Introdução
As doenças raras são um desafio para a prática clínica e, em especial, para a medicina geral e familiar, podendo ser altamente complexas. Desta forma, torna-se primordial a valorização das alterações observadas ou questionadas pelos doentes ou familiares, assim como a capacidade de distinguir entre as variantes do normal e as alterações patológicas.
A trimetilaminúria é uma doença metabólica rara, também conhecida como “síndroma do odor a peixe”, causada pelo défice da enzima flavina mono-oxigenase 3 (FMO3), responsável pela metabolização de trimetilamina, um composto com odor a “peixe estragado”.1)-(3
A trimetilamina resulta da metabolização, pelas bactérias intestinais, da colina, da lecitina e do N-óxido de trimetilamina presentes nos alimentos. Em situações normais, a trimetilamina absorvida é metabolizada, pela enzima FMO3, em N-óxido de trimetilamina, um composto inodoro. 2,3 Nos doentes com trimetilaminúria ocorre acumulação de trimetilamina, que é posteriormente eliminada pela urina, respiração, suor e fluidos corporais, causando o odor característico a peixe. 1-4
A trimetilaminúria primária é uma doença autossómica recessiva causada por mutações ou polimorfismos no gene FMO3, sendo os indivíduos heterozigóticos assintomáticos.1-5 Formas de trimetilaminúria secundária também estão descritas em doentes com consumo aumentado de precursores da trimetilamina, com doença hepática ou com doença renal crónica. 2-4
Não se conhecem consequências físicas deletérias desta acumulação de trimetilamina. 1-3 A sintomatologia descrita limita-se ao odor, sendo descrita também em alguns doentes anosmia seletiva para o próprio odor. 3 O odor surge habitualmente durante a infância, tende a agravar durante a puberdade e, nas mulheres, pode aumentar com a toma de contracetivos orais e durante o período perimenstrual, 1,4 devido à inibição hormonal da oxidação da trimetilamina. 4
Assim, as consequências desta patologia são principalmente psicológicas e sociais, sendo considerada uma patologia subdiagnosticada. 2-3 Baixa autoestima, personalidade evitante, isolamento social, depressão, comportamentos obsessivos com a higiene e perturbação de ansiedade são algumas das consequências associadas. 1,3-5 Estes doentes são por vezes vítimas de bullying, 1,3 podendo ter consequências ao nível da performance académica e dificuldades de relacionamento com os pares. 3 Estão ainda descritos casos de tentativa de suicídio. 1,3-5
O diagnóstico pode ser confirmado pela deteção de trimetilamina na urina (confirmando-se quando superior a 10% da trimetilamina total como amina livre) ou através de teste genético ao gene FMO3 com identificação de variantes patogénicas. 1
Não se encontra disponível um tratamento eficaz para a trimetilaminúria. No entanto, são conhecidas algumas estratégias que permitem melhorar os sintomas: a restrição de alimentos contendo os precursores de trimetilamina, ou seja, contendo colina (como ovo, fígado, rim, ervilha, feijão, amendoim, produtos de soja, couve de Bruxelas, brócolos, couve, couve-flor, suplementos com lecitina) e contendo N-óxido de trimetilamina (peixe, cefalópodes, crustáceos). 1 A colina tem um papel essencial no neurodesenvolvimento, pelo que não deve ser completamente restrita na infância, na gravidez e no aleitamento. 1 O aconselhamento dietético pode ter um importante papel para atingir uma alimentação diversificada e equilibrada.
Outra estratégia recomendada é a realização da higiene pessoal com recurso a sabonete e gel de banho ácidos, 1,3-5 com pH entre 5.5 e 6.5, o que permite que a trimetilamina secretada se acumule como um sal menos volátil, sendo posteriormente removido com a lavagem. (1 A utilização de antitranspirantes e a lavagem regular da roupa podem também contribuir para a minimização do odor. 5
O recurso a ciclos curtos de antibioterapia para modelação da flora microbiana intestinal pode ter indicação em alguns casos (nomeadamente quando há necessidade de aliviar as restrições alimentares ou em períodos em que se verifique um aumento da produção de trimetilamina, como na presença de infeções), (1 assim como a suplementação vitamínica com riboflavina e a utilização de agentes secretores de precursores (como carvão ativado) 1,3,5 ou lactulose. 3
Com a partilha deste caso clínico pretende-se promover a divulgação desta patologia de forma a melhorar o seu diagnóstico e, consequentemente, melhorar de forma significativa a qualidade de vida destes doentes.
