Introdução
Os cuidados de saúde primários (CSP) pretendem assegurar proximidade de cuidados de saúde à pessoa, à sua família e à comunidade.1 É nos CSP que frequentemente surge o primeiro contacto com o Serviço Nacional de Saúde, veiculado pela medicina geral e familiar (MGF). Esse contacto poderá ser o primeiro, mas não será o único/último, graças aos cuidados contínuos, multidisciplinaridade e cooperação entre níveis de cuidados. 2-3 A importância dos CSP para o utente torna imprescindível estudar o que neles acontece e o conhecimento dos motivos de consulta (MC) é uma ferramenta para tal. 4
A razão pela qual um doente procura os cuidados de saúde é traduzida pelo seu MC. Podem ser sintomas ou preocupação com os mesmos, pedidos de exames complementares de diagnóstico ou desejo de conhecer o resultado dos mesmos, pedidos de medicação, seguimento de doenças, razões do foro administrativo, entre outros. 5 A decisão de consultar o MF e o que traz o doente ao seu encontro estão envoltos numa experiência individual e muito dizem sobre ele.
O MC transcende a própria doença e fornece informações relevantes que o diagnóstico, ferramenta tão utilizada para conhecimento e gestão de cuidados de saúde, não consegue. Por detrás de um diagnóstico estão vários acontecimentos, medos e perspetivas vivenciados pela pessoa, que não podem ser ignorados.4 Assumir que só o diagnóstico tem interesse significa um afastamento da pedra basilar da MGF, a medicina centrada na pessoa. 6
O conhecimento do MC permite, portanto, aplicar uma medicina centrada na pessoa. O apuramento do motivo que traz um doente à consulta, a exploração das suas queixas e o acordo mútuo quanto ao motivo de procura, é determinante para uma resposta individualizada, apreciada pelas pessoas e com influência na dinâmica da consulta e no sucesso terapêutico, assim permitindo o conhecimento e o estudo dos padrões de procura dos CSP. 4
Permite também avaliar como estão a ser feitos os registos pelos MF. Os registos clínicos (RC) em MGF são de valor inestimável, fazendo parte das competências do MF.3 Além de instrumento informativo clínico da pessoa e do processo de cuidados, são uma ferramenta de investigação e de gestão do desenvolvimento da experiência clínica do médico. 7-9
É, portanto, uma ferramenta bastante útil para planeamento da promoção da saúde e prevenção de doenças, melhoria das unidades de CSP, estabelecimento de um programa de garantia de qualidade em MGF e mesmo para a redução do fenómeno do utilizador frequente. 10-15
Os MC podem ser codificados com recurso à International Classification for Primary Care (ICPC), uma classificação desenvolvida pela WONCA (World Organization of Family Physicians) em 1987, com a sua segunda versão (ICPC-2) disponibilizada em 1998. Foi desenvolvida como uma forma de classificação própria para utilização nos CSP. Esta classificação assenta numa estrutura bi-axial composta por dezassete capítulos baseados em sistemas corporais, cada um com um código alfa, e sete componentes com rúbricas numeradas por códigos de dois dígitos. Nos CSP, em Portugal, os RC são feitos maioritariamente em formato eletrónico e todos os sistemas informáticos utilizam a ICPC-2 como sistema de codificação. Esta classificação pode ser usada em concordância com o método SOAP, permitindo classificar MC no «S», diagnósticos no «A» e procedimentos no «P».16
O uso da classificação ICPC-2 padroniza os RC, que são uma ferramenta valiosa em MGF e para o uso em investigação, pois garante dados passíveis de comparação. O MC codificado em ICPC-2 deve ser o mais próximo possível do MC expresso pelo doente e não deve ser inferido pelo médico. 10 Para garantir a qualidade dos estudos dever-se-á assegurar que os MF utilizadores desta classificação a sabem usar e aplicar na prática clínica. Estudos em Portugal vieram alertar acerca da insatisfatória codificação com ICPC-2, sendo de interesse investir em formação na área. 17
Em Portugal existe um grande desconhecimento dos motivos que trazem o doente à consulta, sendo poucos os estudos realizados na área. 12-13 Já no estrangeiro observa-se um interesse crescente em torno desta temática, contribuindo vários países por todo o mundo para o conhecimento dos MC. 18-23
A pertinência deste tema, aliada à escassez de trabalhos deste cariz realizados em Portugal, suscitou o desenvolvimento do presente estudo. Com inspiração em artigo anterior, 13 que estudou os MC classificados em 2010 pelos MF na região de Coimbra, decidiu-se alargar a base temporal para uma década e estender a toda a região Centro, acrescentando ainda uma análise temporal comparativa e respondendo a questões e suposições levantadas pelos autores em 2010.
