Introdução
A pericardite aguda é uma doença inflamatória do pericárdio com menos de três meses de evolução.1-2 As causas de pericardite aguda podem ser amplamente classificadas em infeciosa e não infeciosa. 3 Nos países desenvolvidos, as causas idiopáticas e infeciosas (principalmente virais) correspondem a 80 a 85% dos casos, com outras causas menos comuns, como neoplásicas, metabólicas, iatrogénicas, autoimunes e inflamatórias, a representar os restantes 15 a 20%.4
Segundo as guidelines da Sociedade Europeia de Cardiologia, 1 pelo menos dois de quatro critérios são necessários para o diagnóstico de pericardite aguda: 1) dor torácica; 2) atrito pericárdico na auscultação cardíaca; 3) alterações no eletrocardiograma (ECG); e 4) derrame pericárdico de novo ou agravado. A elevação de marcadores inflamatórios, como a proteína C reativa (PCR), a velocidade de sedimentação e o aumento do número de leucócitos, assim como a evidência de inflamação pericárdica através de técnicas de imagem, como a tomografia computadorizada (TAC) ou a ressonância magnética cardíaca, podem ajudar no diagnóstico e na monitorização da doença. 1
Em dezembro de 2020, a Food and Drug Administration (FDA) emitiu as autorizações de uso de emergência para a vacina Pfizer-BioNTech COVID-19, vacina de mRNA, recomendada em esquema de duas doses, com a segunda dose administrada vinte e um dias após a primeira. 5
Escassos meses após o início da vacinação foi reportado o primeiro caso de miocardite após administração da vacina Pfizer-BioNTech contra a COVID-19. 6
Em 23/junho/2021, o Centro de Controlo e Prevenção de Doenças dos EUA referiu uma “provável associação” entre as vacinas Pfizer-BioNTech e Moderna COVID-19 e miocardite e/ou pericardite em alguns adultos jovens. 7
O objetivo deste trabalho é descrever um caso de pericardite aguda após toma de vacina COVID-19 e discutir a orientação diagnóstica e terapêutica efetuada. Os autores pretendem ainda contribuir para o reconhecimento atempado desta patologia e para uma orientação célere por parte dos clínicos em benefício dos doentes potencialmente afetados.
Descrição do caso
Os autores apresentam o caso de um paciente de 69 anos de idade, casado, reformado (antigo professor universitário), de classe social de Graffar I e com APGAR familiar de 9 (família altamente funcional). Tem como antecedentes pessoais patológicos diabetes mellitus tipo 2 e dislipidemia. Sem antecedentes de infeção por COVID-19. A sua medicação crónica diária é constituída por metformina + vildagliptina 850 mg/50 mg bid, dapaglifozina 10 mg id, gliclazida 30 mg id, metformina 500 mg id, atorvastatina + ezetimiba 20 mg/10 mg id.
Foi vacinado em 03/05/2021 com a vacina Pfizer-BioNTech COVID-19. Nesse mesmo dia à noite inicia quadro de dor localizada na região do hemitórax esquerdo, constante, em pontada e de intensidade moderada, sem irradiação, sem fatores de agravamento, com ligeira melhoria após toma de paracetamol 1000 mg. Não havia história de traumatismos. Como sintomas acompanhantes apresentava ligeira dispneia, sem outros sinais de dificuldade respiratória. Em 06/05/2021 recorreu à consulta aberta da Unidade de Saúde Familiar, mantendo os sintomas anteriormente referidos. Ao exame físico encontrava-se com bom estado geral, corado e hidratado, apirético, eupneico em ar ambiente, sem sinais de dificuldade respiratória, saturação oxigénio em ar ambiente (SatO2 aa) de 97%, com restantes sinais vitais normais, com auscultação cardíaca e pulmonar sem alterações. O quadro clínico foi interpretado como efeitos colaterais comuns e leves da vacinação contra a COVID-19. Foi efetuada prescrição de paracetamol 1000 mg, um comprimido de 8/8 h para o alívio da dor.
