No contexto da crise global provocada pela pandemia COVID-19, os profissionais de saúde são a primeira linha de defesa no combate a esta doença. Infelizmente, esta sobrecarga veio exacerbar as fragilidades pré-existentes do Sistema Nacional de Saúde, onde o burnout dos seus profissionais era já uma realidade.
No momento atual, dificilmente existe alguém que não tenha ouvido falar em burnout. A expressão preencheu as páginas dos jornais sem que, necessariamente, se divulgasse uma definição clara. Mas afinal o que é o burnout? O sentido literal desta categoria anglo-saxónica é o de “arder”, “deixar-se queimar” e/ou “incendiar-se”.1 No vocabulário corrente fala-se em burnout para designar algo que parou de funcionar devido à mais absoluta falta de energia. A Síndroma do Esgotamento Profissional (burnout) integrou oficialmente a 11ª Classificação Internacional de Doenças (CID-11) em maio de 2019, como uma questão social relacionada ao universo laboral. A expressão foi criada pelo novelista inglês Graham Greene (1960) e, posteriormente, desenvolvida no contexto das ciências da saúde pelo psicanalista alemão Herbert Freudenberger, durante a década de 1970.1-3 No entanto, foi a equipa liderada por Christina Maslach, no Departamento de Psicologia Social da Universidade de Berkeley (1981-2017), que sistematizou o termo. Na sua aclamada sintomatologia triádica, a perturbação consistiria na presença de três dimensões interrelacionadas: 1) exaustão emocional avassaladora; 2) sentimentos de “cinismo” (apatia) e distanciamento do próprio trabalho; 3) sensação de ineficácia pessoal ou carência de realização socioprofissional face ao emprego.1-2
Atualmente, burnout é considerada uma síndroma relacionada com o trabalho, caracterizada por exaustão emocional, despersonalização (com sentimentos negativos perante os doentes e diminuição da empatia) e baixos níveis de realização pessoal.2-3 Inicialmente, a exaustão emocional pode coexistir com empatia e satisfação, mas o stress laboral sustentado no tempo diminui a capacidade de evocar e manter estas qualidades. Esta síndroma parece ser mais prevalente em profissões de “ajuda”, como médicos e professores. Não se trata, contudo, de uma reação expectável ao trabalho árduo. Na verdade, há trabalhos que envolvem um enorme sacrifício pessoal, mas são acompanhados de uma profunda satisfação. Também não é o mesmo que depressão, embora possa evoluir para esta doença.2-3
Vários fatores podem contribuir para o surgimento de burnout, como fatores situacionais (horas de trabalho, privação de sono e conflitos laborais); stressores pessoais (conflitos com familiares ou amigos, dificuldades financeiras, ou mudança de residência); e profissionais (responsabilidades relacionadas com o doente, responsabilidades de ensino ou de supervisão e sobrecarga de informações e outras situações especiais). A carga de trabalho excessiva é citada como uma das principais causas de burnout entre os profissionais de saúde, situação que se agravou com a atual pandemia. Simultaneamente, o aumento das horas de trabalho condicionou a vida privada dos profissionais, reduzindo, por exemplo, o tempo passado em família, fator que também contribui para o burnout.4-5
Durante a pandemia foram realizados alguns estudos que mediram o burnout nos profissionais de saúde, utilizando o questionário MBI (Maslach Burnout Inventory), considerado o gold standard na avaliação de burnout e que avalia as três dimensões de burnout anteriormente referidas.2-3
Nalguns desses estudos, decorridos entre março e maio de 2020, 25% a 60% dos profissionais de saúde avaliados reportaram níveis moderados a elevados de exaustão emocional, 9% a 25% referiu maiores níveis de despersonalização e entre 24% e 60% dos profissionais referiu uma baixa realização profissional.6-8
As diferenças de resultados variam, naturalmente, com a fase da pandemia em que os dados são recolhidos, o estado da situação pandémica no país onde o estudo decorre e nos diferentes tipos de profissionais de saúde (e.g., na designada “linha da frente” vs enfermarias).5
No nosso país, um estudo avaliou as dimensões de burnout numa amostra de técnicos de radiologia, obtendo níveis elevados de exaustão emocional e despersonalização em 43,5% e 45,5% dos participantes, respetivamente, e sentimentos de baixa realização profissional em 59,8% dos participantes.9
Existem outros estudos portugueses dirigidos à avaliação de burnout nos profissionais de saúde, que utilizam outras escalas que não a MBI, encontrando percentagens de burnout igualmente elevadas.10-11
As consequências do burnout são potencialmente muito sérias para os médicos e também para aqueles com quem interagem. Sabe-se que estes indivíduos demonstram uma redução no desempenho profissional, uma maior probabilidade de erro médico, maiores taxas de absentismo e de licenças médicas, menor compromisso com o trabalho e com o empregador, menor satisfação no trabalho e maior sofrimento pessoal. Além disso, o burnout parece estar relacionado com o aumento do uso de álcool e drogas, exaustão física e problemas conjugais e familiares.3-5,12
Perante o risco significativo de burnout que todos os profissionais de saúde atualmente apresentam, e considerando as consequências implicadas, é imperioso abordar estratégias de prevenção e tratamento.
