Introdução
As doenças respiratórias impõem um elevado custo na saúde global e são causa major de morbilidade na idade pediátrica.1 De entre as doenças respiratórias, as do trato respiratório inferior são responsáveis pela maioria das patologias graves, destacando-se nos países desenvolvidos a pneumonia viral e a bronquiolite entre as patologias agudas e a asma entre as crónicas. 1-2
A via inalatória constitui o método preferencial de administração terapêutica no tratamento de doenças respiratórias. Esta via de administração permite que os fármacos sejam depositados diretamente no órgão-alvo, o que possibilita um rápido início de ação, necessidade de doses terapêuticas menores e, consequentemente, redução da ocorrência de efeitos secundários possíveis. 3
A administração de fármacos em idade pediátrica impõe desafios, incluindo na administração de fármacos inalados. Durante muitos anos, os sistemas de nebulização foram considerados o método de eleição para terapia inalatória em pediatria. No entanto, com o surgimento de dispositivos simples de inalação, e as suas inerentes vantagens, alterou-se o paradigma e os nebulizadores foram remetidos para situações específicas. 4-5
Quando comparados com os dispositivos simples de inalação, os sistemas de nebulização são menos eficazes e práticos, mais dispendiosos e consumidores de tempo. Acresce a dificuldade provocada pela exigência de conhecimento específico respeitante às características técnicas dos diferentes aparelhos, e respetivas interfaces, e à manutenção dos mesmos. Além disso, a contaminação dos componentes dos sistemas de nebulização parece condicionar um risco acrescido aos doentes com patologia respiratória. 6 Neste sentido, têm surgido linhas orientadoras para a prescrição preferencial de aerossolterapia por dispositivos simples em todas as idades. 6 Durante a pandemia SARS-CoV-2 foi reforçada a importância de evitar a utilização dos sistemas de nebulização. 7
Não obstante, alguns estudos têm vindo a demonstrar elevadas taxas de utilização e manutenção incorreta dos sistemas de nebulização. 8-10
Assim, atendendo às linhas de orientação clínica vigentes4-5 e às desvantagens e potenciais perigos associados ao uso excessivo e incorreto de nebulizadores, o presente estudo tem como objetivo investigar a realidade da utilização domiciliária de sistemas de nebulização em idade pediátrica na Unidade de Saúde da Ilha de São Miguel (USISM).
Método
Desenvolveu-se um estudo observacional, transversal e analítico. Cumpriam critérios de inclusão os utentes em idade pediátrica dos zero aos sete anos de idade (inclusive) observados em consulta médica/enfermagem da Unidade de Saúde da Ilha de São Miguel. A população-alvo foi definida de acordo com a norma de atuação clínica nacional vigente à data de início do estudo. 4 O único critério de exclusão foi a idade superior a sete anos.
Calculou-se a amostra significativa através do software OpenEpi®, disponível online. Admitiu-se uma população de 33.361 crianças dos zero aos sete anos (Censos 2011). Considerando uma prevalência antecipada esperada de 50% (por ser desconhecida), um erro de 5% e um intervalo de confiança de 95%, obteve-se uma amostra significativa de 380 utentes.
O estudo envolveu a aplicação de inquérito a uma amostra de conveniência, sob a forma de questionário aos acompanhantes da população-alvo, no âmbito da consulta de saúde infanto-juvenil (enfermagem ou médica), de forma voluntária, confidencial e mediante assinatura de consentimento informado, livre e esclarecido. O questionário original utilizado foi previamente testado numa pequena amostra da população, tendo sido considerado válido para o objetivo em estudo. O questionário é composto por quinze questões, onde se avalia a existência de antecedentes pessoais de doenças do foro respiratório e o contexto de aquisição, utilização e manutenção dos sistemas de nebulização (Anexo 1). Foram ainda colhidos dados sociodemográficos. Foi pedida colaboração voluntária de enfermeiros e médicos da USISM na aplicação dos questionários, sendo explicado brevemente como se preenchia. O questionário foi aplicado de forma presencial pelo médico(a) ou enfermeiro(a) durante um período de dez meses - entre abril de 2019 e janeiro de 2020.
