Introdução
A dermatologia configura uma área da medicina muito vasta e complexa do ponto de vista semiológico. Se, por um lado, a maioria dos diagnósticos observados são facilmente aferidos pela observação das lesões e história clínica, não raras vezes o diagnóstico requer a observação da evolução das lesões, o estudo anatomopatológico ou uma prova terapêutica. O médico de família depara-se frequentemente com lesões mucocutâneas em fase inicial. A abordagem é particularmente desafiante. O reconhecimento das características lesionais de suspeição é importante para o diagnóstico diferencial, permitindo assim uma abordagem diagnóstica e terapêutica célere.
As lesões pigmentadas da mucosa oral podem ser resultado da deposição de pigmentos endógenos (por aumento da produção da melanina ou aumento do número de melanócitos) ou exógenos e podem aparecer sob a forma difusa ou localizada (Tabela 1).1-2 A deposição de pigmentos exógenos pode ser causada por alguns medicamentos, uso de tabaco, tatuagem por amálgama dentária ou intoxicação por metais pesados. O uso do tabaco e de alguns medicamentos, além de poderem causar pigmentação mucosa por deposição da substância ou dos seus metabolitos, estão implicados no aumento da síntese de melatonina pelos melanócitos.2 Os medicamentos mais frequentemente implicados nesta reação são os antimaláricos, como a cloroquina, hormonas ou contracetivos orais, fenotiazinas, agentes quimioterapêuticos, amiodarona, minociclina, cetoconazol e zidovudina.2 Apesar de menos frequente do que no restante tegumento, a mucosa oral e labial também pode ser local de nevos congénitos ou adquiridos e também de lesões pigmentadas malignas, como o melanoma. Em casos de traumatismo repetido ou lesões inflamatórias, como dermite atópica, pode ainda surgir hiperpigmentação pós-inflamatória.1 Por fim, a pigmentação oral e/ou perioral pode ser vista como uma manifestação de algumas doenças sistémicas, como a doença de Addison, a síndroma de Peutz-Jeghers, a síndroma de McCune-Albright ou a síndroma de Laugier-Hunziker.1-2
O médico de família encontra-se numa posição privilegiada pelo conhecimento dos antecedentes pessoais e familiares dos seus utentes, permitindo-lhe mais facilmente a exclusão de alguns destes diagnósticos diferenciais. Ainda assim, a determinação do significado deste tipo de lesões pode representar um desafio diagnóstico, sendo essencial a realização de uma anamnese cuidada, reconhecendo potenciais causas de lesões hiperpigmentadas da mucosa oral, aliado a um exame dermatológico orientado. Perante a ausência de diagnóstico ou necessidade de realização de biópsia é necessária a articulação com os cuidados de saúde secundários para abordagem pela especialidade.
Descrição do caso
Mulher de 89 anos, viúva, pertencente a uma família unitária, na fase VIII do ciclo de Duvall, classe média-baixa, reformada e analfabeta. Antecedentes de diabetes mellitus tipo 2, com neuropatia periférica, hipertensão arterial, fibrilhação auricular, dislipidemia, glaucoma e patologia osteoarticular degenerativa. Sem hábitos tabágicos, alcoólicos ou toxicofílicos. Em junho de 2019, na consulta de diabetes, referia o aparecimento de manchas escuras na mucosa da língua, com meses de evolução, que notou após episódio de tosse com expetoração. Sem traumatismo prévio ou outros sintomas associados. Nega introdução recente de medicação ou de suplementação. Sem outros sintomas associados e sem história familiar de lesões semelhantes. Ao exame objetivo apresenta múltiplas máculas infra-centimétricas, de pigmentação castanho-acinzentada, sugestivas de lentigos, na superfície dorsal da língua (Figura 1); sem outras lesões da pele, unhas ou mucosas. Optou-se pela tranquilização da utente e reavaliação dentro de um mês. À reavaliação mantinha lentiginose da mucosa lingual, sem alteração do aspeto das lesões. É referenciada a consulta de dermatologia, onde foi observada em novembro de 2019 e novamente em janeiro de 2020, tendo sido realizada biópsia puncional de uma das lesões da língua, que revelou: “Acantose irregular do epitélio, acompanhada de reforço de pigmentação melânica basal distribuída de forma irregular. Não se observa proliferação melanocítica significativa. No tecido conjuntivo subjacente observa-se infiltrado inflamatório e deiscência de pigmento melânico sob a forma de melanófagos”. Após exclusão das restantes hipóteses diagnósticas, e considerando o diagnóstico morfológico anatomopatológico de mácula melanótica da mucosa oral, considerou-se o quadro sugestivo de síndroma de Laugier-Hunziker. A doente foi informada acerca do caráter benigno deste quadro e ausência de necessidade de tratamento, a não ser por questões estéticas, tendo alta da consulta de dermatologia.
