Motivação e psicopatologia
Alterações nos mecanismos motivacionais poderão estar implicadas na patogénese de determinadas doenças psiquiátricas, como a perturbação de uso de substâncias ou a perturbação de hiperatividade e défice de atenção. Secundariamente, a motivação pode integrar o quadro sindromático de perturbações afetivas, de ansiedade e mesmo psicóticas. Porém, o conceito de motivação, enquanto estado de predisposição para a mudança, está presente em qualquer pessoa, saudável ou doente, refletindo-se em todas as vertentes da sua vida. Inclui-se, deste modo, a sua influência no papel de doente e na relação médico-doente. Neste sentido, a motivação seria definida enquanto substrato ubiquitário da condição de doente e fenómeno dinâmico da interação entre este e os profissionais de saúde. A literatura conceptualiza a motivação sob três prismas principais: psicológico, neurobiológico e fenomenológico. Em psicologia o comportamento motivado é promovido pelo reforço positivo, manifestando-se nos estímulos que levam um indivíduo a realizar determinado ato dirigido à obtenção de um propósito.1 De forma resumida, a perspetiva neurobiológica refere-se à motivação como dependente da concentração de dopamina extra-sináptica. A interação com outros neurotransmissores, em diversas vias neuronais, tem como consequência a atividade motivacional. Esta direciona-se à satisfação de determinados estímulos (como fome, sede ou dor). (2 Em fenomenologia o conceito alude à rede de solicitações que fazem com que dada situação seja acompanhada de um determinado sentimento no sujeito, permitindo-lhe uma intenção. (3 As três perspetivas coincidem na identificação de um componente energético/comportamental na motivação, relacionado com um processo de decisão. Remetem, assim, para a etimologia latina da palavra motivação que deriva do verbo movere, mover. A motivação subentende o ato de mover e, portanto, uma ativação comportamental com vista à obtenção de um objetivo.
Motivação do doente na prática clínica
Aplicada à prática clínica, uma alteração na motivação do doente traduz-se num estado de ambivalência e passividade decorrente de uma decisão que deve ser tomada, nomeadamente perante um projeto terapêutico apresentado. Sabe-se que a motivação tem um importante papel na adesão terapêutica, interferindo com a potencial abordagem médica e, consequentemente, com o prognóstico da doença. (4)- (5 Fazendo-se notar em qualquer área clínica, na realidade dos cuidados de saúde primários o estado motivacional dos utentes releva-se pelo importante papel que tem na abordagem das patologias crónicas. Em grande parte destas doenças a mudança de comportamento (como hábitos alimentares ou exercício físico) é tão importante quanto o cumprimento da terapêutica que, por sua vez, também implica a existência de motivação. A implementação da mudança de comportamento não se reflete num resultado visível a curto prazo para o doente, sendo necessária a existência de uma elevada motivação intrínseca para se persistir num projeto terapêutico com benefício a longo prazo. (1
Por outro lado, a presença de motivação constitui, em certas situações, um critério para a própria decisão médica. Utentes «desmotivados» poderão ser excluídos de procedimentos invasivos complexos, como uma cirurgia cardíaca, ou de abordagens multidisciplinares voluntárias, como programas de desabituação de substâncias aditivas, desde simples processos de cessação tabágica até à integração em comunidades terapêuticas. A relevância dada ao estado motivacional do doente enquanto critério de inclusão/exclusão advém da transição do modelo centrado no médico para o modelo multidisciplinar, biopsicossocial e centrado no utente. (4 Numa medicina paternalista, teoricamente qualquer doente seria submetido ao procedimento indicado pelo médico, independentemente da sua motivação para tal. Embora a evolução para o modelo biopsicossocial apresente um saldo positivo na relação médico-doente, a forma como a problemática da motivação do doente é abordada, direcionando unicamente para este a proatividade na mudança, poderá não ser a mais eficiente para a adesão ao tratamento. (4)- (5
A abordagem passiva e inespecífica da motivação
Estudos realizados em contextos clínicos de reabilitação de doenças cardiovasculares demonstram que o conceito de motivação é bastante utilizado pelos profissionais de saúde, embora com fraco rigor na sua definição, havendo um enviesamento no sentido de categorizar alguns utentes como desmotivados. (6 Na generalidade, a motivação do doente é encarada como um fenómeno a priori da intervenção, imutável e dicotómico, no qual não se interfere. Portanto, embora reconhecido, as estratégias especificamente direcionadas à sua potenciação permanecem subaproveitadas. (5)- (7 A ausência de exploração do estado motivacional do doente e da sua potenciação pode levar à rotulação de doentes mais reticentes ou céticos como desmotivados. (6 Neste âmbito importa também distinguir entre adesão e motivação. Embora ambas sejam variáveis independentes, e com diversos fatores influenciadores, poder-se-á dizer que a adesão é, em parte, dependente da motivação e que a presença de uma motivação consolidada influenciará positivamente a adesão do doente.
