Introdução
A asma carateriza-se por uma inflamação crónica das vias aéreas, que pode resultar em vários fenótipos. É definida pela presença de sintomas respiratórios (pieira, dispneia, tosse) e por uma limitação variável ao fluxo expiratório, ao qual se associa hiperatividade brônquica. (1 A sua prevalência varia nos diferentes países, estimando-se uma prevalência de 1-18% na população geral1 e de 2,8% a 37,6% em crianças. (2 Um subestudo português do estudo ISAAC (International Study of Asthma and Allergies in Childhood) identificou uma prevalência aproximada de 13% no grupo etário dos 6/7 anos e de 9% dos 13/14 anos. (3 Diversos fatores estão associados à evolução sintomática e às exacerbações da asma, sendo alguns dependentes do doente e outros não modificáveis. Os determinantes (triggers) mais estudados nas crianças e adolescentes são as infeções víricas respiratórias;4 comorbilidades, como rinossinusite, alergia alimentar, obesidade ou fatores psicológicos; e ainda exposição ambiental, nomeadamente ao fumo do tabaco, contacto com alergénios ou poluentes atmosféricos. (1,5
O diagnóstico de asma na criança é primordialmente clínico, pelo que se revela um desafio, sobretudo em idade pré-escolar. (5 Em crianças colaborantes é possível realizar provas de função respiratória (PFR) para comprovar o diagnóstico. Contudo, uma prova normal não o exclui. O objetivo da PFR é documentar a limitação ou obstrução do fluxo expiratório, com um valor de FEV1 inferior a 80% do previsto e a reversibilidade deste resultado após a administração de um broncodilatador. (5-7 Outro parâmetro que, apesar de não ser diagnóstico, pode ser útil para avaliar a asma com inflamação pulmonar mediada por eosinófilos é a excreção fracionada de óxido nítrico (FeNO). (8-9
A qualidade de vida (QoL) é definida pela Organização Mundial da Saúde (OMS) como a perceção do próprio indivíduo sobre a sua posição na vida, tendo em conta o contexto cultural e valores nos quais está inserido, e em relação aos seus objetivos, expectativas e preocupações. (10 As crianças e adolescentes asmáticos, além de lidarem com os sintomas, que podem ser persistentes, apresentam não raras vezes problemas sociais e emocionais devido à incapacidade de acompanhar os seus pares, por exemplo, em atividades físicas ou em ambientes com fatores desencadeantes da doença. (11-12 Todas estas características contribuem para a redução da QoL do doente.
Em 1996 foi desenvolvido o Pediatric Asthma Quality of Life Questionnaire (PAQLQ), (13 posteriormente adaptado e validado para a língua portuguesa, em 2005, por La Scala e colaboradores. (14 Este questionário constitui uma ferramenta útil na perceção do controlo da doença e implicações da mesma na QoL de crianças e adolescentes com asma.
Os objetivos deste estudo são: caracterizar as crianças e adolescentes asmáticos seguidos numa consulta de alergologia pediátrica, avaliar a sua perceção de controlo da doença e QoL relativamente à asma e perceber a relação entre esta perceção e as variáveis clínicas e fatores de risco considerados.
Métodos
Foi realizado um estudo observacional, transversal e analítico, englobando doentes avaliados em consulta de alergologia pediátrica, num hospital nível II (de acordo com a Portaria n.º 82/2014, de 10 de abril, e publicada no Diário da República n.º 71/2014), entre 1 de setembro de 2019 e 31 de janeiro de 2020, a quem foi fornecido um Questionário de Qualidade de Vida na Asma Pediátrica (PAQLQ). Os critérios de inclusão foram a idade compreendida entre os 10 e os 17 anos e o diagnóstico prévio de asma. Para diminuir a possibilidade de viés foram excluídos adolescentes com outra patologia pulmonar associada, crianças com idade inferior a 10 anos, adolescentes que não apresentaram capacidade de compreensão durante o preenchimento do questionário e situações em que este não foi corretamente preenchido pelo utente.