Efetuou-se o registo e a análise dos dados utilizando o programa Statistical Package for the Social Sciences® (SPSS) v. 23. Realizou-se uma análise estatística descritiva e, em algumas das variáveis, a análise comparativa entre grupos com recurso ao teste qui-quadrado.
Nenhum questionário foi excluído, mas em alguns constatou-se a ausência de resposta e/ou respostas que foram consideradas inválidas (mais do que uma opção selecionada em questões de resposta única) e, nesses casos, assumiu-se como um missing data.
O estudo obteve parecer favorável do Conselho de Administração da USISM e da Comissão de Ética para a Saúde do Hospital do Divino Espírito Santo de Ponta Delgada, EPER (Refª 910/CES/2018).
Resultados
O questionário foi aplicado a 387 pais ou cuidadores da população-alvo.
Caracterização sociodemográfica da população
A maioria dos questionários foi aplicada à mãe ou pai acompanhante da criança (95,9%; n=372) (Tabela 1). Em apenas 4,1% (n=16) dos casos o questionário foi aplicado a outro cuidador. A maioria das crianças incluídas estava inscrita na USISM (92,5%; n=358). A idade das crianças incluídas no estudo variou de 15 dias a sete anos, com uma média de idades de 2,5 anos. Quase metade das crianças (48,3%; n=187) apresentava menos de dois anos de idade à data do questionário. Ambos os sexos foram igualmente representados (sexo masculino [48,3%; n=187] e sexo feminino [50,6%; n=196]). Todos os concelhos da Ilha de São Miguel foram incluídos, pertencendo a maioria (55,3%) a Ponta Delgada.
História pessoal de doença do foro respiratório
A maioria dos inquiridos negou a existência de antecedentes de patologia do foro respiratório (57,1%, n=221). Os que afirmaram a existência de antecedentes de patologia do foro respiratório (42,9%; n=166) negaram a necessidade de seguimento em consulta especializada em 86,1% dos casos (n=143). A maioria das doenças do foro respiratório correspondeu a patologia aguda: bronquiolite (80,6%; n=137); pneumonia (2,9%; n=5); nasofaringite aguda (2,4%; n=4); e adenoidite (0,6%; n=1). As doenças crónicas mencionadas foram a sibilância recorrente/asma (12,4%; n=21) e a rinite alérgica (1,2%; n=2).
Aquisição de sistema de nebulização
Quase metade dos inquiridos (45,7%; n=177) afirmou possuir um sistema de nebulização. Não se verificou diferença estatisticamente significativa na idade das crianças com e sem sistema nebulização (p-value 0,156) (Tabela 2). Das crianças com antecedentes do foro respiratório, 65,1% (n=108) tinham sistema de nebulização. Das crianças sem antecedentes de patologia do foro respiratório, 31,2% (n=69) tinham um sistema de nebulização. Esta diferença entre grupos (com e sem doença prévia/atual do foro respiratório) foi estatisticamente significativa (p-value <0,001).
Quando questionados sobre possuírem outros dispositivos de terapia inalatória/aerossóis apenas 18,9% (n=73) dos inquiridos apresentaram uma resposta afirmativa, sendo que o dispositivo mais comum (81,7%; n=58) foi o inalador pressurizado com câmara expansora. Das crianças com doença prévia/atual do foro respiratório, 42,2% (n=68) dispunham de outros dispositivos. Das crianças sem doença prévia/atual do foro respiratório, 2,0% (n=4) dispunham de outros dispositivos. Esta diferença entre grupos (com e sem doença prévia/atual do foro respiratório) foi estatisticamente significativa (p-value <0,001).
Relativamente à aquisição dos sistemas de nebulização, cerca de um terço (31,1%; n=55) dos inquiridos referiu tê-lo feito durante o ano anterior à data da aplicação do questionário. O custo de aquisição do sistema de nebulização em 38,4% (n= 68) dos casos variou entre 80 e 150 euros. Em 19,8% (n=35) dos casos não houve custo associado à aquisição, uma vez que este foi emprestado ou oferecido. A maioria dos inquiridos (67,8%; n=120) referiu que obteve o sistema de nebulização sem prescrição médica. Destes, 55,8% (n=67) adquiriram-no por iniciativa própria e 16,7% (n=20) por aconselhamento de um profissional de saúde não médico (enfermeiro, farmacêutico e/ou outros). A maioria dos nebulizadores adquiridos após indicação médica foi prescrita no contexto de uma bronquiolite (66,1%, n=39).