As intervenções para reduzir o burnout podem ser classificadas em duas categorias principais: intervenções dirigidas aos profissionais de saúde, com foco nos indivíduos, e intervenções organizacionais/estruturais, com foco no ambiente de trabalho.
As intervenções dirigidas aos profissionais de saúde incluem técnicas de mindfulness, gestão de stress (e.g., realizar alongamentos durante dez minutos no local de trabalho), estratégias de comunicação e trabalho em equipa, bem como técnicas cognitivo-comportamentais de modo a melhorar as capacidades de comunicação e as estratégias pessoais de coping.4,13
As orientações individuais apresentadas pela Organização Mundial da Saúde seguem estas linhas de evidência (Tabela 1).14
Também os serviços de saúde devem adaptar o seu funcionamento e adotar medidas para minimizar os efeitos da pandemia.
Devem ser promovidas reuniões regulares com as chefias, onde se abordem as principais preocupações dos profissionais de saúde. No período de pandemia acrescentou-se, aos fatores já relacionados com a exaustão laboral, o receio de risco de infeção e contágio de familiares, colegas e doentes, o acesso a equipamento de proteção individual e o distanciamento físico de familiares. Tendo como objetivo a diminuição das dificuldades de comunicação entre pares e superiores deve ser incentivado um diálogo atento na identificação precoce destes fatores de risco, centrado em soluções simples mas eficazes.5
As intervenções organizacionais podem, por exemplo, envolver mudanças no horário de trabalho, prevenindo a privação do sono, fator que está intimamente relacionado com o burnout.15-17
Outras intervenções incluem a implementação de tarefas que reduzam os níveis de stress (como a promoção do trabalho em equipa, da tomada de decisão e da supervisão), melhorias no funcionamento das organizações de saúde, programas formais de redução do burnout, ações de formação que forneçam informação sobre práticas de autocuidado em saúde mental, programas de apoio a cônjuges e dependentes dos profissionais de saúde.4,14 As instituições podem, ainda, fornecer aconselhamento psicológico por via digital ou através de linhas de apoio telefónicas, suportadas por profissionais de saúde mental treinados, idealmente psiquiatras ou psicólogos. No entanto, a escassez destes profissionais poderá ser um fator limitante. Portanto, será útil desenvolver programas de formação para outros profissionais de modo a capacitá-los para reconhecerem quadros de burnout nos profissionais de saúde. Em Portugal, uma das linhas telefónicas criadas foi a da Associação Centro de Medicina P5, da Escola de Medicina da Universidade do Minho, que garantiu um serviço de consultas de psiquiatria gratuitas por vídeochamada, destinado aos profissionais de saúde, com o apoio de psiquiatras voluntários de todo o país. Este projeto resultou de uma parceria que reuniu o Programa Nacional para a Saúde Mental da Direção-Geral da Saúde, a Ordem dos Médicos, a Sociedade Portuguesa de Psiquiatria e Saúde Mental, a Associação Portuguesa dos Internos de Psiquiatria e a Escola de Medicina da Universidade do Minho.18
Também a partilha de experiências e emoções entre colegas, por exemplo, em grupos Balint, tem sido associada à redução do burnout.4
No caso de sintomas de burnout graves são recomendadas intervenções psicoterapêuticas estruturadas, com maior evidência científica para a terapia cognitivo-comportamental. Nalguns casos, a psicoterapia deve ser combinada com psicofármacos, nomeadamente antidepressivos.19
Em conclusão, o burnout entre os profissionais de saúde é uma questão de suma importância, não só pelo impacto na vida dos mesmos como também por potencialmente afetar o atendimento ao doente e os cuidados de saúde prestados à sociedade. A atual pandemia trouxe novas formas de trabalho às quais todos os profissionais de saúde precisam de se adaptar e é imperioso desenvolver formas de lidar com o burnout. Cada vez mais é necessário estar atento às necessidades dos trabalhadores e implementar estas estratégias de forma precoce, particularmente nos estudantes de medicina, enfermagem e médicos internos, uma vez que o burnout se inicia nestas fases, por vezes com níveis mais elevados de stress.20
É do interesse da saúde pública que os governos reconheçam, priorizem e implementem intervenções eficazes para prevenir e gerir o burnout nos profissionais de saúde. Permitirá o desenvolvimento de uma geração de profissionais mais saudável, capaz de melhores resultados clínicos, com menos erros e encargos financeiros, levando a um funcionamento mais eficiente do setor da saúde, ainda que em contexto de crise.