Introdução
A contraceção intrauterina (CIU) é o método contracetivo reversível de longa ação mais utilizado mundialmente, sendo a escolha de cerca de 23% das mulheres.1-2 É um dos métodos contracetivos mais eficaz, 1-5 apresentando elevado nível de segurança e reduzidos efeitos adversos, a maioria dos quais reversíveis após a sua remoção. 1,4,6-8 A CIU apresenta dois métodos disponíveis: o dispositivo intrauterino não hormonal de cobre (Cu-DIU) e o sistema intrauterino hormonal com libertação de levonorgestrel (LNG-SIU). 1,7 A CIU atua através da toxicidade do cobre, no caso dos Cu-DIU, ou por atrofia do endométrio e perturbação da implantação, no caso do LNG-SIU. 1
Segundo as recomendações do Resumo das Características do Medicamento (RCM) dos vários dispositivos, previamente à colocação de CIU deve realizar-se exame médico, com determinação da posição e tamanho uterino e, após colocação, deve ser realizado um exame de controlo entre as quatro e doze semanas, seguido de controlo anual, para garantir o correto posicionamento do dispositivo. 9
O caso apresentado descreve a migração de um Cu-DIU da cavidade uterina, de forma assintomática, sendo este um dos raros efeitos adversos da contraceção intrauterina. A sua deteção só foi possível através do exame de controlo ecográfico pós-colocação.
Descrição do caso
Mulher de 41 anos de naturalidade francesa, casada, sem antecedentes pessoais médicos ou cirúrgicos de relevo e sem medicação habitual. Apresentava, como antecedentes obstétricos, três gestações e três partos eutócicos, o último em setembro de 2019, sem qualquer intercorrência de relevo prévia. Sem história de abortos. Desde o último parto utilizava método de barreia como anticoncecional. Ainda se encontrava a amamentar à data da primeira consulta.
Veio a consulta de planeamento familiar em outubro de 2019 com a pretensão de iniciar método contracetivo intrauterino não hormonal. Foi solicitada ecografia ginecológica endocavitária, que revelou útero com dimensões de 6,7x3,2x4,5cm, sem outras alterações relevantes. Em fevereiro de 2020, cerca de nove meses após o último parto e ainda em período de amamentação, foi realizado exame ginecológico, que não apresentava qualquer alteração de relevo e procedeu-se à colocação do Cu-DIU nos cuidados de saúde primários (CSP), a qual decorreu sem intercorrências. Foi solicitado controlo ecográfico que, dado o contexto pandémico pela infeção COVID-19, a utente não realizou, tendo, por isso, mantido o método de barreira.
Cerca de um ano após colocação do Cu-DIU, encontrando-se ainda amamentar e tendo iniciado hemorragia menstrual há cerca de dois meses, foi novamente pedida ecografia ginecológica. Nessa ecografia, realizada em março de 2021, não foi detetado o Cu-DIU. A utente negava perceção de expulsão do Cu-DIU ou qualquer sintomatologia. No exame com espéculo não eram visíveis os fios do Cu-DIU, pelo que foi solicitada radiografia abdominal para localização do mesmo. A radiografia, realizada em abril de 2021, mostrava o dispositivo “(…) na zona média da escavação pélvica, em posição oblíqua de perfil (…)” (Figura 1). Foi solicitada uma terceira ecografia ginecológica, que confirmou a “(…) presença de DIU na escavação pélvica, em topografia extrauterina, lateralizado à esquerda do útero (…)”. Consequentemente, a utente foi encaminhada para consulta urgente de ginecologia do hospital de referência, a fim de ser removido o dispositivo. Foi ainda notificada a Unidade de Vigilância de Produtos de Saúde, da Direção de Produtos de Saúde do INFARMED sobre o incidente.
A consulta de ginecologia ocorreu em junho de 2021, tendo a utente sido inscrita para laparoscopia para se proceder à remoção do Cu-DIU e, por vontade da própria, foi também inscrita para salpingectomia bilateral para contraceção definitiva.
