Introdução
A hipocalcemia é uma alteração iónica comum, cuja apresentação pode ser desde assintomática, em casos ligeiros, a crise aguda, potencialmente fatal, em casos graves (broncospasmo, laringospasmo ou arritmias como prolongamento do intervalo QTc ou Torsades de pointes).1 Está comummente relacionada com hipoparatiroidismo,1 mas pode também ser devida a deficiência de vitamina D ou ao efeito secundário de alguns medicamentos. (2 Quando relacionada com hipoparatiroidismo, a sua natureza pode ser multifatorial; no entanto, a principal etiologia é a exérese inadvertida/lesão traumática ou térmica das paratiroides ou da sua vascularização, aquando da tiroidectomia total. (3-4 Habitualmente este manifesta-se no período pós-operatório imediato e é transitório, podendo, em alguns casos, tornar-se permanente. (4 Muito raramente, o hipoparatiroidismo e, consequentemente, a hipocalcemia podem manifestar-se pela primeira vez anos após a tiroidectomia. (4 A atrofia progressiva das glândulas paratiroides devido não só à formação de tecido cicatricial com consequente redução da sua vascularização, mas também à irradiação da região cervical pode justificar uma apresentação tardia de hipoparatiroidismo. (3-4 A sua forma de apresentação e a intensidade dos sintomas variam consoante o ritmo de evolução e gravidade da hipocalcemia. (5 Outros fatores, como a presença de hipomagnesemia ou alcalose concomitante, também podem influenciar a variabilidade da frequência, bem como a gravidade da apresentação dos sintomas. (5 Manifestações agudas e crónicas de hipocalcemia/hipoparatiroidismo podem implicar atingimento cardiovascular, dentário, dermatológico, imunológico, neurológico, muscular, psiquiátrico, oftalmológico, renal e esquelético (Tabela 1). (5
Pretende-se relatar um raro caso de hipocalcemia sintomática em contexto de hipoparatiroidismo tardio, pós tiroidectomia total, cujos sintomas tiveram início cerca de seis anos após a cirurgia. Pretende-se ainda alertar para a dificuldade de diagnóstico destas situações no âmbito dos cuidados de saúde primários, o que pode atrasar significativamente a identificação de uma situação que pode ser potencialmente fatal. Mais ainda, atendendo a que na revisão da literatura não foi possível aferir a incidência desta complicação tardia, reforça-se a importância do seguimento destes doentes, numa ótica de maior proximidade entre o médico de família e os cuidados de saúde secundários, no sentido de otimizar a vigilância a longo prazo de doentes com risco de surgimento deste tipo de manifestações mais raras.
Descrição do caso
Mulher de 65 anos, com história de tiroidectomia total com esvaziamento cervical central, em 2010, por carcinoma papilar da tiroide (variante folicular), seguida de terapêutica ablativa com iodo radioativo por remanescente tiroideu funcionante. Intercorrência com exérese inadvertida de duas paratiroides, detetada no exame histológico da peça operatória. No pós-operatório imediato, a doente terá apresentado hipocalcemia sintomática, que reverteu após suplementação com cálcio. O último doseamento de hormona paratiroideia (PTH) e cálcio foi em 2013, apresentando valores no limite inferior do normal, optando-se por suspender o cálcio. Seguida até à atualidade em consulta de cirurgia geral, sem sinais de recidiva da neoplasia até à data. Outros antecedentes relevantes: patologia osteoarticular da coluna; síndroma do túnel cárpico (submetido a cirurgia em 2017); hipertensão arterial desde 2005, com lesão de órgão-alvo (microalbuminúria); síndroma vertiginoso e gastrite crónica. Apresentava ainda depressão e ansiedade reativas à morte do marido, em 2009. Encontrava-se medicada com levotiroxina 0,1 mg, olmesartan/hidroclorotiazida 20/25 mg, esomeprazol 40 mg, pravastatina 20 mg e paroxetina 20 mg. Sem história familiar de relevo.
