Introdução
Segundo o Observatório Nacional da Diabetes (Relatório anual de 2019) estima-se que, em Portugal, cerca de 30 a 35% dos pacientes com diabetes mellitus (DM) não se encontrem devidamente controlados,1 valores corroborados pelo estudo TEDDI-CP, também realizado a nível nacional, que identificou uma taxa de não controlo de 35%.2 Na Unidade de Saúde Familiar (USF) Garcia de Orta, onde trabalham os autores da presente investigação, um estudo realizado em 2015 revelou que 39% das pessoas com DM não tinham a sua doença controlada.
O número elevado de doentes não controlados, que se mantém apesar do contínuo trabalho nesta área ao longo dos últimos anos, tem motivado a procura das principais razões para este facto. É consensual que perante um doente não controlado se inicie e proceda proativamente ao ajuste necessário na terapêutica para que o objetivo do controlo glicémico para cada doente seja atingido o mais rapidamente possível, prevenindo de forma mais precoce as possíveis complicações da doença. 3-4
Na literatura, entre as causas descritas para o não atingimento do controlo da DM, salientam-se a inércia terapêutica, da parte do médico, e a má adesão aos tratamentos prescritos, por parte dos doentes. 5 A inércia terapêutica, entendida como uma resistência médica ao ajuste da terapêutica farmacológica perante um paciente não controlado, seja pelo adiamento do início seja pela intensificação da terapêutica já instituída, atrasa de forma significativa o atingimento dos objetivos nos doentes com DM. 6 Por outro lado, a má adesão à terapêutica em doentes que são muitas vezes polimedicados e com regimes terapêuticos complexos dificulta de forma considerável a gestão de uma doença crónica como a DM. 7
Pretendeu-se, com este estudo, avaliar o problema da DM não controlada na USF Garcia de Orta e conhecer a magnitude da má adesão ao tratamento por parte dos doentes e da inércia terapêutica por parte dos médicos.
Assim, definiram-se como objetivos:
1. Calcular a proporção de utentes com DM não controlada na USF Garcia de Orta e analisar a distribuição dos valores da hemoglobina glicada (HbA1c);
2. Calcular a proporção de má adesão e de inércia terapêutica nos pacientes não controlados e verificar possíveis fatores associados.
Métodos
Estudo observacional, analítico e transversal, realizado em 2020 na USF Garcia de Orta, Porto, Portugal.
A população do estudo correspondeu aos utentes com DM inscritos e vigiados na USF Garcia de Orta no ano de 2019 (código T89 e T90 da ICPC-2). Foi estabelecido, como critério de inclusão, ter existido pelo menos uma consulta médica na USF nos doze meses anteriores à data do estudo (N=988).
Da população foi selecionada uma amostra aleatória simples sem reposição por seleção de números aleatórios. A dimensão da amostra foi calculada para significância estatística de 0,05, taxa de não controlo esperada de 40% e precisão de 4% (n=365). Prevendo-se eventuais perdas ajustou-se o tamanho amostral para 375.
As variáveis estudadas foram:
Controlo da DM, considerado não controlo se o último valor de HbA1c for superior ou igual a 7%;2,8
Adesão à terapêutica por parte dos utentes, medida através do número de prescrições e do número de embalagens dispensadas pelas farmácias por consulta da aplicação PEM®. Foi considerada má adesão se a dispensa de medicamentos foi inferior 80% das prescrições nos doze meses anteriores; 9
Inércia terapêutica por parte dos médicos, definida como a inexistência de ajuste terapêutico (início ou intensificação da terapêutica já prescrita) perante dois valores consecutivos de HbA1c superior ou igual a 7%. Pela pesquisa bibliográfica não foi encontrado nenhum critério para esta variável, pelo que o mesmo foi estabelecido por consenso entre os autores e a equipa médica da USF Garcia de Orta;
Idade, género, duração da DM (anos), presença de comorbilidades (hipertensão arterial, tabagismo, índice de massa corporal elevado), existência de complicações vasculares (doença coronária, doença cerebrovascular, retinopatia, nefropatia, doença arterial periférica) e o número de classes de antidiabéticos prescritos.
