Introdução
O crescimento da população idosa em Portugal e na maioria dos países europeus é uma realidade importante. Os europeus vivem mais tempo do que antes e a população jovem está a diminuir, algo que se continuará a verificar nas próximas duas décadas, quando a geração baby-boom estiver a entrar na reforma.1 A baixa taxa de fertilidade, o aumento da esperança média de vida e, nalguns casos, os padrões migratórios influenciam este processo de envelhecimento da população, estimando-se que em 2050 existam cerca de meio milhão de centenários.1
Os cuidados de saúde devem estar adaptados a esta nova realidade, assim como os profissionais de saúde, que deverão ter o conhecimento necessário para promover uma avaliação global do idoso, reconhecendo as alterações fisiológicas normais da idade e o que poderá ser patologia, procurando o melhor tratamento para as mesmas.2
O processo normal do envelhecimento determina certas alterações que provocam uma diminuição da capacidade física, mental e funcional de forma variável entre indivíduos. Portanto, este processo afeta a autonomia, independência, desempenho e, consequentemente, a qualidade de vida individual, familiar, social e económica.2
Qualquer plano de apoio que possa ser criado para a população mais idosa do nosso país não pode deixar de ter em conta todos os aspetos referidos, correndo-se o risco de falhar no cumprimento do objetivo principal, que é proporcionar a melhor qualidade de vida possível aos idosos.
Assim, a avaliação global e multidimensional do idoso engloba, em parte, a utilização de escalas próprias e validadas, de forma a sistematizar e facilitar o trabalho do profissional de saúde, procurando fazer uma avaliação clínica, social, do estado cognitivo, do estado afetivo, da capacidade funcional (atividades básicas e instrumentais da vida diária), marcha, equilíbrio e avaliação nutricional. A avaliação cognitiva pode ser realizada utilizando diferentes escalas, mas a mais completa é a Avaliação Cognitiva de Montreal (MOCA®).2-3 Se se pretender uma avaliação mais sumária, também pode ser aplicado o Mini-Mental State (MMSE).2-3 A avaliação do estado afetivo pode ser realizada utilizando a escala de depressão geriátrica de Yesavage, que rastreia a depressão.2,4 Esta avalia os aspetos cognitivos e comportamentais tipicamente observados nos idosos com depressão. O Índice de Barthel, amplamente utilizado nos cuidados de saúde primários em Portugal, mas também a escala de Katz, podem ser ambos utilizados para avaliar a autonomia do idoso na realização das atividades básicas e indispensáveis na vida diária.2 A avaliação das atividades de vida diária instrumentais é realizada utilizando a Escala de Lawton e Brody.2-3 A classificação funcional da Marcha de Holden avalia o grau de autonomia na marcha de acordo com o tipo de ajuda física ou supervisão necessárias, em função do tipo de superfície (plana, inclinada, escadas), sendo a mais adequada nesta situação.4 O risco de quedas e avaliação do equilíbrio são avaliados utilizando o Índice de Tinetti (Performance-Oriented Assessment of Mobility - POMA), que é a escala mais completa e que se divide em duas partes: equilíbrio estático e equilíbrio dinâmico.2 É também possível utilizar a escala de Berg para avaliação do equilíbrio; porém, não é tão completa como a que se verifica no Índice de Tinetti.3 A avaliação nutricional deve ser realizada utilizando a Mini Nutricional Assessment®, que deteta a presença ou risco de malnutrição no idoso, sem recurso a parâmetros analíticos.4
Todas estas escalas utilizadas na avaliação global do idoso podem ser importantes na prática clínica diária, pois através destas é possível identificar problemas de saúde tratáveis, levando a melhores resultados em saúde.5 No entanto, em Portugal, a geriatria encontra-se ainda em desenvolvimento, visto que estes serviços existem em contexto privado, nalguns hospitais em consulta externa, em apenas três unidades de orto-geriatria, numa unidade de geriatria aguda em contexto de internamento e em poucos centros de saúde dedicados aos idosos.6 Mesmo em países que têm a geriatria reconhecida como especialidade, a taxa de utilização de escalas para avaliação geriátrica pelos médicos de família parece ser reduzida, como mostrou um estudo de 2013 numa província Francesa. Neste estudo, 35% dos médicos não utilizava escalas de avaliação geriátrica e 37% utilizava as escalas apenas uma vez por mês.7
Portanto, este estudo teve como objetivos: avaliar o conhecimento dos médicos do ACeS Oeste Norte relativamente a escalas de avaliação geriátrica; melhorar o seu conhecimento relativamente às mesmas; avaliar se existiu melhoria no conhecimento dos mesmos relativamente a escalas de avaliação geriátrica após a aplicação de estratégias de divulgação de informação.