A doente apresentava queixas de astenia, ansiedade, irritabilidade, parestesias mais intensas nas mãos e mialgias desde há três anos. No último trimestre do ano de 2018 intensificou a recorrência à consulta aberta com agravamento das queixas, bem como sensação de contratura das mãos, com melhoria após analgesia e relaxante muscular. Dada a sintomatologia apresentada e resposta à medicação foi sempre assumido o diagnóstico de perturbação de ansiedade e tratado como tal. Por outro lado, a utente tinha controlo analítico de fevereiro de 2018, com hemograma, glicose, ionograma, creatinina, albumina, transaminases, sedimento urinário e função tiroideia normais, o que reforçava a hipótese de uma causa psicogénica para as queixas referidas.
Perante a persistência dos sintomas, com agravamento progressivo e os seus antecedentes, impunha-se rever a estratégia adotada e refletir sobre possíveis diagnósticos diferenciais. Assim, em consulta programada, a 2/jan/2019, procedeu-se à revisão detalhada da anamnese: a doente apresentava mialgias e parestesias da região perioral, mãos e pernas, de predomínio matinal, que melhoravam ao fim de 15-20 minutos. Associadamente apresentava como queixa de novo “sensação de mãos presas”. Referia ansiedade e irritabilidade crescentes com insónia associada, sem motivo aparente para tal. Ao exame objetivo estava ansiosa, com postura inquieta e apelativa. Os parâmetros vitais eram normais e apresentava sinal de Chvostek positivo e sinal de Trousseau negativo. O restante exame objetivo era normal. Perante isto optou-se por requisitar doseamento de cálcio total e albumina, contemplando a hipótese de hipoparatiroidismo. Combinou-se com a utente que deixaria os resultados das análises quando estivessem prontas, facto que não ocorreu em tempo útil.
A 15/jan/2019 recorre à consulta aberta com queixas de “mãos e pernas presas” e ansiedade extrema associada desde há uma hora. Ao exame objetivo encontrava-se extremamente ansiosa, em hiperventilação, hipertensa e sudorética, com os antebraços, punhos e metacarpos em flexão, com adução do polegar e dedos em extensão (espasmo carpopedal), com limitação da extensão dos membros e impossibilidade de abrir as mãos (Figura 1).
Foi-lhe administrado diazepam 10 mg, sublingual, sem resposta, motivo pelo qual foi ativado o Centro de Orientação de Doentes Urgentes e enviada ao serviço de urgência (SU).
No SU foi identificada hipocalcemia grave (cálcio ionizado: 0,63 mmol/L; Normal (N): 1,13-1,32), ficando internada na unidade de cuidados intensivos para correção hidroeletrolítica e investigação adicional. Do estudo analítico destaca-se ainda: fósforo: 5,2 mg/dL (2,7-4,5); magnésio: 0,70 mmol/L (N: 0,78-1,02); PTH: 9 pg/mL (10-65); vitamina D: 17 ng/mL (N > 30).
Após estabilização foi transferida para o serviço de endocrinologia, onde manteve subida progressiva dos níveis de cálcio até à sua normalização. Foi, assim, assumido o diagnóstico de hipoparatiroidismo pós-cirúrgico de apresentação tardia e medicada com carbonato de cálcio + vitamina D3, calcitriol e magnésio.
À data da alta a doente apresentava-se assintomática, com resolução das queixas osteoarticulares, parestesias e da ansiedade.