O objetivo do presente estudo foi a análise dos MC classificados em capítulos com recurso à ICPC-2 na componente S (Subjetivo) do método SOAP por MF, na região geográfica do Centro de Portugal ao longo da última década. Admitia-se que os MC seriam diferentes consoante os anos em estudo, supondo-se uma dinâmica de crescimento positiva em relação à quantidade de consultas com uso da classificação ICPC-2.
Métodos
Realizou-se um estudo transversal observacional dos dados fornecidos pela Administração Regional de Saúde (ARS) do Centro, após pedido e parecer positivo da Comissão de Ética da Administração Regional de Saúde do Centro. Foi respeitado o anonimato em relação aos dados em questão, não sendo possível inferir por qualquer dado de que pessoa se tratava.
Os dados foram solicitados em 4 de março de 2020, após conhecimento da homologação pelo Conselho Diretivo da ADRS do Centro do parecer da Comissão de Ética para a Saúde da ARS do Centro, e foram recebidos, em formato eletrónico, em 14 de março de 2020.
Para o presente estudo foi considerado como MC a classificação ICPC-2 registada no componente S (Subjetivo) do SOAP.
Os dados, organizados por ano e sexo, continham o número total de consultas, o número de consultas com classificação ICPC-2 em S do SOAP e os capítulos ICPC-2 registados em S do SOAP em todas as consultas realizadas em 2010, 2012, 2014, 2016 e 2018 em três Agrupamentos de Centros de Saúde (ACeS) da área de abrangência da ARS do Centro, que assim constituíram a amostra. Foram analisadas todas as consultas ocorridas por todas as pessoas que frequentaram a atividade dos médicos de família dos ACeS selecionados. Os anos foram arbitrariamente selecionados como sendo os anos pares da década.
Não foi feito cálculo da dimensão amostral. Os ACeS foram selecionados de modo aleatório em função da representatividade geográfica quanto à sua localização do litoral para o interior da região Centro. No litoral localizavam-se três ACeS (Pinhal Litoral, Baixo Mondego e Baixo Vouga), sendo sorteado Baixo Mondego; no médio-interior encontravam-se outros três ACeS (Dão Lafões, Pinhal Interior Norte e Pinhal Interior Sul), sendo sorteado Dão Lafões; e no interior situavam-se três ACeS (Guarda, Cova da Beira e Beira Interior Sul), sendo sorteado Cova da Beira.
O estudo não foi objeto de qualquer financiamento, tendo sido realizado pelos autores em horas extra-laborais.
Realizou-se estudo estatístico descritivo e verificaram-se as dinâmicas de crescimento em relação à proporção de consultas com motivo classificado em cada ano e de proporção de cada capítulo ICPC-2 por ano. Foi utilizada estatística inferencial não paramétrica pelo teste de Kruskal-Wallis para verificar diferenças em função dos anos em estudo.
Resultados
Para o conjunto de anos estudados (2010, 2012, 2014, 2016, 2018) foi analisado um total de 12.569.898 consultas, sendo 672.004 as consultas com MC classificado por ICPC-2 (5,3%).