Métodos
De acordo com as guidelines SQUIRE identificou-se o problema como sendo a escassa utilização das escalas referidas por parte dos médicos do ACeS Oeste Norte, não existindo também nenhuma unidade neste ACeS dedicada especificamente aos idosos.8
Assim, trata-se de um estudo de melhoria contínua da qualidade pré-experimental, aplicado aos médicos internos de formação específica e especialistas de medicina geral e familiar (MGF) do ACeS Oeste Norte, de tipo pré e pós-intervenção, integrando um ciclo de avaliação e melhoria da qualidade, sem grupo de controlo, cujo outcome primário foi melhorar o conhecimento de escalas geriátricas de avaliação global do idoso nos médicos ACeS Oeste Norte. A confidencialidade de dados dos médicos foi garantida em todas as etapas do processo.
Assim, a amostra por conveniência consistiu em todos os médicos internos de formação específica e especialistas em MGF do ACeS Oeste Norte que se voluntariaram para responder ao inquérito.
A fase 1 do estudo correspondeu à pré-intervenção e foi realizada com o apoio da plataforma Google Forms®, através do preenchimento de um questionário online criado pelos autores, disponível por um período de duas semanas, onde a categoria profissional dos médicos foi dividida entre interno, especialista há cinco anos ou menos e especialista há mais de cinco anos e onde também foram avaliados os conhecimentos dos médicos. Foi também questionado se as escalas de avaliação geriátrica eram aplicadas na prática clínica habitual. Na Tabela 1 observam-se as questões em análise no estudo, que incidiram sobre as escalas de avaliação geriátrica que devem ser utilizadas na avaliação global do idoso (Anexo 1 - Modelo completo do questionário aplicado).
Após a fase 1 foi enviado, pelo e-mail institucional dos profissionais, um documento informativo acerca da avaliação geriátrica, preparado pelos autores, com recurso ao software da Microsoft PowerPoint®, onde se explicava a importância do conhecimento e aplicação das escalas. A segunda fase do estudo ocorreu cerca de um mês após a fase 1 e correspondeu à fase pós-intervenção, através do preenchimento do mesmo questionário online via Google Forms®. O projeto foi realizado durante a pandemia da COVID-19, pelo que se optou sempre pelo formato online. Desta forma, após a comparação entre as respostas da fase 1 com a fase 2, os autores pretenderam avaliar se houve uma melhoria de conhecimentos na comunidade médica do ACeS Oeste Norte sobre a aplicação de escalas geriátricas.
A gestão e análise estatística descritiva e inferencial dos dados foi feita com recurso ao Microsoft Excel® e à linguagem e ambiente de computação estatística R.
No âmbito da inferência estatística aplicou-se um teste de comparação de proporções de respostas corretas pré e pós-intervenção formativa. Foi utilizada a função prop.test() do software estatístico R. O teste formalizou a seguinte hipótese nula (H0): “proporção de respostas corretas pré-intervenção é menor que a proporção de respostas corretas pós-intervenção” (para um valor p<0,05). O teste aplicado foi escolhido por permitir avaliar formalmente a hipótese mencionada, tendo em consideração uma camada adicional de confidencialidade e anonimização dos dados usados, visto que para efetuar este teste estatístico os dados podem ser condensados na forma de uma proporção de resposta correta pré e pós-intervenção.
Resultados
Na primeira fase do estudo foram respondidos 33 questionários no total e na segunda fase 24 (de 128 médicos do ACeS Oeste Norte), sendo uma amostra pouco representativa. Na 1ª fase participaram cerca de 26% dos colegas e na segunda cerca de 19%.