Em 07/05/2021 iniciou quadro de febre (temperatura axilar máxima de 38,4 °C) associado à dispneia ligeira e à dor na região do hemitórax esquerdo, com irradiação de novo para a região da clavícula esquerda e sem melhoria com a toma de paracetamol 1000 mg. Recorreu ao Serviço de Atendimento Permanente do Hospital CUF Porto, em 10/05/2021, sete dias após o início dos sintomas, mantendo-se hemodinamicamente estável e sem diminuição da SatO2 em ar ambiente. Realizou exames complementares de diagnóstico.
Dos resultados obtidos destaca-se a pesquisa de SARS-CoV-2 por PCR com resultado negativo, leucocitose de 12,3x103/μL (4,0-10,0x103/μL), neutrófilos 80,1% (40-80%), PCR 23 mg/dL (0,05-1,00 mg/dL), troponina de alta sensibilidade 4 ng/L (< 19 ng/L), radiografia torácica sem alterações, ECG sem alterações de relevo, TAC torácico com evidência de derrame pericárdico de pequeno volume, achado este confirmado através de ecocardiograma transtorácico.
Assim, perante a história clínica, o aumento dos parâmetros inflamatórios e os achados imagiológicos foi diagnosticado com provável pericardite em fase aguda/subaguda. Iniciou toma de ibuprofeno 600 mg de 12/12 h e colchicina 1 mg de 12/12 h, tendo verificado melhoria sintomática após o primeiro dia de tratamento. Manteve esta terapêutica durante duas semanas, tendo posteriormente reduzido a dose de ambos os fármacos progressivamente até à sua suspensão. O utente teve uma boa evolução do quadro clínico. O estudo analítico de reavaliação, realizado três semanas após o diagnóstico, apresentou normalização do leucograma, no entanto mantinha ligeira elevação da PCR.
Aquando da chegada da data prevista para a segunda dose da vacina, dezoito dias após a primeira dose, realizou uma ressonância magnética cardíaca, a qual evidenciou um aumento difuso da espessura do pericárdio, mais evidente ao nível da parede lateral do ventrículo esquerdo e derrame pericárdico circunferencial de pequeno a médio volume, com acumulação preferencial adjacente às câmaras cardíacas direitas. Perante os achados, a segunda dose da vacina foi adiada cerca de um mês após a data prevista, tendo sido realizada a posteriori sem registo de intercorrências.
Foi obtido, para publicação do presente relato de caso, o consentimento escrito do próprio utente.
Comentários
Atualmente, a maioria dos estudos sugere uma incidência estimada de miocardite e/ou pericardite após a administração da vacina de mRNA de COVID-19 de um caso por 10.000-100.000 vacinas, sendo considerada uma reação adversa rara. 8
A maioria dos casos de miocardite e/ou pericardite foi identificada após uma segunda dose de vacinação de mRNA de COVID-19 e com uma maior incidência em indivíduos do sexo masculino. Grande parte dos casos foram leves e autolimitados, com um início da sintomatologia nos primeiros cinco dias após a exposição à vacina COVID-19 mRNA. 8
No presente caso clínico, a correlação temporal da toma da vacina e a plausibilidade biológica de uma resposta autoimune ou reação cruzada por mimetismo molecular suportam a suspeita de que tenha ocorrido uma reação adversa. Contudo, a relação de causalidade não pode ser confirmada. 9 Como se verificou, um valor de troponina e um ECG normal não excluem pericardite isolada, devendo o tratamento ser iniciado no caso de haver um alto índice de suspeição. Nestes casos poderá ser importante a realização de outros exames complementares de diagnóstico, como TAC torácico, ecocardiograma e ressonância magnética cardíaca, para suporte do diagnóstico e vigilância da patologia em causa. 8
As recomendações relacionadas à vacinação adicional de COVID-19 mRNA para aqueles com miocardite e/ou pericardites confirmadas evoluirão conforme surjam novas evidências. A curto prazo pode ser prudente atrasar a segunda ou as doses subsequentes da vacina, de acordo com as orientações do Comité de Consultoria Nacional de Imunização do Canadá. 10