De acordo com a Tabela 1, constata-se uma diminuição acentuada do número total de consultas de 2010 para 2012 (∆=-11,5); nos anos do período intermédio, 2014 e 2016, o número total de consultas manteve-se constante, verificando-se de novo uma subida no ano de 2018, mesmo assim com (∆=-11,2) entre 2010 e 2018.
O sexo feminino foi mais frequentador da consulta de MGF em todos os anos observados neste estudo; no entanto, sem se verificar diferença significativa entre sexos p=0,999 (Kruskal Wallis).
A proporção de consultas com MC classificado variou em onda ao longo dos anos, tendo o seu pico máximo em 2010 (6,1%), diminuindo acentuadamente em 2012 (4,4%) (∆=-27,9), começando a aumentar progressivamente em 2014 (5,0%) e 2016 (5,7%) e voltando a diminuir em 2018 (5,4%) (∆=-11,5 entre 2010 e 2018).
Na Tabela 2 observa-se a classificação por capítulo ICPC-2 em S de SOAP nos anos estudados.
Verificou-se relativa constância na frequência média da classificação dos capítulos A (Geral e Inespecífico) (15,4%), L (Sistema Músculo-Esquelético) (11,3%) e D (Sistema Digestivo) (10,3%), sendo estes os mais classificados em todos os anos estudados. Os capítulos R (Sistema Respiratório) (8,4%), S (Pele) (9,7%) e K (Aparelho Circulatório) (7,9%) são os seguintes mais classificados em todos os anos. Identifica-se um padrão geral «ALDSRK» em todos os anos à exceção de 2010, no qual o capítulo R foi mais classificado que o capítulo S, mantendo-se os restantes capítulos com a mesma ordem.
Quanto aos capítulos menos classificados constatou-se estabilidade ao longo dos anos estudados. Ordenados por ordem crescente de frequência média, Z (Problemas Sociais) (1,6%), Y (Aparelho Genital Masculino) (1,7%), B (Sangue, Sistema Hematopoiético, Linfático, Baço) (1,9%), W (Gravidez e Planeamento Familiar) (2,1%), H (Ouvido) (2,9%) e N (Sistema Neurológico) (3,7%) foram os capítulos menos classificados em todos os anos. Ao contrário do verificado nos capítulos mais classificados não se notou padrão organizacional ao longo dos anos em estudo.
De acordo com a Tabela 3 observou-se variação na frequência relativa de capítulos ao longo dos anos em estudo.
De 2010 para 2012 verificou-se uma dinâmica de crescimento positiva, com destaque para os capítulos Z (∆=+0,78), B (∆=+0,38), Y (∆=+0,25), W (∆=+0,13), T (∆=+0,13), K (∆=+0,12) e N (∆=+0,11). Nos capítulos com dinâmica de crescimento negativa sobressaíram os A (∆=-0,13), R (∆=-0,12) e L (∆=-0,10).
Entre 2010 e 2018 destacaram-se episódicas variações na dinâmica de crescimento positiva para o capítulo W de 2014 para 2016 (∆=+0,11), a dinâmica de crescimento negativa do capítulo B de 2016 para 2018 (∆=-0,12) e a dinâmica de crescimento positiva de Z em todos os intervalos de anos: 2012 a 2014 (∆=+0,08), 2014 a 2016 (∆=+0,10) e 2016 a 2018 (∆=+0,02).
De 2010 para 2018, os capítulos com uma maior dinâmica de crescimento positiva foram o Z (∆=+1,18), o Y (∆=+0,34), o B (∆=+0,29), o T (∆=+0,18), o W (∆=+0,17), o N (∆=+0,17) e o P (∆=+0,14). Já nos capítulos com uma dinâmica de crescimento negativa destacaram-se o A (∆=-0,15) e o R (∆=-0,12).
Discussão
São escassos os estudos em Portugal dedicados ao conhecimento dos MC e nenhum se debruçou ainda sobre a tendência evolutiva dos mesmos em séries temporais. A importância deste trabalho apoia-se nestes pilares e os resultados obtidos fornecem informação de relevo.