Na Figura 1 constata-se que a maioria dos inquiridos eram internos de MGF.
De acordo com a Figura 2, a maioria dos médicos raramente aplica escalas geriátricas na prática clínica (> 50%). No entanto, após a intervenção, verificou-se um aumento da frequência de aplicação das escalas.
Na Tabela 2 pode-se concluir que houve uma melhoria estatisticamente significativa após a intervenção (p<0,05) em sete das nove questões. Destacam-se as questões 5 e 7, nas quais não se verificou um aumento com significado estatístico, porque os profissionais já apresentavam uma taxa de resposta correta muito elevada na fase pré-intervenção. Estas duas questões referem-se à avaliação cognitiva do idoso e à avaliação das atividades da vida diária básicas do idoso.
Discussão
Um dos principais objetivos do projeto foi avaliar os conhecimentos dos médicos do ACeS Oeste Norte sobre a avaliação em geriatria, utilizando escalas apropriadas, não tendo sido encontrados outros estudos de melhoria da qualidade nesta área que procurassem responder à mesma questão. Verificou-se, neste caso, que a maioria dos profissionais não utilizava escalas de avaliação geriátrica nas suas consultas. Pode dever-se ao facto de não as conhecerem, já que o ensino e desenvolvimento da geriatria em Portugal é reduzido, ou também ao curto tempo de consulta, que deve durar habitualmente entre 10 a 20 minutos.
Na avaliação global do idoso, a utilização de escalas validadas sistematiza e facilita o trabalho do profissional de saúde, particularmente por serem instrumentos simples, fiáveis, de execução fácil, práticos e geralmente bem aceites pelo idoso e familiares.4 Assim, a sua divulgação é relevante, promovendo o desenvolvimento da geriatria em Portugal, especialidade ainda muito esquecida num país em envelhecimento.
Após a intervenção registou-se um aumento de utilização das escalas na prática clínica (1ª fase: Q1 com proporção de resposta “Sim, a maioria das vezes” de 0,18; 2ª fase: 0,34). Porém, é importante referir que a 2ª fase do projeto foi realizada relativamente próxima à 1ª fase - apenas um mês após o envio dos slides explicativos -, o que poderá explicar esta melhoria precoce. Não deixa de ser um aspeto positivo, revelando que a intervenção poderá ter algum resultado a longo prazo.
Relativamente à questão colocada sobre a escala de avaliação do estado nutricional (Q2), na 1ª fase verificou-se uma proporção de respostas corretas de apenas 0,52. No entanto, na 2ª fase do projeto, a proporção de respostas corretas aumentou para 0,96. Constata-se, assim, uma melhoria no conhecimento dos médicos relativamente à avaliação do idoso quanto ao seu estado nutricional, o que poder-se-á traduzir numa maior utilização das mesmas, com eventual repercussão positiva nos cuidados prestados aos idosos.
Em Q3 foi questionada qual a escala mais adequada para avaliar a marcha no idoso. Como referido, a classificação funcional da Marcha de Holden é a mais indicada. Neste caso verificou-se, novamente, um aumento da proporção de resposta corretas, com significado estatístico (1ª fase: 0,45; 2ª fase: 0,84). Espera-se que, no futuro, seja possível avaliar o impacto que a utilização desta escala, assim como das restantes, terá nos serviços prestados e nos ganhos em saúde para os idosos. Para além da avaliação da marcha, o equilíbrio e o risco de quedas devem também ser avaliados, idealmente pelo Índice de Tinetti (POMA). Também aqui se volta a observar um aumento na proporção de respostas corretas entre a 1ª e a 2ª fase (aumento de 0,03 para 0,63).
A avaliação cognitiva é amplamente conhecida e existe uma grande variedade de escalas que podem ser utilizadas. No entanto, a mais completa e eficaz no rastreio do défice cognitivo ligeiro é a escala de Avaliação Cognitiva de Montreal (MOCA®). O Mini-Mental State (MMSE) é também corretamente utilizado para a avaliação sumária das funções cognitivas.2-3 Assim, nesta questão, os participantes já apresentavam na primeira fase um conhecimento elevado, sendo que se verifica uma proporção de resposta corretas de 0,97 que, após a intervenção, foi de 1,00.
