Quando eu for grande, quero ser...
... Médica de família. A Sofia tem 7 anos, os seus pais não são médicos e tem a liberdade criativa que a sua idade e as suas características lhe permitem fruir.
Daqui a 17 anos, quem será responsável por não serem defraudadas as expectativas da Sofia e de outros meninos e meninas que têm convicções e ilusões, e se encarregue de manter a sua vontade quando crescidos e desenvolvidos?
Os governos poderão mais legislar, enquadrar e promover o estatuto e a condição. Mas reconhecerão o significado de cuidar da família, ser médico da doença e da saúde, ser médico de proximidade e ter solidariedade institucional? E criar-lhe-ão condições de exercício profissional dignas para receber quem precisa, sem falta de material e equipamentos, com informática do futuro que será presente e com remunerações que não sejam sujeitas a indicadores capciosos?
As pessoas poderão reconhecer a importância do médico de família, que lhes faz falta. Mas compreenderão que é um amigo (não virtual), que zela por si quando está doente, que previne doenças e aconselha na saúde, que o plano de cuidados que estabelece o (a) envolve a si e à sua família, que deve ser estimado e não ser agredido física ou verbalmente?
A sociedade organizada poderá constatar a importância do médico de família para a comunidade, na comunidade. Mas colocar-se-á ao seu lado quando observar as suas inquietações por querer fazer e mais não poder, quando precisar da justiça e da solidariedade da sociedade civil e quando os seus direitos forem aviltados?
Os médicos, enfermeiros e outros profissionais de saúde, organizados em classes profissionais, poder-se-ão defender e dedicar-se à própria competência técnica e científica, atribuindo idoneidade. Mas pesquisarão e reconhecerão as dificuldades do médico de família no seu desempenho profissional, apoiá-lo-ão quando as contrariedades forem maiores que a satisfação profissional, disseminarão por seu dever a atribuição do mérito do médico de família em qualificação e humanismo?
Os médicos de família poderão ser um pilar dos cuidados de saúde e de um Serviço Nacional de Saúde para todos e compreender o que é o trabalho de equipa. Mas estarão unidos na qualidade da sua prestação de serviço sem ditadura de indicadores falaciosos que influenciem a sua retribuição pecuniária, ligados na sua prática como médicos gerais e como médicos de família utilizando a famililogia e a familisofia, confortáveis no seu atributo de serem profissionais em ser humano?
Os doentes sofrem e poderão ter os cuidados de saúde com base na evidência científica, adequados no mundo civilizado. Mas entenderão os limites de uma ciência que não é exata como a matemática, aceitarão a falha do sistema que outros deveriam assumir, compreenderão o genuíno médico de família que faz o que pode, faz o que deve e o abraça no seu olhar, na sua voz, no seu toque, na sua fiel solidariedade?
A Sofia pode mudar de opinião, pois encontra-se em formação e o mundo que a rodeia não é cor-de-rosa, nem sempre articula direitos e deveres, nem sempre o pensamento é oportunidade e ocasião. Agora, está preocupada com a amiga que tem família na Europa, sujeita à guerra e aos atropelos desumanos.
A Sofia será o que ela quiser e souber, sendo ou tendo um médico de família pela vida fora, sem interrogações e com assunção de respeito, humanidade e coesão social. E será feliz.
Resposta do editor
Esta história da Sofia recorda-me que em criança todos queremos ser médicos, bombeiros, polícias ou professores primários. À luz da distância percebemos que temos uma atitude de dádiva e de retribuição pelo carinho e conforto que recebemos de quem nos faz sentir seguros, ainda que misturado nas lágrimas das vacinas e em alguma perceção de autoridade. Mas, como diz o povo, quem dá o pão dá a educação e, citando Pinto Machado, ensinar é formar e formar é gerar, logo, educar é também ser mãe.
A Sofia foi mais específica. Num tempo de grande desenvolvimento tecnológico ela lembra-nos que a essência do médico está muito além da capacidade técnica de resolver problemas (que também identifica nos instrumentos que reconhece do consultório). O verdadeiro médico afirma-se na compaixão, na empatia, na capacidade de estabelecer comunicação efetiva e na confiança que produz.
É este médico que a Sofia quer!
Eu pergunto, é este médico que nós oferecemos?
Estou convencido que sim, sobretudo na Medicina Geral e Familiar, apesar da organização burocratizada, da decisão centralizadora, dos indicadores sem base de evidência e da proletarização dos contratos de trabalho.
Por isso, a Sofia indica o Médico de Família como o seu exemplo.
Por isso, a Sofia nos chama a esta reflexão.
Paulo Santos, Editor-chefe da Revista Portuguesa de Medicina Geral e Familiar