A recolha dos dados clínicos para caracterização da doença e identificação de fatores de risco foi efetuada presencialmente durante a consulta. Posteriormente, e em caso de necessidade de visualização dos resultados dos exames, foi consultado o processo do doente no programa SClínico®. As variáveis estudadas foram: idade, sexo, classificação da asma de acordo com o controlo e gravidade, resultados das PFR e do FeNO, presença de comorbilidades e fatores de risco (rinossinusite, alergia alimentar, obesidade, ansiedade, tabagismo, eosinofilia). Definiu-se asma ligeira, moderada ou grave de acordo com os critérios do Global Initiative for Asthma (GINA).1 O controlo da asma foi objetivado pelo Asthma Control Test (ACT) and Childhood ACT. (15 As PFR foram efetuadas e avaliadas de acordo com critérios padronizados. (16-17 Foram divididas em normais, padrão obstrutivo, padrão de hiperinsuflação ou síndroma das pequenas vias aéreas. O FeNO foi considerado elevado para valores ≥ 35 ppb se idade < 12 ou ≥ 50 ppb se idade ≥ 1218 e definiu-se eosinofilia se valores ≥ 150 uL. (1
Durante a consulta foi fornecido um questionário de autopreenchimento pelos adolescentes. O questionário escolhido foi o PAQLQ, a versão traduzida para o português, com validação desde 2005, realizada por La Scala e colaboradores. (14 Este consiste em 23 perguntas divididas em três domínios: sintomas (dez perguntas), limitação das atividades físicas (cinco perguntas) e emoções (oito perguntas). Cada pergunta tem uma escala de pontuação entre 1 e 7 pontos, em que 1 indica prejuízo máximo e 7 nenhum prejuízo. As perguntas incidem sobre as experiências vivenciadas pelo doente na semana anterior à entrevista. (19-20 A pontuação obtida foi calculada por domínios e para o total de pontuação no questionário. Esse cálculo foi efetuado através das pontuações de cada pergunta e dividindo a soma pelo número total de perguntas.
A análise estatística foi realizada no SPSS® Statistics, v. 27. As variáveis categóricas foram avaliadas por frequências absolutas e relativas e as variáveis contínuas foram relatadas como média (mínimo-máximo ou desvio-padrão). O teste Qui-Quadrado foi utilizado para analisar variáveis categóricas e o teste de Mann-Whitney (teste não-paramétrico) foi utilizado para comparar as variáveis relativamente à pontuação da escala (média da pontuação para cada domínio). Foi considerada significância estatística para um valor de p igual ou inferior a 0,05.
O estudo foi aprovado pelo Conselho de Administração e recebeu o parecer favorável da comissão de ética para a saúde da Unidade Local de Saúde da Guarda.
Resultados
Este estudo incluiu 41 adolescentes com o diagnóstico de asma, dos quais 28 (68,3%) são do sexo masculino. A idade média foi de 13,1±2,0 anos.
Nenhum doente apresentava asma grave e 13 (31,7%) tinham asma moderada. A asma não estava controlada em 11 (26,8%) doentes. Todos os doentes realizaram provas de função respiratória (PFR), sendo que 33 (80,5%) foram normais; das oito provas alteradas, cinco (12,2%) apresentavam um padrão obstrutivo, duas (4,9%) representavam uma síndroma obstrutiva das pequenas vias e uma (2,4%) tinha um padrão de hiperinsuflação. A PFR com valor de FeNO foi executada em 35 doentes, sendo que em 25 (71,4%) o valor se encontrava dentro de parâmetros normais para a idade. O valor médio do FeNO foi 33,5 (5-137). Verificou-se ainda que as PFR com padrão obstrutivo apresentaram também uma tendência para maior valor de FeNO (p<0,05).
Trinta utentes realizaram estudo analítico, sendo que 12 (40%) destes apresentavam eosinofilia. Relativamente às comorbilidades associadas, 34 (82,9%) tinham diagnóstico concomitante de rinossinusite, três (7,3%) de alergia alimentar, três (7,3%) de obesidade, seis (14,6%) de ansiedade e ainda três (7,3%) eram fumadores passivos. Nenhum dos adolescentes era fumador ativo.
A Figura 1 apresenta os resultados do questionário. Analisando a figura, verifica-se que o domínio com pior média foi o domínio «sintomas», contrastando com os domínios «limitação de atividades» e «emocional».
A Tabela 1 apresenta a relação entre a pontuação do questionário e a caracterização da asma. Observando a tabela, constata-se que os adolescentes com asma controlada apresentaram maior pontuação em todos os domínios e na pontuação total do PAQLQ relativamente aos que têm asma não controlada, sendo esta diferença de pontuação estatisticamente significativa para todos os grupos do questionário. A gravidade da asma e a presença de PFR alteradas mostraram uma relação estatisticamente significativa para os domínios «sintomas», «emocional» e para a pontuação total do questionário.
