Introdução
A doença de Creutzfeldt-Jakob (DCJ) ou encefalopatia espongiforme subaguda é a mais comum das doenças priónicas humanas (DPH), embora rara.1 Pode apresentar-se de três formas: a maioria dos casos ocorre de forma esporádica; 5 a 15% correspondem a DCJ familiar; a DCJ adquirida (iatrogénica e variante) representa menos de 1% dos casos.1),(3
Deve suspeitar-se de DCJ nos doentes que apresentam uma síndroma demencial rapidamente progressiva, particularmente quando acompanhada por mioclonias, ataxia ou distúrbios visuais. (1 As alterações cognitivas são as primeiras manifestações mais comuns, seguidas dos sintomas cerebelosos, constitucionais e comportamentais. (1),(4
A biopsia cerebral é o exame gold standard para o diagnóstico. No entanto, uma apresentação clínica típica, associada aos achados da ressonância magnética (RM), eletroencefalografia (EEG) e líquido cefalorraquidiano (LCR) é, na maioria dos casos, suficiente para excluir outras causas e estabelecer como diagnóstico provável a DCJ. (2
Não existe tratamento eficaz para a DCJ. O prognóstico é reservado e a morte ocorre geralmente dentro de um ano após o início dos sintomas, com uma duração mediana da doença de seis meses. (2
Os médicos de família contactam essencialmente com patologias de elevada prevalência e incidência na população. No entanto, por se tratarem do primeiro ponto de contacto com o Serviço Nacional de Saúde deparam-se, por vezes, com doenças que se apresentam de forma indiferenciada, numa fase precoce, onde é ainda difícil estabelecer um diagnóstico concreto. Este relato de caso pretende alertar para a importância da deteção de sinais de alarme que possam levantar a suspeita de uma doença grave, como a DCJ, de modo a realizar uma orientação atempada e antecipar cuidados e apoios necessários.
Descrição do caso
Apresenta-se o caso de uma mulher de 53 anos, raça caucasiana, com o 9º ano de escolaridade, empregada de hotelaria. Casada, mas residia sozinha pelo facto do marido se encontrar institucionalizado por demência de Alzheimer. Tinha uma filha, casada, a viver com o marido e dois filhos adolescentes. Apresentava uma relação próxima com a filha. Como antecedentes pessoais, a salientar hipertiroidismo medicado com metibasol. História de tabagismo de seis unidades maço-ano (UMA), sem hábitos etílicos. Sem outros fatores de risco vasculares conhecidos e sem antecedentes familiares de relevo. Desconhecia alergias.
Em dezembro de 2018 recorreu a consulta aberta da Unidade de Saúde Familiar (USF) por perda de equilíbrio desde há uma semana, associada a tonturas. Ao exame neurológico sumário (ENS) apresentava uma marcha instável, sem outras alterações. Foi medicada com beta-histina 24mg 2id, com indicação para vigilância ativa no domicílio e aconselhada a recorrer novamente à USF em caso de persistência das queixas. Regressou três dias depois à consulta aberta por manutenção do quadro, mostrando labilidade emocional, que associava a alguns problemas familiares que não quis aprofundar nessa consulta. O exame objetivo (EO) era sobreponível ao anterior. Em decisão partilhada com a utente decidiu-se iniciar fluoxetina 20mg id, foi emitido certificado de incapacidade temporária para o trabalho por doença natural e foi agendada consulta de reavaliação dentro de quatro semanas. Voltou à USF cerca de quinze dias depois por manter tonturas diárias, com vários episódios de quedas, apesar da medicação instituída. Não referia queixas de novo, nomeadamente cefaleias, náuseas ou vómitos. Ao EO apresentava-se normotensa, orientada no tempo e no espaço e colaborante, com nistagmo multidirecional horizontal de novo, inesgotável, dismetria do membro superior esquerdo e ataxia axial da marcha, sem alteração dos pares cranianos e sem défices motores ou sensitivos focais, com sensibilidades profundas preservadas bilateralmente. Por agravamento do quadro, com limitação funcional e laboral, e pelas alterações ao ENS, foi referenciada ao serviço de urgência (SU) de neurologia.
No SU, perante o quadro cerebeloso subagudo progressivo, com cerca de um mês de evolução, realizou estudo analítico (hemograma, ionograma, thyroid-stimulating hormone) e tomografia computorizada crânio-encefálica (TCCE), que não revelaram alterações, tendo sido orientada para consulta externa de neurologia.
Em consulta hospitalar, agendada para dois dias depois, mantinha o quadro e o estudo foi complementado com RM-CE, TC tóraco-abdomino-pélvica, mamografia, eletromiografia (EMG) e estudo analítico, com serologias víricas e exclusão de neoplasia oculta e autoimunidade (anticorpos antineuronais).