Os MC têm a sua importância justificada no ambiente de MGF, quando há trabalho centrado no paciente, para que da consulta resulte também a resposta aos medos, perspetivas e receios de quem consulta, assim se evitando o utilizador frequente e, ao mesmo tempo, melhorando a satisfação do médico. 6
Este trabalho visou clarificar qual a frequência de classificação de MC pela ICPC-2, verificando-se uma proporção de 5,3% no global do período estudado. A existência de variado material bibliográfico, sistema auxiliar de codificação ICPC-2 nos suportes eletrónicos de RC, de cursos para Internos da Especialidade de MGF, de workshops em Encontros Nacionais de MGF, bem como a própria familiarização com a classificação ICPC-2, faziam prever um aumento da frequência de uso desta classificação nas consultas, o que não aconteceu, oscilando o valor em onda ao longo do período em estudo. 11,16-17,24-25
O período de crise económica enfrentado pela Europa entre 2007 e 2013 teve uma repercussão particularmente negativa na saúde em Portugal, não só pelo impacto financeiro na economia das famílias, mas também pelas medidas de austeridade aplicadas ao setor da saúde, com consequências também reveladas neste estudo.26
De 2010 para 2012 verificou-se uma diminuição de 11% no número total de consultas realizadas. O aumento do valor das taxas moderadoras nas consultas de MGF nos CSP, em janeiro de 2012, com o objetivo de racionar a procura de cuidados de saúde, parece explicar esta diminuição de procura de cuidados. 27
De 2016 para 2018 registou-se um aumento de 6% no acesso a consultas tendo, em maio de 2016, as taxas moderadoras aplicadas às consultas de MGF sofrido uma redução de valor, 28 ao mesmo tempo que se verificava uma melhoria das condições financeiras das famílias (período pós-crise), o que parece originar este maior consumo de consultas.
O capítulo A foi o mais classificado, com uma média nos anos de estudo de 15,4%, seguindo-se os capítulos L, D, S, R e K com média de proporções entre 7,9% e 11,3%. Pode inferir-se com estes resultados que, apesar de ser do capítulo A o MC mais frequentemente classificado, os capítulos que se lhe seguem são classificados em semelhante proporção, o que traduz o propósito dos CSP - a porta de entrada do Serviço Nacional de Saúde para o doente e as suas diversas patologias.3 Supõe-se que a frequência com que o capítulo «Geral e Inespecífico» é classificado possa indicar que o doente tem dificuldade em expressar o verdadeiro motivo que o leva a procurar o MF e/ou que o MF não consiga traduzir o MC, mas também pode figurar o papel do médico em lidar com queixas vagas, tão frequentes em MGF. É também no capítulo A que se encontram MC muito prevalentes, como a medicina preventiva e a febre, o que pode justificar a frequência da sua codificação.
Os capítulos Z, Y, B, W, H e N são os menos classificados em todos os anos de estudo. A limitada codificação destes capítulos como MC pode alertar para a hesitação do doente em indicá-los, por serem capítulos delicados, pela dificuldade por parte do MF em investigar estes capítulos ou pela menor representatividade destes capítulos na população.
Como referido anteriormente, de 2010 para 2012 registou-se uma grande redução no número de consultas. O capítulo A registou uma dinâmica de crescimento negativa, contrastando com as dinâmicas de crescimento positivas dos capítulos Z, B, Y, W, T, K e N. Porventura, com a aplicação das taxas moderadoras em 2012 e a consequente redução de procura de cuidados médicos de MGF, priorizaram-se MC mais específicos que os classificáveis em «Gerais e Inespecíficos». Para a dinâmica de crescimento negativa na classificação dos capítulos R e L não se encontra outra lógica explicativa que não a de particularidades de classificação médica.