Foi ainda avaliada a relação entre fatores de risco/comorbilidades com a qualidade de vida destes adolescentes. Como se constata na Tabela 2, apenas o valor do FeNO e a obesidade, para os sintomas, e a ansiedade, para os domínios «emocional» e «sintomas», apresentaram significado estatístico (p<0,05). Estas três variáveis demonstraram diferenças estatisticamente significativas relativamente à pontuação total do questionário PAQLQ (Tabela 2).
Discussão
O presente estudo sugere que a melhor QoL dos adolescentes com asma está relacionada com o maior controlo da doença e com a menor gravidade desta, assim como com uma PFR normal. Esses aspetos estão de acordo com a evidência actual. (21-22 É importante realçar que o único fator que demonstrou ter uma diferença significativa para todos os domínios do questionário foi o controlo da asma. Vários estudos abordam que o mau controlo de doenças crónicas, nomeadamente da asma, poderá ter impacto, não só no crescimento funcional, mas também no seu desenvolvimento (mau rendimento escolar, défice de atenção, sonolência diurna ou distúrbios emocionais). (22-23 Este artigo vem reforçar a importância da responsabilidade do adolescente na gestão da sua doença, como medida para melhorar a sua QoL presente e futura.
Está documentado que PFR alteradas, principalmente com FEV1 < 60%, FeNO elevado e eosinofilia são fatores de risco para exacerbações. (1 Neste trabalho verificou-se essa relação para as PFR anormais e para o FeNO elevado, mas não relativamente à eosinofilia. Ressalva-se, contudo, que a ausência de relação com eosinofilia pode advir do facto de apenas 73% dos adolescentes terem realizado estudo analítico.
Alguns fatores de risco associados e identificados neste estudo não apresentaram significado estatístico (p<0,05) quanto à influência sobre a pontuação dos vários domínios do questionário. Uma das justificações é que a maioria das comorbilidades estava presente num pequeno número dos adolescentes da amostra. No caso da obesidade verificou-se uma diferença significativa (p<0,05) para o domínio dos sintomas, mas não para o grupo das limitações físicas, como seria expectável, possivelmente porque estas crianças também praticam menos exercício físico. O desencorajamento dos pais para a prática de exercício físico, devido ao medo da asma induzida pelo exercício, (24 também poderá explicar o facto de o domínio da limitação nas atividades ser aquele em que menos se verificaram diferenças estatisticamente significativas entre grupos.
Como já referido, também a presença de ansiedade revelou diferença estatisticamente significativa (p<0,05) na QoL dos adolescentes asmáticos, nomeadamente no que diz respeito ao domínio dos sintomas e domínio emocional. A ansiedade é um fator desencadeante de asma, justificando a correlação significativa com o domínio dos sintomas. (25 Porém, este fator pode constituir um viés ao estudo, uma vez que os distúrbios emocionais em geral condicionam uma diminuição na qualidade de vida, bem como na perceção da mesma. É necessário ainda ter em consideração que a ansiedade pode não ser causa, mas consequência, de uma doença crónica mal controlada e, por isso, geradora de uma pior QoL, o que deve ser ativamente pesquisado neste grupo de doentes.
Relativamente às principais limitações deste trabalho salienta-se uma amostra populacional de conveniência, de pequena dimensão e representativa de um único hospital.
Conclusão
Os dados deste artigo reforçam que um bom controlo da doença é essencial para a qualidade de vida dos adolescentes. O médico de família é aquele que melhor conhece o doente e a sua família, estando numa posição privilegiada para perceber e trabalhar os fatores de risco que podem ser progressivamente melhorados, nomeadamente a obesidade, a ansiedade e o tabagismo. O exercício de avaliação sobre cumprimento terapêutico e autoperceção do controlo da doença, durante a consulta, também são abordagens que poderão contribuir para o melhor controlo da asma. Este estudo fortalece o uso de questionários como o PAQLQ, como uma ferramenta útil no incentivo dos adolescentes ao cumprimento da terapêutica, uma vez que permite a autoperceção sobre o controlo da doença.
Contributo dos autores
Conceptualização, ISS e RSO; metodologia, ISS e RSO; software, ISS e JV; validação, PG; análise formal, ISS e JFR; investigação, ISS, RSO e CMF; recursos, RSO e PG; gestão de dados, ISS e RSO; redação do draft original, ISS; redação, revisão e validação do texto final, ISS, RSO, JV, JR, CMF e PG; visualização, ISS, RSO, JV, JR, CMF e PG; supervisão, RSO e PG; administração do projeto, ISS e RSO.