Comentário
A escolha pela contraceção intrauterina pode acarretar risco potencial de eventos adversos, como falência do mecanismo contracetivo, alterações no padrão hemorrágico, expulsão do dispositivo ou perfuração uterina. 1-3,5,6 A falência da CIU está entre as mais baixas dos métodos de contraceção reversíveis, com estudos a mostrar taxas de 0,1 a 2,2 para Cu-DIU e de 0,1 a 0,6 para LNG-SIU por 100 mulheres-ano. 10
A perfuração uterina é uma das complicações mais graves associadas à utilização de CIU e o número de casos tem vindo a aumentar, dado o aumento de mulheres utilizadoras deste método contracetivo. 5 A literatura reporta taxas de incidência de perfuração uterina de 0,3 a 2,6 por 1.000 inserções de LNG-SIU e 0,3 a 2,2 para Cu-DIU, 1,11-13 sendo a amamentação e o status pós-parto fatores de risco, 5,11- (13 assim como a inexperiência do profissional de saúde, nuliparidade, multiparidade e história de parto por cesariana, apesar destes últimos fatores serem inconsistentes nos estudos. 11,15
Estão descritos dois possíveis mecanismos de perfuração: perfuração traumática imediata durante a inserção e perfuração secundária tardia causada por erosão gradual através do miométrio, 6,12,14 sendo que a perfuração pode associar-se a dor abdominal ou padrão hemorrágico anormal. 2,12-13 Contudo, muitas pacientes são assintomáticas e, nesses casos, a perfuração é detetada através de avaliações de rotina ou de uma gravidez não intencional. 5,12,14 Embora seja uma complicação grave, raramente se associa a sequelas a longo prazo. 8,11,13
O desaparecimento dos fios dos dispositivos é um fenómeno incomum que se pode dever à migração do dispositivo. 6,15 Em 80% dos casos localiza-se na cavidade peritoneal; no entanto, a situação pode tornar-se mais grave quando há migração para outros órgãos, como para o apêndice, peritoneu, cólon, bexiga ou outros. 6,15 Quando ocorre, a investigação para localizar o dispositivo inicia-se geralmente pela ecografia endocavitária 2,5,12,15-16 e, quando esta se mostra insuficiente, podem ser utilizados outros meios complementares de diagnóstico, como a radiografia abdominal, a tomografia computorizada ou a ressonância magnética. 5,8,12 As recomendações, nomeadamente da Organização Mundial da Saúde, são para que se proceda à rápida extração do dispositivo assim que seja localizado, mesmo em utentes assintomáticas. 5,6,14 Apesar da ocorrência de sequelas graves ser rara, a formação de aderências, fístulas, perfuração intestinal ou vesical, peritonite, entre outras, pode ocorrer. 5,14 Na maioria dos casos de perfuração, a laparoscopia é o método preferido para a remoção definitiva do dispositivo intrauterino. 5,8,14
No caso clínico supracitado ocorreu a migração assintomática do Cu-DIU. A colocação do dispositivo ocorreu nove meses após o último parto e em período de amamentação, sendo dois dos principais fatores de risco identificados para perfuração. A deteção deste evento adverso foi possível pelo facto de ter sido solicitada ecografia de controlo após colocação, como aconselhado nos RCM dos vários dispositivos. A investigação iniciou-se pelo estudo ecográfico, seguido da realização de radiografia, como sugerido na literatura, tendo sido localizado o dispositivo na cavidade peritoneal, o que vai ao encontro do anteriormente descrito. Nesta fase, o papel dos CSP é limitado, sendo necessária a referenciação à ginecologia para a remoção do dispositivo em contexto hospitalar, como sugerem as recomendações internacionais.
Este artigo pretende partilhar uma situação que, sendo rara na prática clínica, pode ser muito alarmante para a medicina geral e familiar, sobretudo quando a colocação de CIU é realizada nos CSP. Pretende ainda alertar para a importância da avaliação ecográfica pós-procedimento, a fim de ser confirmada a localização e garantida, por um lado, a eficácia do método e, por outro, a rápida deteção de complicações, como aqui se descreve. É também apresentada uma breve revisão do procedimento a adotar em casos semelhantes, dando relevo à importância do exame físico e dos meios complementares de diagnóstico, bem como à necessidade de participação do ocorrido às autoridades competentes. Por último, destaca-se a necessidade da referenciação precoce à especialidade hospitalar para a rápida remoção da CIU, a fim de serem evitadas sequelas graves no futuro.