O capítulo Z, ao ser codificado como MC, mostra que o médico de MGF está a contextualizar aspetos relacionados com queixas que originam sofrimento e que até podem sugerir doença orgânica, como pobreza/dificuldades financeiras, problemas de desemprego e problemas com as condições de trabalho. 29 Este capítulo teve uma dinâmica de crescimento positiva em todos os intervalos de anos em estudo e é o capítulo com maior dinâmica de crescimento positiva de 2010 para 2018. Estudos anteriores já previam este aumento de classificação. 13 Durante a crise económica de 2007, a taxa de desemprego em Portugal aumentou de 7,6% em 2008 para 16,2% em 2013, estando em conformidade com a dinâmica de crescimento positiva do capítulo Z de 2010 para 2012 (0,78). A partir de 2014 a taxa de desemprego começou a diminuir e em 2018 atingiu o valor de 7,0%.30 Os valores da dinâmica de crescimento do capítulo Z também decresceram, registando-se de 2016 para 2018 o valor mais baixo para este capítulo (0,02).
O capítulo P (Psicológico) está em harmonia com esta temática. Estudos anteriores mostraram que “períodos de recessão económica contribuem para uma maior frequência de problemas de saúde mental”, havendo uma correlação positiva entre a taxa de desemprego e a depressão. 26 Nesta sequência temporal verificou-se, para a classificação do capítulo P, dinâmica de crescimento positiva de 2010 para 2012 (∆=+0,09) e de 2012 para 2014 (∆=+0,06) e, aquando do período de recuperação económica, a partir de 2014, uma dinâmica de crescimento nula (∆=0,00) de 2014 para 2016 e negativa (∆=-0,03) de 2016 para 2018.
O aumento da classificação dos capítulos Z e P e a correlação com períodos de crise económica parece mostrar que a classificação de MC consegue traduzir as flutuações de problemas socioeconómicos. Estes resultados devem impulsionar a tomada de medidas preventivas que atenuem o impacto de uma futura crise na saúde dos portugueses e dos médicos, particularmente os MF. O facto de o capítulo Z ser mais classificado que o capítulo P indica que os MF reconhecem a presença dos fatores sistémicos - problemas sociais -, que poderão estar na origem de problemas psicológicos, e não apenas a patologia sistémica em si, refletindo a relação entre o profissional de MGF e o contexto holístico da sua prática.
O capítulo B (Sangue, Órgãos Hematopoiéticos e Linfáticos) destacou-se com uma dinâmica de crescimento positiva de 2010 para 2012 (∆=+0,38); no entanto, de 2016 para 2018 registou uma dinâmica de crescimento negativa (∆=-0,12). O capítulo Y (Órgãos Genitais Masculinos) teve uma dinâmica de crescimento positiva de 2010 para 2012 (∆=+0,25) e foi também um dos capítulos com maior dinâmica de crescimento de 2010 para 2018 (∆=+0,34). Não se encontram claras explicações para estes resultados, sendo necessários outros trabalhos para a sua compreensão.
O capítulo W (Gravidez e o Planeamento Familiar) teve dinâmicas de crescimento importantes de 2010 para 2012 (∆=+0,13) e de 2014 para 2016 (∆=+0,11), sendo dos capítulos com maior dinâmica de crescimento de 2010 para 2018 (∆=+0,17). Este facto parece indicar uma maior preocupação do sexo feminino e do casal com a saúde sexual e planeamento familiar.
Em Portugal são escassos os estudos que se debruçam sobre a temática dos MC. Os trabalhos encontrados apenas reportam realidades locais e já estão algo desatualizados. Contudo, observam-se inúmeras semelhanças com os resultados obtidos no presente estudo.
Um estudo realizado no distrito de Coimbra em 201013 indicou como MC mais classificados os capítulos A, L, K e W. Estes resultados estão em concordância com o presente estudo, à exceção do capítulo W, que foi dos menos registados na atual investigação, mesmo no ano de 2010.