Propostas para uma abordagem eficiente
Sendo a motivação um conceito difícil de objetivar, poder-se-ão utilizar técnicas indiretas para a sua abordagem. Nomeadamente, pesquisar a existência de sinais iniciais preditivos de um baixo nível de motivação. Alguns deles estão patentes na Figura 1.
Figura 1 Sinais preditivos de um baixo nível de motivação do utente. Nota. Adaptado de: Top 4 motivation techniques for health improvement (https://patientengagementhit.com/news/top-4-patient-motivation-techniques-for-health-improvement). (8
Por outro lado, a análise conjunta do projeto terapêutico com o utente poderá ser útil. O principal objetivo é determinar a utilidade e exequibilidade do plano. A literatura demonstra que quanto menos específico e personalizado é o plano terapêutico, menor motivação há por parte dos doentes em cumpri-lo. (9 Por exemplo, poderão ser colocadas as questões apresentadas na Figura 2.
Figura 2 Questões para análise conjunta de um plano terapêutico com o utente. Nota. Adaptado de: Top 4 motivation techniques for health improvement (https://patientengagementhit.com/news/top-4-patient-motivation-techniques-for-health-improvement). (8
Ainda em continuidade com esta estratégia sabe-se que a existência de consultas regulares, presenciais e com um técnico de referência tem efeitos positivos na adesão dos doentes. (8)- (9 Assim, reavaliações periódicas do cumprimento do plano, com discussão da progressão e possíveis estratégias alternativas, poderão melhorar, ou pelo menos manter, o nível de motivação. Atualmente, o recurso a aplicações informáticas para utilização em telemóveis, tablets ou outros dispositivos pode ter grande utilidade na melhoria da motivação. Exemplos desse tipo de ferramentas são as aplicações de nutrição, perda de peso, realização de exercício físico, entre outras. Se forem fornecidos feedback intercalar e «prémios»/pontuações de acordo com os objetivos atingidos, e propostas metas intermédias e finais, pode ser facilitada a manutenção do drive motivacional. (6)- (7
O recurso a instrumentos psicométricos capazes de objetivar o nível de motivação do doente poderá constituir um auxílio significativo na monitorização da sua progressão ao longo do projeto terapêutico. Uma revisão sistemática de 2019 concluiu pela falta de instrumentos com uma base teórica sustentada, uniformizados e validados, capazes de avaliar com fiabilidade a motivação dos doentes. (5 Encontra-se validado um conjunto de escalas e questionários, publicado por Gudjonsson e colaboradores em 2007, (11 designado pelo acrónimo PAMPA, que integra o PAQ - Patient Attitude Questionnaire, o PMI - Patient Motivation Inventory e o PPQ - Patient Perception Questionnaire. Inicialmente o conjunto foi concebido para um contexto de psicologia forense, mas tem-se mostrado adaptável ao contexto clínico geral. (8), (10)-(11
Porém, existe um substrato teórico bastante estudado e documentado na literatura desde a década de 1980, na área da comunicação em medicina aplicada à abordagem da motivação do doente. O modelo de Entrevista Motivacional (EM) foi o primeiro a espelhar o dinamismo potencialmente modificável do estado motivacional. Inicialmente desenvolvida para a alcoologia, esta técnica de entrevista tem sido resgatada por equipas multidisciplinares de diferentes especialidades. A sua eficácia na promoção da adesão dos doentes demonstra-se em estudos focados em patologias