Desde então mantém o seguimento habitual no médico de família, sem alterações das lesões iniciais ou surgimento de novas lesões (Figura 2).
Comentário
A síndroma de Laugier-Hunziker é uma condição rara, inicialmente descrita em 1970 como uma doença dermatológica benigna, caracterizada por máculas hiperpigmentadas na mucosa oral e lábios e associada a melanoníquia longitudinal. Da centena de casos já descritos na literatura, a maioria ocorre em mulheres caucasianas entre os 30 e os 60 anos.3-5
A mucosa oral pode ser a única afetada pela hiperpigmentação ou podem surgir concomitantemente lesões ungueais (cerca de 60% dos casos).5-6 Dentro da região oral, o lábio (em especial, o lábio inferior) é o sítio onde surgem mais frequentemente estas lesões, seguido da mucosa jugal, da língua, do palato mole ou duro e, por último, das gengivas. Caracteriza-se por um número variável de máculas mucocutâneas hiperpigmentadas assintomáticas, lentiginosas com cerca de 1 a 5mm de diâmetro. Histologicamente, estas lesões apresentam focos de acantose e hiperpigmentação da camada basal, com número e morfologia normal dos melanócitos.5,7
A pigmentação ungueal surge na forma de finas bandas longitudinais de largura e intensidade variáveis em uma ou mais unhas. Mais raramente, pode ocorrer o sinal de Hutchinson, com pigmentação da prega ungueal proximal, sinal muitas vezes associado a melanoma subungueal, mas não patognomónico desta patologia.4,8
À medida que os casos foram sendo relatados na literatura, lesões semelhantes foram descritas na pele (mãos, dedos, tórax, abdómem ou região genital ou perianal) e, uma vez que se apresentavam como morfológica e histologicamente semelhantes, surgiu o conceito de hiperpigmentação adquirida idiopática mucocutânea.3,7,9-10
O diagnóstico é de exclusão, considerando outras causas de hiperpigmentação mucocutânea, sendo o principal diagnóstico diferencial a síndroma de Peutz Jeghers (PJS). Nesta doença autossómica dominante regista-se o desenvolvimento de polipose intestinal hamartomatosa e pigmentação característica dos lábios ou da mucosa oral com padrão lentiginoso. As alterações pigmentares são a única manifestação cutânea desta síndroma e uma das primeiras a surgir, geralmente na infância ou adolescência. Na doença de Addison ou insuficiência suprarrenal primária, diagnóstico diferencial a ter em conta, a hiperpigmentação da cavidade oral e da pele é difusa, sendo uma das manifestações mais precoces e características da doença. Outros sinais ou sintomas estão presentes, como fraqueza, anorexia, perda de peso, hipotensão, náusea, vómitos, diarreia e alterações de humor.1,7
Em doentes mais jovens, a síndroma de McCune-Albright deve ser considerada como diagnóstico diferencial. É classificada pela tríade de displasia fibrosa óssea, puberdade precoce e manchas café-com-leite que podem surgir também na mucosa oral.5-6
Tendo em conta a benignidade do quadro e ausência de sintomas associados que possam ter impacto na qualidade de vida, a hiperpigmentação associada à síndroma de Laugier-Hunziker não requer nenhum tratamento, embora se possa ponderar se surgirem preocupações estéticas. Nestas circunstâncias poderá recorrer-se à crioterapia e laser Nd: YAG Q-switch ou alexandrite Q-switch, tratamentos eficazes e seguros.5,7 As lesões podem recorrer após tratamento, mas a evicção da exposição solar pode reduzir este risco.7,9 Sem tratamento, as lesões podem permanecer estáveis ou progredir lentamente.8
No caso descrito, a ausência de outros sinais e sintomas em doente vigiada regularmente em consulta, associada ao tempo de evolução e aspeto das lesões permitiu adotar uma atitude expectante, com reavaliação a curto prazo.
As entidades dermatológicas são um motivo de consulta frequente em cuidados de saúde primários. O diagnóstico diferencial de lesões cutâneas requer muitas vezes uma abordagem multidisciplinar, mantendo-se o médico de família como gestor dos cuidados de saúde, acompanhando e gerindo o plano terapêutico do doente.
O relato de caso descreve uma síndroma rara que se apresentou sob a forma de lesões melanóticas da mucosa oral, pretendendo assim dar a conhecer esta entidade, bem como focar o diagnóstico diferencial das lesões hiperpigmentadas adquiridas da mucosa oral.