Os dados foram recolhidos através da consulta dos processos clínicos eletrónicos, concretamente das plataformas informáticas MIM@UF®, SClínico® e PEM®, tendo sido posteriormente codificados e registados numa base de dados eletrónica que não permite a identificação dos pacientes, assegurando-se o anonimato e a confidencialidade de toda informação recolhida.
A análise de dados foi realizada no programa informático SPSS®, v. 21. Para estatística descritiva foram estudadas as medidas de tendência central e de dispersão (histograma) para as variáveis numéricas e as frequências absolutas e relativas para as variáveis categóricas. A inferência estatística foi efetuada através do cálculo de intervalos de confiança, testes não paramétricos e regressão logística.
O protocolo do estudo obteve parecer favorável da Comissão de Ética da Administração Regional de Saúde do Norte.
Resultados
A amostra ficou constituída por 367 utentes com DM, dos quais 52% eram homens. A idade média foi de 70 anos, com mínimo de 22 e máximo de 96. Foram eliminados da amostra oito utentes por ausência de informação.
Controlo da DM
A proporção de pacientes com DM não controlada é de 38,1% [IC95%:(33,3-43,2%)]. A distribuição da variável HbA1c encontra-se na Figura 1.
Com valores de HbA1c entre 7 e 8% encontram-se 21,8% dos pacientes, os quais correspondem a 57,1% do total dos não controlados.
A média de HbA1c dos pacientes com DM é de 6,9% [IC95%:(6,8-7,1%)], sem diferenças entre os dois géneros (Mann-Whitney, p=0,9) na comparação das medianas - Figura 2.
Adesão à terapêutica
Para analisar a adesão à terapêutica foi estudado o subgrupo de doentes não controlados (n=140), que apresenta valor médio de HbA1c de 8,2% [IC95%:(8,0-8,4%)], com mínimo de 7% e máximo de 13,6%.
Verifica-se que 19,7% [IC95%:(13,0-26,5%)] dos doentes não controlados têm má adesão à terapêutica e que esta está associada a piores valores de HbA1c (Mann-Whitney, p=0,003) - Figura 3.
Investigaram-se possíveis fatores associados à má adesão à terapêutica nos doentes não controlados. Na Tabela 1 apresentam-se os resultados. Para além do valor de HbA1c não se encontrou associação estatisticamente significativa com nenhuma das restantes variáveis estudadas.
Inércia terapêutica
Para estudar a inércia terapêutica por parte dos médicos foi analisado o subgrupo de doentes que apresentaram dois valores consecutivos de HbA1c igual ou superior a 7% (n=114).
A inércia terapêutica foi 39,5% [IC95%:(33,5-43,2%)].
Verifica-se que os médicos têm menos inércia terapêutica para valores mais elevados de HbA1c (Mann-Whitney, p=0,003) - Figura 4.
Para além dos valores de HbA1c não se encontrou associação entre a inércia terapêutica e as restantes variáveis estudadas - Tabela 2.
Discussão
A taxa de doentes não controlados foi de 38,1%, semelhante ao encontrado na mesma unidade de saúde em 2015 (39%), mas superior à encontrada no Inquérito Nacional de Saúde (37,8% em 2019). 1
A distribuição da HbA1c dos doentes não controlados apresenta maioritariamente valores no intervalo 7-8%.