Utilização de sistema de nebulização
Os fármacos mais utilizados pelos inquiridos foram: o soro fisiológico simples (60,2%; n=127) e o soro fisiológico com salbutamol (30,3%; n=64) (Tabela 3). Quando questionados sobre o período de utilização habitual consecutivo do sistema de nebulização, 89,3% (n=158) dos inquiridos referiu utilizá-lo durante cinco a sete dias. Cerca de 7,9% (n=14) dos inquiridos afirmou utilizar o nebulizador por um período consecutivo superior a sete dias. Relativamente à utilização da máscara facial com o nebulizador, 59,9% (n=106) dos inquiridos referiu a não utilização da mesma em algum momento. A maioria dos inquiridos (79,7%; n=141) admitiu utilizar o sistema de nebulização sem prescrição médica. A maioria da utilização não supervisionada ocorreu com soro fisiológico (80,4%; n=123) e no contexto de obstrução nasal (41,1%; n=99) e tosse (24,9%; n=60). O tempo médio desde a última utilização do sistema de nebulização pelos inquiridos foi de 12 meses. Mais de um terço dos inquiridos (34,5%; n=61) assumiu partilhar o nebulizador com outras pessoas, nomeadamente mãe/pai (9,8%; n=6), irmãos (70,5%; n=43), primos (16,4%; n=10), amigos ou vizinhos (3,3%, n=2).
Manutenção dos sistemas de nebulização
A maioria dos inquiridos (68,9%; n=122) referiu limpar o tubo de ar, a máscara e o bucal a cada utilização (Tabela 4). Cerca de 8,5% (n=15) dos inquiridos referiu nunca ter procedido à limpeza dos constituintes. O método preferencial da limpeza envolveu água morna e sabão neutro, seguido de secagem ao natural (26,0%; n=46) ou apenas água seguido de secagem ao natural (24,9%; n=44). Mais de dois terços dos inquiridos (70,1%; n=124) afirmaram nunca ter substituído os constituintes do nebulizador.
Discussão
A administração de broncodilatadores e corticosteroides inalados deve ser realizada através de dispositivos simples, independentemente da idade do utente ou do contexto de atuação clínica (ambulatório, internamento ou urgência). 6 Nas crianças, o uso concomitante de câmara expansora permite ultrapassar o problema de coordenação mão-pulmão, com eficácia terapêutica igual ou superior à dos sistemas de nebulização. 6 De facto, segundo as Normas de Orientação Clínica nacionais vigentes e de acordo com as boas práticas clínicas, o uso de sistemas de nebulização não é a primeira opção para a administração de terapêutica inalatória, estando estes reservados para situações concretas. 4
Neste trabalho verifica-se uma elevada percentagem de inquiridos (45,7%) que assumiu possuir um nebulizador para uso domiciliário pediátrico em comparação com aqueles que referiram possuir um dispositivo simples (18,9%). A constatação de que a maioria das crianças incluídas no estudo tinha menos de dois anos de idade e não tinha patologia pulmonar crónica que justificasse, de acordo com as Normas de Orientação Clínica nacionais, a utilização de sistemas de nebulização deve alertar para a necessidade de melhorar a prática clínica neste contexto. 4 A patologia respiratória prévia mais mencionada, e aquela que levou mais frequentemente à prescrição médica de nebulizadores, foi a bronquiolite. Esta patologia, segundo as Normas de Orientação Clínica vigentes, não tem indicação para terapêutica inalatória em ambulatório. 11 Além disso, a maioria dos inquiridos adquiriu os nebulizadores sem prescrição médica (67,8%), por iniciativa própria (55,8%) e por aconselhamento de um profissional de saúde não médico (16,7%), o que demonstra que é importante investir na informação da população e na formação dos profissionais de saúde não médicos. Seria ainda importante, no futuro, tentar perceber o motivo que levou à aquisição do nebulizador nos cuidadores que o fizeram por iniciativa própria.