Não tão conhecida como a MOCA® ou o MMSE é a escala de depressão geriátrica de Yesavage, que é a indicada para o rastreio da depressão. Constata-se, mais uma vez, que os médicos não tinham grande conhecimento desta escala mas, após a intervenção, registou-se uma melhoria considerável. A proporção de respostas corretas em Q6 na 1ª fase foi de 0,55, observando-se uma proporção superior após a intervenção (0,92). É importante referir que esta escala pretende apenas rastrear a presença de uma eventual depressão no idoso. Uma avaliação clínica mais extensa é naturalmente muito relevante, mas a utilização da escala poderá facilitar a identificação de alguns sinais e sintomas tipicamente observados no idoso.
Relativamente à escala de Barthel, utilizada com regularidade nos cuidados de saúde primários em Portugal e sendo um instrumento com um nível de fidelidade elevado,3 apurou-se que os colegas têm já um grau de conhecimento elevado, com uma proporção de respostas corretas de 0,91 na 1ª fase e com um discreto aumento na 2ª fase (0,96). Considerou-se a escala de Katz como resposta correta, conjuntamente com a escala de Barthel, visto também avaliar a autonomia do idoso na realização das atividades de vida básica. Procurou-se divulgar outra escala que possa ser rapidamente utilizada pelo profissional de saúde, para além da mais conhecida Barthel e que está indicada pelo Núcleo de Estudos de Geriatria da Sociedade Portuguesa de Medicina Interna.4
Para além das atividades de vida básica, as instrumentais também podem ser avaliadas, já que também são relevantes para a vida do idoso. Esta avaliação deve ser realizada utilizando a Escala de Lawton e Brody. Na fase de pré-intervenção observou-se uma proporção de resposta corretas de 0,48, com um aumento significativo na pós-intervenção para 0,88. Espera-se que os colegas utilizem esta escala na sua avaliação do idoso, procurando não esquecer as atividades de vida instrumentais, tão importantes para a qualidade de vida dos utentes.
De referir que este estudo teve como limitações a potencial manipulação involuntária dos dados por parte dos profissionais avaliados durante o preenchimento do inquérito e a eventual resistência à mudança por parte dos profissionais. O facto de ter sido uma amostra por conveniência também limita as conclusões a retirar, visto não representar a população médica total do ACeS estudado. A 2ª fase do estudo foi realizada num curto espaço de tempo, o que também poderá ter limitado os resultados observados. Avaliando apenas os conhecimentos dos médicos não é possível concluir se a prestação dos cuidados é superior após a intervenção. Espera-se, no entanto, que tal aconteça e que seja possível no futuro avaliar o impacto do estudo na prestação de cuidados de saúde aos idosos.
Este estudo foi inovador, visto não ter sido encontrada outra intervenção semelhante que procurasse responder à questão definida. Foi também realizado durante a pandemia da COVID-19, o que dificultou a sua divulgação; apesar disso, foi desenvolvido e concluído.
Em suma, ficou demonstrado que a intervenção foi eficaz, na medida em que os colegas do ACeS Oeste Norte adquiriram conhecimentos na área da geriatria, o que se poderá traduzir em melhor qualidade dos cuidados de saúde.
Conclusão
A aplicação de escalas de avaliação geriátrica, ou de outras em qualquer situação em que possam ser utilizadas, é facilitadora do processo de decisão ao longo da avaliação dos utentes.
Assim, com este projeto, procurou-se avaliar o conhecimento de alguns colegas de MGF sobre as escalas de avaliação geriátrica, de forma a colmatar erros que existam nesta área e promover uma contínua melhoria da qualidade dos serviços de saúde. Poderá ser relevante uma avaliação tardia dos conhecimentos e, ainda mais importante, uma intervenção mais dinâmica na comunidade médica, sem os constrangimentos causados pela pandemia da COVID-19. No futuro também será relevante avaliar o impacto na saúde dos idosos do ACeS Oeste Norte não apenas na utilização das escalas e no conhecimento dos médicos.