Outro estudo, realizado entre 1997 e 1999 no Centro de Saúde de Cascais (extensão Estoril), 14 identificou o padrão «KARLP» como MC mais recorrentes. Observam-se semelhanças nos resultados encontrados, excetuando-se a presença do capítulo P entre os mais classificados e o facto de o capítulo A não ser dos mais classificados, o que pode revelar a influência de fatores sociogeográficos.
Trabalhos realizados fora de Portugal estudaram também a realidade dos MC. 18-23 A conformidade com os presentes resultados verifica-se, levando à constatação de que será semelhante o motivo de procura do MF. No entanto, constatam-se algumas dissemelhanças como no Brasil, onde o capítulo W foi mais procurado, 19 a Dinamarca onde o Capítulo P foi mais classificado 20 ou no Egito e na Suíça onde o capítulo A foi muito menos classificado. 21,23 As desigualdades encontradas podem prender-se com diferenças verdadeiramente imputáveis aos MC, devido à epidemiologia distinta ou às diferenças de organização dos serviços de saúde de cada país. As práticas de codificação podem também estar na origem de alguns resultados menos concordantes, bem como o fenótipo de cada população.
As limitações inerentes a este estudo estão essencialmente relacionadas com a classificação e os médicos que a realizam. Não se conhece o número de MF que codificam com o ICPC-2 na sua prática clínica diária, nem a qualidade das suas classificações. No entanto, este facto é motivo de formação quer em ensino pré-graduado quer em Internato da especialidade de MGF desde há alguns anos, constando, em 2015, no plano de formação para MGF o conhecimento dos conceitos que enquadram o exercício de MGF e a descrição dos conceitos epidemiológicos necessários à compreensão e diagnóstico dos problemas de saúde mais frequentes.31-32
O recurso a um ambiente protegido e selecionado de investigadores com experiência em classificação ICPC-2 permitirá uma classificação mais homogénea. Para enriquecer o trabalho, a agregação dos dados por faixa etária permitirá retirar conclusões mais importantes. No entanto, reforça-se que o objetivo do presente estudo era o conhecimento dos MC gerados pelos MF através dos RC por classificação ICPC-2.
Alguns trabalhos argumentam pela não necessidade e mesmo pela não realização deste tipo de atividade pelos MF. 10,33 Os resultados obtidos permitem discordar destas orientações. O conhecimento dos MC, como o realizado, permitiu reconhecer a epidemiologia na região Centro de Portugal e motivou os investigadores a refletir acerca das implicações económicas e legislativas na procura de cuidados de saúde, possibilitando intervenções futuras com o intuito da prevenção e promoção da saúde, com benefício para a saúde pública. A perceção da frequência de classificação de MC pelos MF é um alerta, possibilitando uma atuação a nível formativo médico com benefício para a prática da MGF.
Em conclusão, no período estudado, a proporção de consultas com MC classificado por ICPC-2 foi baixa (5,3%), apresentando uma evolução em onda. Verificou-se ainda existir constância nos motivos que levaram a população da região Centro à consulta durante a última década. Observa-se uma maior procura de consultas por motivos relacionados com os capítulos A, L, D, R, S e K e uma menor procura por capítulos como Z, Y, B, W, H e N. O capítulo de Problemas Sociais destacou-se ao ser o capítulo com maior aumento de codificação com o decorrer dos anos em estudo.
É importante o investimento na formação em classificação com ICPC-2, de modo a aumentar o número de médicos que fazem uso da classificação rotineiramente, bem como a qualidade das suas codificações. A abrangência do presente estudo a outras áreas geográficas é pertinente, na medida em que, para além de escassos, os estudos em Portugal retratam apenas realidades locais. Devido à atual situação pandémica COVID-19 será importante reproduzir este mesmo estudo com dados mais recentes, nomeadamente a partir de março de 2020, de modo a averiguar as consequências da pandemia na saúde da população portuguesa, prevendo-se uma dinâmica de crescimento positiva nos capítulos Z e P.