As taxas de aquisição e utilização sem prescrição médica dos sistemas de nebulização foram de 67,8% e 79,8%, respetivamente. A liberalização na aquisição dos sistemas de nebulização pode comprometer os objetivos das Normas de Orientação Clínica vigentes. De ressalvar que o fármaco mais utilizado sem prescrição médica prévia foi o soro fisiológico, o que segundo as Norma de Orientação Clínica atuais, está indicado apenas em doentes domiciliários ventilados com vias aéreas artificiais ou com dificuldade nos mecanismos de tosse. 4 Por fim, o custo associado à aquisição do sistema de nebulização foi mais elevado do que aquele associado à aquisição de um dispositivo simples com câmara expansora, como previamente estimado por Oliveira e colaboradores. 10 Estes resultados reforçam a necessidade da discussão em torno dos moldes atuais de aquisição dos sistemas de nebulização, uma vez que um dispositivo de administração de fármacos inalatórios continua a ser de venda livre e de fácil acesso aos cuidadores das crianças.
Este estudo também revelou elevadas taxas de utilização indevida dos sistemas de nebulização. Concretamente, 7,9% dos inquiridos assumiu utilizar o nebulizador por mais do que sete dias, período máximo estipulado pelas Normas de Orientação Clínica vigentes. 4 Ademais, 59,9% dos inquiridos referiu não utilizar a interface corretamente, valor superior ao documentado no estudo de Oliveira e colaboradores (59,9% vs 40%). 10 Além disso, em 39,8% dos casos, o sistema de nebulização foi partilhado com outros utilizadores, o que representa mais do dobro do valor documentado no mesmo estudo (39,8%% vs 18,1%).10
Quanto à manutenção dos sistemas de nebulização, o estudo revelou uma conduta heterogénea na limpeza dos mesmos. A maioria dos inquiridos revelou limpar o tubo de ar, a máscara e o bucal do sistema de nebulização a cada utilização, uma percentagem superior à documentada na literatura (68,9% vs 48,7%). 12 A maioria dos inquiridos (50,9%) referiu como método de limpeza a lavagem com ou sem sabão neutro, seguido de enxaguamento com água morna e secagem ao natural. Este método de limpeza é o recomendado pela maioria dos fabricantes de nebulizadores. 13 A secagem natural, em comparação com a secagem com pano, parece estar associada a menores taxas de contaminação. 12 Não obstante, 70,1% dos inquiridos nunca substituíram a máscara, bucal e o tubo de ar do sistema de nebulização.
Após uma revisão sistemática da literatura, os autores constataram que a realidade da utilização domiciliária de sistemas de nebulização nunca tinha sido estudada na ilha de São Miguel. Foi possível atingir uma amostra representativa da população-alvo e abranger todos os concelhos da ilha. A aplicação dos questionários por entrevista pessoal, com possibilidade de esclarecimento de questões mais técnicas, é também considerada uma mais valia. Por outro lado, o estudo apresenta as limitações inerentes à aplicação de questionários (e.g., respostas não registadas com missing data ou heterogeneidade da colheita entre profissionais) e ao tipo de amostra (de conveniência e não representativa de todos os concelhos).
Conclusão
O presente estudo evidencia aquisição e utilização excessiva, não supervisionada e inapropriada dos sistemas de nebulização pelos cuidadores.
A maioria dos cuidadores adquiriu os nebulizadores sem prescrição médica, por sua iniciativa ou por indicação de outros profissionais de saúde não médicos. Acredita-se que deviam ser alvo de estudo as causas que levam à aquisição voluntária e frequente deste dispositivo. A informação da população sobre os riscos inerentes ao uso dos nebulizadores e a venda condicionada a prescrição médica poderiam ser algumas das formas para diminuir drasticamente a aquisição. A formação de profissionais de saúde, como médicos, farmacêuticos e enfermeiros, pode também contribuir para diminuir a aquisição excessiva.
Quanto ao uso inapropriado dos sistemas de nebulização, a educação dos cuidadores e profissionais de saúde sobre a correta utilização e manutenção dos nebulizadores parece ser fundamental para combater a mesma.
A promoção da utilização dos dispositivos simples através da educação dos utentes, cuidadores e profissionais de saúde, como médicos, farmacêuticos e enfermeiros, é fundamental. A maior eficácia e conveniência de utilização e o menor custo e risco de contaminação, em comparação com os nebulizadores, devem ser reforçados, principalmente no contexto da pandemia SARS-CoV-2.