Descrição do caso
Doente, do sexo feminino, com seis anos de idade, pertencente a família nuclear de classe social média-alta, de acordo com a escala de Graffar. De antecedentes pessoais destaca-se que foi fruto de gravidez desejada e vigiada, com parto às 39 semanas por cesariana, por apresentação pélvica, sem intercorrências, com Apgar 10/10/10. Efetuado diagnóstico precoce que não revelou alterações. Aleitamento materno exclusivo até aos cinco meses, momento em que iniciou diversificação alimentar. Cumpriu Programa Nacional de Vacinação e esquema de quatro doses da vacina antimeningocócica B. Sem outros antecedentes pessoais patológicos ou familiares de relevo.
Aos sete meses, momento em que foi iniciado o peixe na diversificação alimentar, começou a apresentar episódios de odor corporal nauseabundo a “peixe podre”. Os pais conseguiram estabelecer uma relação temporal destes episódios com a ingestão de peixe, referindo que o odor desagradável surgia cerca de seis horas após a ingesta e permanecia durante algumas horas. A duração e a intensidade destes episódios dependiam da variedade de peixe, sendo diretamente proporcional à quantidade ingerida. Não era referida qualquer outra sintomatologia nem alteração do estado geral associado a estes episódios.
Nas consultas de vigilância da saúde infantil e juvenil (SIJ) não apresentava qualquer alteração ao exame objetivo e mantinha um desenvolvimento estaturo-ponderal e psicomotor adequado. Na consulta dos 12 meses, momento em que foi exposta a situação, foi recomendada a manutenção da diversificação alimentar, oferecendo os vários tipos de peixe em pequena quantidade e registando quais os peixes com maior expressividade de sintomas.
Aos 18 e aos 24 meses as queixas mantinham-se, embora a mãe identificasse que a sintomatologia fosse mais branda com a ingestão de bacalhau e carapau pequeno, optando por reservar a ingestão de peixe para o fim-de-semana. Em contacto informal com a pediatria foi sugerido estudo imunoalergológico e metabólico, que os pais optaram por realizar no setor privado.
Aos três anos, dada a persistência das queixas, estava a ser realizada restrição total de peixe. Tinha sido excluída a possibilidade de doença alérgica, pelo que foi feita a referenciação para consulta de doenças metabólicas no Serviço Nacional de Saúde.
Na consulta de doenças metabólicas foi colocada a hipótese de se tratar de trimetilaminúria, posteriormente confirmada com o estudo genético do gene FMO3, que revelou polimorfismo em homozigotia responsável pelo fenótipo. Foi explicada a doença aos pais, possíveis repercussões e recomendações para as minimizar.
Após a definição do diagnóstico e a compreensão da patologia em causa, os pais puderam criar uma estratégia alimentar com evicção dos peixes causadores de sintomas durante a semana, de forma a limitar constrangimentos a nível escolar, reservando a ingestão dos restantes peixes para o fim-de-semana e férias. Assim, foi sendo possível manter uma alimentação equilibrada e diversificada, sem afetar a vida social desta criança.
Atualmente, com seis anos, frequenta o primeiro ano de escolaridade, tem muito bom aproveitamento escolar e boas relações com os pares e com a restante comunidade escolar. Apresenta um comportamento adequado, manteve sempre um bom desenvolvimento estaturo-ponderal e psicomotor. Não sofre qualquer repercussão psicológica ou social associada a esta doença. A única limitação social que apresenta é a restrição na ingestão de algumas variedades de peixe na cantina da escola, para a qual apresentou uma declaração médica que justifica esta situação.
Comentário
A consulta de SIJ é essencial para a vigilância da saúde e representa uma oportunidade para a exposição de preocupações dos cuidadores, que devem ser consideradas pelo médico de família.
Na ausência da associação da ingestão de peixe ao odor desagradável, da suspeita desta patologia e do seu diagnóstico, esta doente iria apresentar esta sintomatologia, em múltiplas situações sociais, nomeadamente na escola, sem a compreensão dos seus pares. Aumentaria inevitavelmente o risco de sofrer bullying e de ser socialmente excluída, o que acarretaria consequências potencialmente muito graves a vários níveis, nomeadamente da sua saúde mental.
Apesar de atualmente não estar disponível um tratamento eficaz para esta patologia, o seu diagnóstico é essencial para aumentar a qualidade de vida destes doentes que, ao compreenderem a sua patologia, podem controlar a sua sintomatologia através das várias estratégias previamente apresentadas. Para que o diagnóstico seja possível é necessário que esta patologia seja conhecida, nomeadamente ao nível dos cuidados de saúde primários, permitindo que uma queixa de odor desagradável não seja unicamente interpretada como um défice de higiene.
As consultas de vigilância de SIJ nesta situação terão especial importância para vigiar o surgimento de alguma complicação psicossocial, assim como alertar para os eventuais agravamentos sintomáticos durante a puberdade, imediatamente antes e durante a menstruação e com a possível toma de contracetivos orais.