dos custos mensais14 comparativamente com os cuidados habituais.
A evidência existente é ainda limitada relativamente ao papel da teleconsulta na morbimortalidade em utentes com patologia crónica. Salientam-se, de um modo global, limitações no que concerne ao número reduzido de artigos a preencher os critérios de inclusão, carência de uniformidade na intervenção realizada e nas variáveis estudadas. Acresce ao anterior o facto das amostras serem constituídas por doentes com patologias crónicas muito distintas e o curto período de acompanhamento dos doentes. Estas limitações poderão comprometer a generalização dos resultados obtidos nesta revisão.
Assim, a teleconsulta parece ser um método útil, válido em alternativa ou como complemento aos métodos habituais e custo-eficaz, numa perspetiva cada vez mais atual, proporcionando um melhor acesso aos cuidados de saúde por parte dos doentes e uma eficiente gestão da prática clínica por parte dos profissionais de saúde. Ainda assim, são necessários mais estudos neste âmbito para aumentar a robustez dos resultados encontrados e generalização à prática clínica diária.