crónicas de áreas como a cardiologia, a endocrinologia ou a reumatologia, (4)- (5 além das clássicas perturbações de uso de substâncias. Os princípios do modelo foram inicialmente publicados por Miller na prestigiada revista Behavioural and Cognitive Psychotherapy, em 1983. (12 No início da década de 1990, a entrevista foi aperfeiçoada em coautoria com Rollnick. Desde então têm decorrido diversas adaptações e validações. O método utiliza fundamentos da Psicoterapia Rogeriana, centrada no cliente, tendo como principal objetivo predispor o indivíduo para a mudança, intervindo na ambivalência enquanto fator de inércia da motivação. A entrevista contempla diversas técnicas, conforme exemplificado na sigla OARS, do inglês, descodificada na Figura 3. (12
Figura 3 Princípios básicos da EM, segundo a sigla OARS. Nota: EM = Entrevista motivacional. Adaptado de: Towards 40 years of motivational interviewing: evolvement of the approach. (13
Paralelamente à EM, mas de forma independente desta, foi desenvolvido em 1982 por Prochaska e DiClemente o Modelo Transteórico ou Estados de Mudança (MTT) (14 (Figura 4). Inicialmente também construído para patologia aditiva, designadamente para um programa de cessação tabágica, identifica vários níveis motivacionais, em sequência hierárquica, com dificuldades e atributos específicos. (13 Ilustra, assim, o dinamismo do processo de motivação, a sua mutabilidade e a possibilidade de avanços trans-etapas e de recuos. O facto de o profissional de saúde poder categorizar o estado de mudança do doente e perceber a sua movimentação dentro do MTT confere-lhe capacidade de controlo e previsibilidade sobre as suas atitudes e a sua envolvência no processo terapêutico. Embora sejam instrumentos distintos, a EM e o MTT atuam em simbiose. Deste modo, o MTT constitui-se como uma medida de terreno para a aplicação dos princípios da EM. (13
Figura 4 Modelo Transteórico ou dos Estados de Mudança. Nota: 1. Pré-contemplação: não reconhecimento do problema pelo indivíduo, sem intenção de mudança; 2. Contemplação: reconhecimento do problema. Ambivalência, sentimentos opostos em relação à mudança; 3. Preparação: planificação da mudança; 4. Ação: execução do plano; 5. Manutenção: continuidade de comportamentos e atitudes para manter a mudança. Adaptado de: Towards 40 years of motivational interviewing: evolvement of the approach. (13
Conclusões
A abordagem da motivação na prática clínica pode ser encarada como infrutífera quando este conceito é considerado como característica estanque e dependente apenas do controlo do doente. Contudo, a aprendizagem de técnicas de ativação motivacional por parte dos profissionais de saúde redirige para estes um papel mais ativo na modificação de comportamentos dos utentes. Se os modelos de comunicação motivacional se restringiam inicialmente a programas de desabituação de substâncias, hoje em dia, a sua aplicabilidade está comprovadamente generalizada. O seu papel na abordagem multidisciplinar da doença crónica tem sido destacado. Um melhor conhecimento das especificidades da motivação dos utentes, passando nomeadamente pelo investimento no treino de estilos comunicacionais, é fundamental. O foco na motivação do doente pode promover a adesão a processos terapêuticos complexos, melhorando a sua qualidade de vida. Por outro lado, aumenta a satisfação do profissional e a qualidade dos cuidados de saúde. (3)- (5