Nas semanas seguintes, o quadro clínico agravou-se significativamente com dificuldade em executar as atividades da vida diária, nomeadamente por limitação no controlo da amplitude dos movimentos (deixando de ser capaz de ler e escrever mensagens no telemóvel), desenvolvendo também queixas mnésicas (esquecendo os números que previamente sabia). Os familiares notaram alteração comportamental, com maior apatia e períodos em que ficava com o olhar “vazio” e não responsiva, alternados com outros episódios de riso esporádico, sem propósito. Nessa altura a doente teve necessidade de apoio permanente de terceira pessoa, assumindo a filha o papel de cuidadora informal.
Em janeiro de 2019 recorreu de novo ao SU por parestesias dos membros superiores e episódio de perda de consciência, com hipersudorese e palidez, interpretado em contexto disautonómico. Realizou punção lombar que não revelou alterações. Em consulta de reavaliação de neurologia, no final de janeiro, apresentava agravamento da ataxia, com necessidade de apoio bilateral para a marcha, mantendo os défices cognitivos, com alterações da memória e apraxia para vestir. Ao exame neurológico constatou-se défice de atenção na contagem inversa de meses, digito-agnosia, acalculia e relógio com números em ordem invertida. O discurso era pobre e quase telegráfico, com dificuldade em cumprir tarefas a dois tempos. Apresentava hiperreflexia esquerda, reflexo cutâneo-plantar esquerdo em extensão, postura distónica de ambos os membros superiores, com alien limb do membro superior direito, disdiadococinésia bilateral dos membros e titubear cefálico e do tronco. Registaram-se mioclonias espontâneas de novo, em repouso, de ambos os membros superiores e tronco, com startle marcado ao estímulo sonoro. O estudo analítico não mostrou alterações de relevo, assim como a EMG e a TC. A RM-CE revelou hipersinal nos núcleos caudados bilateralmente e putâmen esquerdo, com aparente hipersinal nas áreas corticais, nomeadamente frontais altas parassagitais e insulares, sugestivas de DCJ.
Dada a franca evolução do quadro cognitivo, com ataxia cerebelosa rapidamente progressiva, surgimento posterior de mioclonias, envolvimento piramidal e extrapiramidal e startle, assumiu-se a hipótese de DCJ, com necessidade de internamento a curto prazo para completar investigação. Foi realizada a notificação ao Sistema Nacional de Vigilância Epidemiológica (SINAVE) e explicado o quadro à doente e familiares, bem como o prognóstico e implicações médico-legais.
Dias depois, a doente repetiu a RM-CE, que revelou sinal da fita cortical e hipersinal dos gânglios da base em flair e restrição à difusão. Realizou EEG que suportou o diagnóstico clínico de DCJ, assim como a deteção no LCR da proteína 14-3-3.
Em fevereiro de 2019, em consulta de seguimento de neurologia, apresentava-se em franca deterioração neurológica. Mostrou-se apática durante toda a entrevista, com humor deprimido. A doente foi internada a 15 de fevereiro, com evolução para mutismo acinético com tetraparésia espástica. Pediu-se a colaboração dos cuidados paliativos e foram instituídas medidas de conforto. O óbito foi declarado a 9 de março de 2019. Foi contactada a anatomia patológica, após pedido de consentimento informado à filha, para realização da autópsia.
Comentário
A DCJ, embora rara, é uma doença neurodegenerativa rapidamente progressiva, com um prognóstico muito reservado e implicações biopsicossociais importantes.
Dentro das formas de DCJ, a esporádica (DCJe) ou espontânea é responsável por cerca de 85 a 95% dos casos. A nível mundial, aproximadamente um caso de DCJe ocorre por um milhão de habitantes por ano. 1,3 A idade de início pode ser muito variável, com um pico entre os 55 e 75 anos (média de 64 anos). 2,4 Acredita-se que a DCJe surja devido à alteração anormal da configuração da proteína priónica numa forma causadora de doença, denominada prião. 2
De acordo com a classificação molecular de Parchi e Gambetti, é possível distinguir seis fenótipos clínicos. As duas variantes mioclónicas correspondem a cerca de 70% dos casos e correlacionam-se com o fenótipo «DCJ clássico», de idade avançada, demência rapidamente progressiva com mioclonias precoces e curta duração da doença (média de 3,9 meses), 1 aspetos observados neste caso clínico.