Comentário
Analisando o caso poder-se-á assumir que o facto de as queixas relacionadas com a hipocalcemia serem vagas e inespecíficas, aliado ao tempo decorrido desde a cirurgia (nove anos), assim como os antecedentes psiquiátricos prévios à cirurgia, poderão ter contribuído para um atraso no diagnóstico. Por outro lado, as queixas que esta apresentava enquadravam-se num quadro ansioso-depressivo, que apresenta elevada prevalência no âmbito dos CSP. (6
Relativamente à avaliação de um doente com antecedentes de tiroidectomia total e queixas sugestivas de hipocalcemia (Tabela 1), no exame objetivo dever-se-á proceder à inspeção cervical, em busca de cicatrizes ou sinais de irradiação prévia, e pesquisar-se os sinais de Chvostek e Trousseau. O sinal de Chvostek realiza-se percutindo suavemente a face com a ponta dos dedos, imediatamente abaixo do pavilhão auricular, sobre o maxilar superior. No caso de hipocalcemia obtém-se uma contração homolateral dos músculos da face. Este tem baixa sensibilidade e especificidade, podendo estar presente em 10 a 25% dos indivíduos saudáveis. (5 Por outro lado, o sinal de Trousseau tem uma sensibilidade de 94-99%, podendo estar presente até 1% em indivíduos normocalcémicos. Pesquisa-se apertando a braçadeira do esfigmomanómetro acima da pressão arterial sistólica durante três minutos ou até surgir o sinal. Considera-se positivo se houver flexão do punho e das articulações metacarpofalângicas, extensão das articulações interfalângicas proximais e distais e adução do polegar. (5 Neste caso, este poderá ter sido negativo por má execução técnica do mesmo aquando da consulta. Para confirmação deste diagnóstico deve-se proceder ao doseamento de cálcio total e albumina (ou cálcio ionizado) e PTH em duas ocasiões. Devem ainda avaliar-se fósforo, magnésio e vitamina D. (7 A apresentação aguda de hipocalcemia, com espasmo carpopedal, exige referenciação imediata ao SU para reposição com gluconato de cálcio, por via endovenosa, com monitorização cardíaca e correção de eventual hipomagnesemia, iniciando-se, logo que possível, suplementação oral com cálcio e calcitriol. (7-8 A longo prazo, o doente deve manter esta suplementação. Deverá ainda manter suplementação com magnésio até à sua normalização, caso seja necessário. O tratamento pode apresentar complicações a longo prazo: insuficiência renal, litíase renal, nefrocalcinose, cataratas e calcificação dos gânglios da base ou de outras regiões do cérebro. (7 A monitorização do tratamento, após estabilização dos valores, deve ser feita semestralmente com cálcio ionizado (ou cálcio total e albumina), fósforo, magnésio, ureia e creatinina; cálcio, sódio e creatinina urinários e vitamina D anualmente; ecografia renal se hipercalciúria persistente, história de litíase renal, declínio da taxa de filtração glomerular ou exame sumário de urina alterado; pesquisar sinais ou sintomas de hipocalcemia ou hipercalcemia a cada seis meses. Se se suspeita de complicações oftalmológicas dever-se-á referenciar a oftalmologia. Face a declínio cognitivo, discinesias ou convulsões pode pedir-se tomografia computorizada cerebral e EEG. (7
No que respeita a este caso, a atrofia progressiva das glândulas paratiroides devido não só à formação de tecido cicatricial com consequente redução da sua vascularização, mas também à irradiação da região cervical, pode justificar uma apresentação tardia de hipoparatiroidismo. (3-4,9 Por outro lado, o facto de se encontrar medicada com uma tiazida desde 2013 poderá ter também contribuído para esta apresentação tardia com evolução lentamente progressiva, bem como para a hipomagnesemia. (5,10
É assim importante que o médico de família esteja alerta para a inespecificidade dos sintomas de hipocalcemia, bem como da sua possível apresentação em qualquer fase da vida do doente, devendo sempre esclarecer os antecedentes pessoais e procurar outros sinais sugestivos que aumentem o grau de suspeição, de forma a pedir os exames adequados à confirmação do diagnóstico. Por outro lado, é também importante que esteja habilitado a reconhecer os sinais de apresentação aguda, de forma a referenciar de imediato ao SU e, assim, minimizar o risco de complicações fatais desta condição.
Reforça-se também o elevado risco de confundimento que a patologia psiquiátrica (muito mais prevalente) pode representar, realçando-se a importância de se proceder ao despiste de patologia orgânica antes de se assumir este diagnóstico.
Finalmente, destaca-se a necessidade de uma maior aproximação e consequente articulação entre os cuidados de saúde primários e os secundários, de forma a otimizar a vigilância a longo prazo e prevenir o surgimento de situações potencialmente mais graves.
Contributo dos autores
Conceptualização (formulação e desenvolvimento de metas e objetivos de investigação), GC e ACV; metodologia, GC; investigação, GC; recursos (fornecimento de materiais de estudo), GC; redação do draft original (incluindo tradução substantiva), GC e ACV; redação, revisão crítica, validação e edição do texto final, ALS, ACV e LS; visualização (especificamente a apresentação de dados), GC; supervisão, orientação e responsabilidade de liderança para a planificação do caso, ACV.