É certo que nos últimos anos se tem assistido a uma crescente preocupação com a saúde mental em todo o mundo, uma vez que 12% das doenças em todo o mundo são do foro mental, valor este que sobe para 23% nos países desenvolvidos.1 Perante este panorama, onde já urgia a implementação de medidas nesse sentido, o aparecimento da pandemia COVID-19 constituiu um verdadeiro desafio, não só para a população em geral, mas sobretudo para os profissionais de saúde, exigindo ainda mais dos mesmos num Sistema Nacional de Saúde, por si só, já fragilizado. Torna-se impreterível compreender o impacto da mesma naqueles que asseguraram - e continuam a assegurar - a melhor gestão possível da doença. É pela partilha entre pares e experiências pessoais que poderão ser identificadas e melhoradas lacunas existentes. É com esse objetivo em mente, o da partilha, que a autora resolveu divulgar a vivência da sua unidade de saúde quase dois anos após o início de um acontecimento tão impactante quanto o aparecimento da pandemia COVID-19.
Nesse sentido foi elaborado um trabalho de investigação, transversal, retrospetivo, com o objetivo de estudar o impacto da pandemia COVID-19 na saúde mental dos profissionais de saúde da unidade de saúde familiar (USF) da autora, tendo em conta o impacto ao nível da produtividade, motivação e vida pessoal, sintomatologia apresentada, fatores precipitantes, necessidade de uso de antidepressivos/ansiolíticos e indutores do sono e problemas laborais. Foram incluídos todos os profissionais de saúde a desempenhar funções na unidade à data de recolha dos dados (outubro/2021) e que desempenharam funções à data de início da pandemia (fevereiro/2020), tendo sido excluídos aqueles que, apesar de fazerem parte da equipa à data de início da pandemia, já não se encontravam na USF à data de recolha de dados. Esta avaliação foi feita através da implementação de um questionário à população em estudo e posterior recolha e análise de resultados.
Relativamente aos resultados obtidos, no universo dos 34 profissionais de saúde da USF, sendo a maioria do sexo feminino (88,2%) e na faixa etária dos 40 aos 59 anos (64,7%), entre médicos especialistas e médicos internos, enfermeiras e técnicas auxiliares, foi possível concluir que a pandemia COVID-19 teve um impacto moderado a forte na saúde mental de praticamente todos (73,5%), sobretudo ao nível da motivação para a atividade profissional. Este impacto traduziu-se, entre outros, numa maior exaustão emocional, ansiedade e perturbações do sono (Figura 1). A necessidade de adaptação constante às novas indicações governamentais, a incerteza quanto ao fim/controlo da doença, a excessiva carga horária laboral e a dificuldade da gestão da ansiedade da população face à doença e ao aparente distanciamento dos cuidados de saúde foram os fatores identificados pelos profissionais como os que mais influenciaram negativamente a sua saúde mental (Figura 2). Da totalidade dos profissionais, 58,8% recorreram ao uso de antidepressivos/ansiolíticos durante a pandemia (20 no total de 34 - ainda que, desses, cerca de oito já iniciara a toma previamente ao início da pandemia) e 57,1% ainda mantém a sua toma. As perturbações de sono apresentaram-se como o segundo sintoma mais prevalente, o que se refletiu na necessidade de toma de indutores do sono em metade da população estudada, sendo que, desses, 1/3 mantém a sua toma. Do total de profissionais, 21 considerou mesmo que o impacto da pandemia levou a problemas laborais, como o absentismo, baixas médicas ou um maior número de erros no trabalho.
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Figura 1 Principal sintomatologia apresentada pela população em estudo (segundo questionário aplicado em outubro/2021).
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Figura 2 Fatores precipitantes que mais influenciaram para o aparecimento da sintomatologia apresentada pela população em estudo (segundo questionário aplicado em outubro/2021).
Portanto, o impacto negativo da pandemia na saúde mental dos profissionais da USF foi marcadamente notório, sendo que, com estes resultados, foi possível quantificar aquilo que se sentia, mas que ainda não tinha sido transformado em números. Este trabalho demonstrou a face cansada dos profissionais que viram as suas vidas sobrecarregadas por uma pandemia que se prolonga não só no tempo, mas também na oportunidade de restabelecer as sequelas deixadas na sua saúde mental. É de realçar a elevada percentagem - mais de metade - de profissionais que sentiram efetivamente necessidade de pedir auxílio, recorrendo ao uso de medicação antidepressiva, ansiolítica e indutora de sono. Após a apresentação destes resultados foi clara a necessidade de instituir medidas preventivas no sentido de cuidar da saúde mental dos profissionais; foi também o mote perfeito para fomentar a união destes, incitar à partilha de ideias e à comunicação, levá-los a verem-se como um apoio mútuo em situações de maior desgaste e a refletirem sobre estratégias para ultrapassar essas mesmas situações, como a organização de atividades de team building.
Apesar dos resultados impactantes, seria interessante ter uma melhor caracterização do estado de saúde mental dos participantes do estudo pré-pandemia para uma comparação mais precisa. Para além disso, o questionário utilizado foi elaborado pela autora e não devidamente validado, o que pode condicionar algum viés.
Ainda assim, e apesar de se tratar de uma amostra pequena, pelos resultados obtidos pensa-se que este trabalho poderá instigar a curiosidade e promover a reflexão dos colegas sobre a temática, de modo a olharem para as suas unidades de saúde com mais atenção, alertando para o facto de que a saúde mental deverá sempre ser uma prioridade, sobretudo daqueles que fazem da sua vida o cuidar do outro.