As mioclonias, especialmente induzidas por ruído ou outros estímulos sensoriais, estão presentes em mais de mais de 90% dos doentes. 1 Cerca de 70% tem perda de memória e confusão. Com a progressão da doença, a demência torna-se dominante.3 Mudanças de humor (depressão, apatia) e distúrbios do sono são comuns, podendo estes últimos ser um sinal de apresentação. Sinais de envolvimento do trato corticoespinhal desenvolvem-se em 40% a 80%, incluindo respostas extensoras plantares. 1 Manifestações cerebelosas, incluindo nistagmo e ataxia, ocorrem em aproximadamente dois terços das situações e constituem sintomas de apresentação em 20% a 40%,1 como no caso descrito. Alterações corticais superiores, constitucionais ou oculares, podem também estar presentes. 3-4
Uma vez que a DCJ afeta múltiplas áreas do cérebro, a sua apresentação pode ser muito variada, podendo mimetizar, particularmente em fases iniciais, outras condições neurológicas ou psiquiátricas, o que dificulta o diagnóstico. Por este motivo, alguns autores referem-se a esta patologia como “a grande imitadora”. 4
É importante fazer um diagnóstico diferencial com os diferentes tipos de demência. Ocasionalmente, a demência de Alzheimer e a demência de corpos de Lewy estão associadas a mioclonias e a um curso mais rápido do que o expectável. Outras entidades a ser consideradas incluem distúrbios psiquiátricos, encefalite autoimune e síndromas paraneoplásicas. 1
A biopsia cerebral é o exame de diagnóstico gold standard. No entanto, as características clínicas e laboratoriais geralmente são suficientes para o diagnóstico de DCJe. 1 O caso apresentado constitui um caso provável de DCJ de acordo com os critérios clínicos propostos pelo Centers for Disease Control and Prevention (CDC): demência progressiva e, pelo menos, dois aspetos clínicos (mioclonia; distúrbio visual ou cerebelar; disfunção piramidal/extrapiramidal; mutismo acinético), associados a EEG típico, pesquisa positiva da proteína 14-3-3 no LCR ou RM sugestiva. 5
A RM de difusão é o exame mais útil no diagnóstico de DCJ. Várias proteínas anormais, como a proteína 14-3-3, podem surgir no LCR, constituindo biomarcadores da doença. (2 Um padrão de EEG característico é observado em 67 a 95% dos pacientes com DCJe. O diagnóstico definitivo requer a combinação com achados neuropatológicos. 1 A importância da autópsia em casos de suspeita de DPH prende-se com a confirmação do diagnóstico clínico, avaliação do risco de transmissão, vigilância epidemiológica rigorosa e identificação de novas formas de doença. 2
O tratamento da DCJ é apenas de suporte e o desfecho fatal, sendo que a maioria dos doentes morre dentro de um ano após o início dos sintomas. 1-2
A apresentação deste caso clínico pretende realçar o papel fundamental do médico de família em duas etapas do processo de desenvolvimento da doença. A primeira etapa prende-se com a importância da suspeição inicial no contexto de uma demência rapidamente progressiva, de modo a realizar uma orientação atempada. Embora o desfecho seja fatal, o diagnóstico precoce permite antecipar necessidades e cuidados do doente e da família. A segunda etapa diz respeito ao suporte emocional e social, antes e após a morte do doente, uma vez que o quadro de degradação funcional, cognitiva e afetiva, associado a esta situação clínica, tem um impacto muito negativo na dinâmica familiar.
No caso descrito, a apresentação inicial foi de alteração da marcha isolada, interpretada como síndroma vertiginoso periférico, e alteração do humor, sugerindo um quadro de perturbação depressiva, em provável contexto de problemas familiares. Posteriormente, pelo aparecimento de nistagmo horizontal e ataxia foi colocada a hipótese de causa neurológica central, o que motivou a sua orientação para os cuidados de saúde secundários.
Desde o momento do diagnóstico, e tendo em conta a rápida deterioração cognitivo-comportamental, a doente não voltou a ter consulta na USF, pelo que não foi possível avaliar o impacto da doença na própria. Apesar de não ter existido mais nenhum contacto presencial com a doente, a atuação do médico de família não se esgota nesse momento, sendo fundamental na orientação de questões sociofamiliares. Neste caso em concreto foi realizada referenciação ao serviço social, para pedido de apoio domiciliário e esclarecimento quanto à atribuição de subsídios. Foi também orientada para a saúde pública para obtenção de atestado médico de incapacidade multiusos. Antes de ocorrer o óbito, a filha recorreu a uma consulta na USF. Dada a situação clínica da mãe teve necessidade de suspender a atividade laboral para prestação de cuidados diários. Nesta altura foi emitido um certificado de incapacidade temporária para o trabalho por assistência familiar. Foi proposta referenciação da filha para consulta de psicologia da Unidade de Recursos Assistenciais Partilhados, para auxílio na adaptação ao novo papel de cuidadora, gestão de medos quanto à possibilidade de transmissibilidade da doença e apoio no luto. Após o óbito foram agendadas consultas posteriores para a filha e demonstrou-se disponibilidade para acompanhar também o marido e filhos no processo de luto.