Quando se analisou a adesão à terapêutica dos doentes não controlados verificou-se que 19,7% não cumpre adequadamente a terapêutica. Os resultados da má adesão à terapêutica podem estar sujeitos a viés de medição, uma vez que a leitura indireta da percentagem de fármacos dispensados na farmácia pode conter dois erros sistemáticos. Por um lado, comprar a medicação não é garantia de que a medicação esteja de facto a ser cumprida. Por outro, não comprar pelo menos 80% das receitas prescritas pode também não corresponder a má adesão, uma vez que poderá haver medicação de receitas prévias e uma gestão correta da prescrição. Verificou-se, ainda assim, que os piores valores de HbA1c correspondem ao grupo de doentes com má adesão, pelo que se deve reforçar nas consultas a importância da adesão à terapêutica, particularmente nos doentes pior controlados. Investigaram-se possíveis fatores associados à má adesão, como características dos doentes e da doença, mas não se encontraram diferenças estatisticamente significativas. O tamanho amostral mais pequeno (subgrupo de pacientes não controlados) pode ter comprometido o poder desta subanálise (erro tipo II).
Relativamente à inércia terapêutica, o valor encontrado foi surpreendentemente alto tendo em conta o excelente trabalho que tem vindo a ser feito ao longo dos anos na USF Garcia de Orta, em particular na DM. Constatou-se que para valores mais elevados de HbA1c, além do valor alvo, há menor taxa de inércia, pressupondo um investimento terapêutico maior por parte dos clínicos quando se deparam com utentes pior controlados. Por outro lado, refletirá talvez a crença médica, e até da população com DM, de que em valores próximos do alvo terapêutico, com algum esforço não farmacológico (dieta, exercício, etc.) poderá haver descida do valor glicémico e consequente atingimento do controlo desejado. Adicionalmente não foram considerados os objetivos individualizados8 e a definição de um alvo de HbA1c de 7% poderá não ser adequada para todos os doentes. Seria talvez esperada maior inércia em pacientes mais idosos, com mais tempo de doença, mas não se encontrou qualquer associação estatisticamente significativa - neste subgrupo o tamanho amostral reduzido pode ter comprometido o poder estatístico. É ainda de referir o possível impacto dos indicadores de desempenho na contratualização dos cuidados de saúde primários (CSP) na inércia dos médicos, uma vez que estabelecem como meta de controlo valores de HbA1c inferiores a 8%, valor abaixo do qual a inércia foi mais elevada.
Não foram identificados outros estudos publicados ao nível dos CSP portugueses que se debrucem sobre a inércia e/ou adesão terapêutica na população com DM que permitam comparar os resultados obtidos. Estudos na população espanhola referem taxas de inércia terapêutica que variam entre 25,8 e 40,6% e taxas de má adesão terapêutica entre 24,8 e 36,1%.3 Um estudo americano chegou à conclusão que a taxa de não adesão à terapêutica nos doentes com diabetes foi de cerca de 23% e a taxa de inércia terapêutica foi de 30%.10 Os resultados encontrados na presente análise são semelhantes no caso da inércia terapêutica, mas a má adesão é menor nos pacientes portugueses. Embora a metodologia de recolha de informação sobre a adesão seja uma das limitações do presente estudo, como referido, culturalmente a população portuguesa tende a ser cumpridora das recomendações terapêuticas.
Conclusão
A proporção de pessoas com DM não controlada mantém-se estável nesta USF ao longo dos anos, sendo que a má adesão e a inércia terapêutica constituem um obstáculo ao atingimento de taxas de controlo mais elevadas.
A pertinência dos objetivos do presente estudo ficou demonstrada e futuras investigações deveriam debruçar-se sobre estes parâmetros também noutras patologias crónicas. Considera-se que a tipologia de estudo observacional longitudinal poderá ser mais robusta, ao invés da transversal utilizada.
Conclui-se que encontrar soluções para melhorar a adesão à terapêutica nos doentes não controlados, numa estratégia de decisão partilhada com o doente, é fundamental. Da mesma forma, os serviços de saúde deverão ser promotores de mecanismos que contrariem a inércia terapêutica, através da formação contínua dos profissionais e da revisão das métricas e objetivos dos indicadores de desempenho.